Lúcia Murat revisita os índios Kadiéw em A Nação que Não Esperou por Deus

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Filipe Rossau

Durante as filmagens de Brava Gente Brasileira (1999), a cineasta Lúcia Murat entrou em contato, pela primeira vez, com os índios Kadiwéu, no interior do Mato Grosso do Sul. Na época, um grupo de indígenas foi escolhido para integrar o elenco do filme, no qual interpretavam, de certa forma, a si próprios. Em 2013, Lúcia foi novamente ao encontro dos Kadiwéus, desta vez com a co-direção de Rodrigo Hinrichsen – que no longa-metragem de 1999 foi assistente de direção – para documentar o que havia mudado em suas vidas. A premissa é retratar a transformação que a chegada de aspectos tecnológicos, como a eletricidade, promoveu naquela população. O resultado é A Nação que Não Esperou por Deus (2015), filme que estreou na seleção oficial da edição de 2015 do É Tudo Verdade, maior festival de cinema documental do Brasil.

É impossível não lembrar o clássico Cabra Marcado Para Morrer (1985), no qual Eduardo Coutinho conta, por meio das memórias de Elizabeth Teixeira, a história de João Pedro Teixeira, um dos fundadores das Ligas Camponesas e marido de Elizabeth, que foi executado em 1962. Cabra Marcado Para Morrer resgata acontecimentos de um filme que começou a ser produzido pela UNE Volante (uma caravana da União Nacional dos Estudantes) nas vésperas do Golpe Militar e que foi interrompido pelo período da Ditadura, sendo retomado 17 anos depois.

Esta relação com o Cabra foi um dos pontos comentados na noite da última sexta-feira (17), no Cine Bancários, quando Lúcia Murat esteve em Porto Alegre para uma sessão especial do filme que entrou em cartaz na semana passada. Acompanharam ela o cineasta gaúcho Giba Assis Brasil e o professor de antropologia da UFRGS José Otávio Catafesto, em um debate mediado pelo jornalista Marcelo Perrone. A ocasião serviu para que Lúcia apresentasse sua visão do longa-metragem e a importância de revisitar uma “tribo em extinção”, como ela mesma propõe no início do filme, sugerindo que a mudança de hábitos marcou a criação de uma nova identidade dos Kadiwéu.

A cineasta carioca Lúcia Murat apresentou seu novo documentário em uma sessão comentada em Porto Alegre.

A cineasta carioca Lúcia Murat apresentou seu novo documentário em uma sessão comentada em Porto Alegre. Foto: Filipe Rossau

Apresentado em três texturas diferentes (a filmagem em 35mm das cenas compiladas de Brava Gente Brasileira, as imagens em Hi8 do material do arquivo e vídeo digital), consegue fazer uma relação histórica com o filme lançado em 1999. Junto a esse resgate, destaca a imagem do índio que também adota costumes da civilização moderna ocidental – com maestria nas cenas em que mostra dois Kadiéws tocando instrumentos musicais de couro, mas em cima de motos, em uma brincadeira com o fato de estes terem em sua tradição o uso de cavalos para as batalhas.

O filme é um bom retrato da influência do homem branco nas populações indígenas. Mostra os Kadiwéu como muito mais do que índios usando bermudas da Adidas ou dirigindo camionetes, mas também os cânticos gospel cantados em seu idioma e o sermão que os pastores evangélicos – todos indígenas – dão nas cinco igrejas que se instalaram na reserva. Fugindo do habitual caminho utilizado para a idealização do povo indígena, se exime de julgamentos (ponto a favor).

A Nação que Não Esperou por Deus nas lentes de Lúcia Murat e Rodrigo Hinrichsen, como em um dos contos folclóricos dos Kadiéw, não esperou por intervenções divinas e traçou seu caminho ao longo da história brasileira forjando batalhas e buscando sua autonomia. A tradição de lutas comentada no filme e a auto-estima preservada na memória dos jovens mostra como os guerreiros de Brava Gente Brasileira são fora da ficção.

No entanto, diferentemente do filme de Coutinho, A Nação que Não Esperou por Deus falha justamente na ausência de um foco maior que não seja a rotina dos Kadiwéus. Inegavelmente dono de planos muito bonitos, o filme se detém ao cotidiano trivial. Se é verdade que valoriza ricamente os aspectos dessa “vida moderna” (carros, roupas de marca e a instalação de igrejas evangélicas) e o paralelo com as disputas com pecuaristas da região que agem de forma senhorial com os nativos da terra que invadiram, também é verdade que deixa essa mesma discussão política apenas para o final e justifica seu recorte étnico apenas pelo fato de mostrar as mesmas pessoas que participaram de Brava Gente Brasileira, o que, por si só, é uma referência muito fraca para o público em geral.

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