Cinema x Quadrinhos: dissecando a Era de Ultron

Stefano Pfitscher

No filme Vingadores: Era de Ultron, já comentado aqui no Culturíssima, Tony Stark (Robert Downey Jr) e Bruce Banner (Mark Ruffalo) usam o Cetro de Loki, recuperado do primeiro filme, para dar vida ao projeto Ultron, uma super Inteligência Artificial que acaba se voltando contra Homem de Ferro, Hulk, Capitão América (Chris Evans), Thor (Chris Hemsworth), Viúva Negra (Sacrlett Johansson) e Gavião Arqueiro (Jeremy Renner).

Ultron, que se torna um dos piores inimigos do super grupo nos quadrinhos, também é responsável por alguns dos momentos mais marcantes dos Vingadores em todo o Universo Marvel. E com um obcecado por quadrinhos como Joss Whedon – cuja passagem pelo arco Surpreendentes X-Men (2004-2008) ao lado de John Cassaday está entre as melhores que os mutantes já viram – escrevendo e dirigindo a superprodução, o que não falta são referências a estas décadas de confrontos entre Ultron e os heróis de Stan Lee e Jack Kirby.

Por isso, o que vou tentar fazer aqui é dissecar um pouco dois elementos da trama de Vingadores:Era de Ultron: a visão de Tony Stark na base da Hidra e sua relação com Ultron ao longo do filme. Só para avisar os desavisados, o texto está repleto de spoilers e contém um exagero de referências aos quadrinhos Marvel. Estão avisado. E “Avante, Vingadores!”.

A Visão de Tony Stark

No filme: depois de invadir uma base da Hidra para recuperar o Cetro de Loki, Tony Stark, influenciado pela Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), tem uma visão de todos os seus colegas derrotados e de um mundo entregue ao caos. Isto o leva a utilizar o Cetro para desenvolver uma armada de andróides inteligentes com o intuito de proteger o planeta de inimigos que nem mesmo os Vingadores poderiam enfrentar: o projeto Ultron.

Nos quadrinhos: essa cena do filme é reminiscente de diversas tramas clássicas da Casa das Idéias, como a aclamada saga Guerra Civil (2007-2008), de Mark Millar e Steve McNiven. Um dos melhores mega-eventos do Universo Marvel, a Guerra Civil será o plano de fundo do próximo filme do Capitão América, em 2016.

ShowImageContudo, a conclusão mais lógica seria de que a principal influência foi a saga que dá título ao filme, A Era de Ultron (2014), de Brian Michael Bendis, Bryan Hitch e Brandon Peterson.

Nesta história, que se passa em uma realidade alternativa, Ultron destrona a humanidade, colocando a maioria dos heróis da Terra no chão enquanto poucos constroem uma resistência contra um exército de sentinelas. Desesperados, os sobreviventes Homem de Ferro, Mulher-Hulk, Emma Frost, Mulher Invisível e Wolverine precisam decidir entre viajar para o futuro e matar um vulnerável Ultron lá ou para o passado e impedir sua concepção, matando seu criador, Hank Pym. Sim, diferente do que ocorreu no Universo Cinemático Marvel (ou MCU, na sigla em inglês), em que o Homem-Formiga ainda deve demorar alguns meses para aparecer, nos quadrinhos foi ele quem deu vida ao pesadelo metálico dos Vingadores. Mas voltaremos a esse assunto no segundo tópico.

Como se vê, o filme pouco tem a ver com seu homônimo sequencial, pegando emprestado somente algumas referências, como a presença do escudo rachado de Capitão América – que, pra ser justo, também aparece em outra meia dúzia de histórias, como em A Essência do Medo (2012), de Matt Fraction e Stuart Immonen.

O que esta cena da visão de Tony Stark realmente parece estar se referindo, porém, é algo que ainda veremos dentro do MCU: A Guerra Infinita.

Nos quadrinhos, o easter egg do MCU, Thanos, já se envolveu em meia dúzia de mega-sagas cósmicas onde põe as mãos na Manopla do Infinito, um conjunto de poderes elementais capazes de comandar o Universo. Já tivemos um vislumbre disto em Guardiões da Galáxia (2014), de James Gunn, e durante a visita de Thor às Águas da Visão neste filme.

Como sabemos, na já anunciada cronologia dos filmes da Marvel Studios, a próxima aparição dos Vingadores se dará no mega-evento Vingadores: Guerra Infinita. Dividido em duas partes entre 2018 e 2019, ambas comandadas pelos diretores Anthony e Joe Russo, o terceiro título da franquia deverá colocar uma nova formação de heróis contra o todo poderoso Thanos, o Titã Louco, e o caos presente na visão do Homem de Ferro é o mínimo que se pode esperar deste embate.

A Criação de Ultron

No cinema: usando os poderes do Cetro de Loki, Stark e Banner finalmente atingem o poder necessário para dar início ao utópico projeto Ultron. Porém, enquanto comemoram na Torre dos Vingadores, Ultron ganha vida própria, destrói a Inteligência do Homem de Ferro, Jarvis, e ganha controle sobre os sentinelas de Stark. É o começo de um processo de descoberta que pode resultar na erradicação da humanidade.

Nos quadrinhos: esse tipo de arco, onde a paranoia e o extremismo ideológico de Stark acabam revelando o lado negro do homem por trás da armadura de ferro, encontra bastante ressonância nos quadrinhos Marvel. Seja na controversa história O Demônio da Garrafa (1979), de David Micheline e John Romita Jr, em que um falido Tony enfrenta o alcoolismo, ou em sua agressiva posição pró-registro dos super seres na Guerra Civil, o criador do Homem de Ferro sempre apelou para a tecnologia como forma de manifestar seu lado obsessivo e sua visão pragmática do mundo.

Trecho do arco "O Demônio da Garrafa"

Trecho do arco “O Demônio da Garrafa”

No cinema, já havíamos tido um vislumbre deste dark Stark no fraco Homem de Ferro 3 (2013), de Shane Black, quando Stark tem de enfrentar os traumas deixados pela batalha de Nova York no primeiro filme dos Vingadores (2012). Lembra bastante os excessos dos quadrinhos quando, no fim, ele revela ter desenvolvido dezenas de armaduras para enfrentar um descaracterizado Mandarim (Guy Pearce) – uma desculpa clara para a Disney ter mais bonecos para vender…

Nas histórias dos Vingadores, como já foi explicado, foi Hank Pym, o Homem-Formiga (na época ele utilizava a alcunha de Golias, para ser mais preciso), quem criou o primeiro Ultron em Avengers #54 (1968), de Roy Thomas e John Buscema. Sua origem seria explicada a seguir, em Avengers #57, quando ele daria origem ao sintozóide Visão, que logo se uniria ao Vingadores. Esta história foi publicada, com cortes, na 2ª série da antiga Heróis da TV #34, da Abril, que também contém a sequência clássica Até mesmo um Andróide pode chorar. Ambas parecem ter sido usadas por Joss Whedon como base para a relação de Ultron e Visão (Paul Bettany) no filme.

A Vingança de Ultron

A relação entre Ultron e Tony Stark também já foi bastante representada nos quadrinhos, dada a natureza tecnológica do playboy milionário. Sobre isso, há de se destacar o arco A Síndrome de Frankenstein (2003), de Frank Tieri, Keron Grant e Omar Dogan, que é mais feliz pelo seu título do que por sua narrativa em si. Nela, Stark, de volta ao papel de empresário depois de passar uma temporada como um funcionário numa empresa de tecnologia, enfrenta os Filhos de Yinsen, uma sociedade secreta que cultua o criador da armadura original do Homem de Ferro, professor Ho Yinsen. A maioria deve lembrar deste personagem quando foi vivido pelo ator iraniano Shaun Toub no filme Homem de Ferro (2008), de Jon Favreau.

Durante a batalha, o Homem de Ferro se ressente ao descobrir que o culto pode ter ressuscitado seu antigo mestre, colocando sua mente dentro de sua armadura original. Porém, depois de segui-los até seu covil espacial, Stark acaba descobrindo que era Ultron quem estava no controle, manipulando o culto para atacar a raça humana.

Como se vê, este complexo arco, que ainda envolve a primeira noiva de Ultron, Jocasta (brevemente mencionada em Vingadores:Era de Ultron), pouco tem da amargurada relação pai e filho que vimos entre os personagens de Robert Downey Jr e James Spader no cinema.

Por esses e outros motivos, é seguro dizer que o arco que, de fato, mais influenciou a trama do filme como um todo é o excelente A Vingança de Ultron (2001), de Kurt Busiek e George Perez.

Esta história em quatro capítulos, publicada no Brasil em Homem-Aranha Premium #13, da Abril, começa com Alkhema, a segunda noiva de Ultron, invadindo um complexo do Grupo Tecnológico Wakanda e atacando o Pantera Negra.

621615-u1Como você deve se lembrar do filme, que passa boa parte do seu segundo ato no fictício país de Wakanda, terra de T’challa, o Pantera Negra, lugar onde é produzido o Vibranium, o poderoso metal que constitui o escudo do Capitão América. Ali, o vilão procura por Ulysses Claw (Andy Serkis) – que, em breve se tornará o arquinimigo do Pantera, o Garra Sônica – e toma seu Vibranium para se tornar indestrutível.

Nos quadrinhos, Ultron aprimora sua carapaça a cada nova versão de si mesmo que constrói, evoluindo do Vibranium ao mesmo Adamantium que reveste o esqueleto de Wolverine. Nesta história, ele, pela primeira vez, se utiliza de todas suas encarnações anteriores para concretizar sua vingança contra seu criador, Hank Pym (então sob a identidade do Gigante), que capturara na edição anterior.

Quando os Vingadores descobrem do rapto através de sua ex-esposa, Janet van Dyne, a Vespa, eles se dirigem ao Grupo Wakanda, apenas para encontrar Alkhema em posse do Pantera Negra. Após derrotarem a mulher-máquina, eles exigem saber onde Ultron está mantendo Pym, ao que ela responde: “Liguem na CNN, mas liguem agora!”. O que se segue é a cobertura de um genocídio na Eslorênia, outro fictício país do Universo Marvel, situado no leste europeu. A imagem dos Vingadores assistindo a pilhas de corpos sob os pés de Ultron pela televisão é arrasadora.

As similaridades entre a devastada Eslorênia desta história e o país natal dos gêmeos Wanda e Pietro Maximoff (Aaron Taylor-Johnson) no cinema, a Sokovia, é óbvia. Ambos sofrem com a ira do super robô e são palco do clímax da trama, com o vilão usando da vida das pessoas inocentes destes países como obstáculos contra os Vingadores.

No segundo capítulo de A Vingança de Ultron, o Capitão América divide o grupo em dois para investigar melhor a ameaça. Por sua relação mais próxima tanto de Ultron quanto de Hank Pym, são enviados ao seu laboratório sua ex-esposa, a Vespa, seu “filho”, Visão, a ex-esposa deste, Feiticeira Escarlate e o atual desta, Simon Williams, o Magnum. A relação entre todos estes personagens é complexa, como tudo nos quadrinhos, mas Kurt Busiek reconhece isso recontando a criação do vilão e o impacto que ele teve sob o psicológico do então Homem-Formiga sob a perspectiva de van Dyne. Nestes flashbacks, a metamorfose de Pym no abusivo Jaqueta Amarela (sim, Pym já teve pelo menos quatro identidades secretas) é explicada pela primeira vez como uma conseqüência de Ultron, recontando o chocante fim de seu casamento, quando ele foi afastado dos Vingadores por agredir Janet.

Logo, o local é invadido por uma horda de versões do Ultron e todos são capturados e levados para Eslorênia. Enquanto isso, Capitão América, Thor, Homem de Ferro, Pantera Negra e o mais novo membro dos Vingadores, a mutante Flama, aterrizam no leste europeu para enfrentar o exército do inimigo.

A batalha dos Vingadores contra as hordas de robôs são o que há de mais visualmente semelhante entre esse arco e o filme de Joss Whedon. Vendo os heróis em formação circular dando tudo de si contra centenas de Ultrons não há como não associar à espetacular sequência ao redor do reator em Vingadores: Era de Ultron.

O terceiro capítulo, O Mal Revelado, é onde as coisas começam a ficar realmente interessantes. Ele tem início com Ultron mantendo Pym, Vespa, Visão, Feiticeira Escarlate, Magnum e seu irmão Eric Williams, o Ceifador, sob custódia no subsolo do parlamento esloreniano. Ali, o vilão explica seu plano de criar uma nova raça de Inteligências Artificiais com base em sua “família” presente. Isto reitera toda a culpa presente no Gigante, que já sente o peso do armagedom de Ultron caindo sob suas costas. Sua ex-esposa tenta dissuadi-lo desta idéia, alegando que ele não poderia prever o mal que Ultron faria ao mundo, mas o cientista revela que a verdade é muito pior do que ela imagina: na realidade, Hank Pym baseou sua criação à sua própria imagem.

Esta dinâmica macabra entre criador e criatura também é um dos subplots mais interessantes do filme. Talvez por isso o título daquele arco do Homem de Ferro, A Síndrome de Frankenstein, tenha soado tão bem a alguém que recém assistira à super produção: o ressentimento e a culpa entre cientista e monstro do romance de Mary Shelley estão infiltrados de alguma maneira no roteiro de Whedon.

E não é como se a queda do diretor pelos clássicos da literatura de terror fosse novidade, desde o primeiro filme o Hulk de Mark Ruffalo parece carregar o peso de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. A paixão de Joss Whedon pela literatura anglofônica também pode ser conferida em sua adaptação literal de Shakespeare, Muito Barulho por Nada (2012).

Para fechar, Whedon ainda faz referências claras a Pinóquio, de Carlo Collodi, mais em específico à celebre animação de Walt Disney de 1940, incluindo uma cena em que Ultron ouve a canção Não há cordões em mim em seu covil. Tendo como base tanto a relação entre Victor Frankenstein e sua Criatura, quanto entre Gepetto e Pinóquio, no entanto, traz uma profundidade para o arco maior do filme que, infelizmente, acaba subaproveitado no corte final de Vingadores: Era de Ultron. Não sem razão, o filme dos cinemas foca mais nos Vingadores que não tem sua própria franquia, como o Hulk, a Viúva Negra e o Gavião Arqueiro, deixando o Homem de Ferro pra escanteio por boa parte do terceiro ato.

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Voltando aos quadrinhos, A Vingança de Ultron acaba de maneira bem mais satisfatória, pelo menos no que se refere à temática estabelecida entre Ultron e seu criador. Depois que o Visão consegue escapar do controle do vilão – e que os Vingadores principais fazem uma das suas entradas mais espetaculares – Ultron revela-se completamente invencível, mesmo sob os esforços combinados de todos os heróis. Por fim, o namorado da Flama, o também mutante Justiça, surge com um tal de Vibranium Antártico que pode derrotar o inimigo e cabe ao próprio Hank Pym socar sua criação com o metal até não sobrar um parafuso, voltando a expor o lado negro de sua personalidade.

É compreensível que a Marvel Studios/Disney não queira levar Tony Stark tão a fundo em sua culpa e obsessão – principalmente depois do fiasco de Homem de Ferro 3 – mas a verdade é que não colocar uma grande luta entre o Homem de Ferro e o Ultron em sua forma final deixa este ótimo arco sem a conclusão que merece. Como se vê, os quadrinhos conseguiram retratar a ameaça de Ultron de maneira inteligente e significativa pros personagens, mesmo em uma revista mensal e tendo de lidar com a infinidade de tramas que tem.

Sim, a Marvel continua entregando excelência depois de excelência nos cinema, mas se ela quiser seguir de verdade o caminho que estabeleceu nos quadrinhos ela vai ter de ir um pouco mais fundo no lado negro dos seus heróis. Ou sabe-se lá o que vai ser de Capitão América: Guerra Civil”…

Mas existe esperança. Ou como diria um bêbado Stan Lee sendo carregado para fora da Torre dos Vingadores: “Excelsior!”

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Um Comentário

  1. Muito bom esse artigo , o melhor que vi

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