Cinco cidades fictícias da literatura do RS

Reprodução da cidade de Antares, no Memorial Erico Verissimo, em Porto Alegre.

Reprodução da cidade de Antares, no Memorial Erico Verissimo, em Porto Alegre.

Carlos Garcia

A chuvarada que caiu sobre Porto Alegre nos últimos dias me fez lembrar Macondo. Na cidade criada por Gabriel Garcia Marquez, em Cem anos de solidão, choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Imaginem, que água! Claro que Porto Alegre não chegou a esse ponto. Mas a chuva já foi motivo para reabrir a discussão sobre a real utilidade do muro da Mauá (lembram da música da Graforréia?).

Um dilúvio como o narrado por Garcia Marquez só na ficção mesmo. Quase cinco anos de chuva não é mole. Mas não quero, aqui, fazer da chuva o ponto mais importante de Cem anos de solidão. É que por causa da chuva lembrei de Macondo, que me fez pensar em outros lugarejos fictícios da literatura.

Constatei, a partir disso, que os escritores brasileiros tem preferência por ambientar suas histórias em cidades geograficamente reais. Claro que, num olhar rápido pela literatura universal, é possível lembrar de diversos lugarejos, reinos e cidades fictícias. Já, aqui no Brasil, o rol é mais restrito. Numa busca rápida à memória lembro da cidade de Agreste, de Jorge Amado. Só. A exceção é o Rio Grande do Sul, onde vários escritores se valeram de lugares imaginários para contar sua história. Aí vai, então, uma lista das cinco cidades fictícias que considerei mais atrativas, interessantes ou importantes para a nossa literatura.

5 – Nova Hereford (em Viagem aos mares do sul, de José Carlos Queiriga)

A Nova Hereford criada por José Carlos Queiroga, em Viagem aos mares do sul, é uma típica cidadezinha rural do interior do Rio Grande do Sul. No local, está ambientada a história de Sirley, um jovem com dificuldades de relacionamento com o pai e com as mulheres. Imaginem a pressão do guri em uma cidade pequena e com pessoas conservadores! Como ele se sente? exatamente isso que é narrado no romance. E o mais interessante é a forma sutil com que o escritor mescla, à história, questões de machismo, desigualdade social e o desinteresse dos jovens pelo campo. Todos temas que poderiam estar presentes em muitos vilarejos do interior gaúcho, ainda que de forma fragmentada. Talvez, Nova Hereford tenha sido inventada justamente para agregar todas essas questões em um mesmo espaço geográfico. Valeria a pena visitar Nova Hereford para conhecer o modo de vida contemporâneo nas pequenas cidades rurais gaúchas.

4 – Neptuno (em Neptuno, de Letícia Wierzchowski)

Uma história de amor e morte. É isso que acontece na cidade e livro criados por Letícias Wierzchowski. O nome é Neptuno. Da cidade e do livro. Trata-se de um lugarejo litorâneo, onde o jovem M. vai passar as férias e conhece June. Não dá outra. O guri se apaixona pela amiga e, com a paixão vem o ciúme e, com o ciúme, a raiva. Pronto, M. vai lá e mata a amada. Não, não, este não é o final da história. Não faria isso com o leitor que não leu o romance. Mas quanto à Neptuno, que bela praia!  Pelo menos assim é descrita. Nas linhas do romance, Neptuno parece ser a praia mais aconchegante do mundo e é lá que encontramos a linda e irresistível June. Seria ótimo poder dar uma passada lá para conhecer e se apaixonar (que perigo!) pela beleza das duas. June e Neptuno.

3 – Antares (em Incidente em Antares, de Erico Verissimo)

Antares não é um daqueles lugares que todos gostariam de conhecer. Ao contrário de Neptuno e todas as suas belezas, o gaiato que entrar em Antares pode se deparar com defuntos andando pela cidade. Certo, então por que uma cidade tão fúnebre quanto essa está na lista das mais atrativas? Pela sua importância para a nossa literatura. Erico utiliza, em Incidente em Antares, o realismo mágico para contar sua história um tanto divertida, mas também para fazer uma baita crítica à política brasileira. Isso no auge da ditadura militar. Mesmo com ares macabros, para quem quiser visitar Antares, explico a localização: fica na fronteira do Brasil com a Argentina. Mas não adianta tentar usar o GPS para chegar lá. Por omissão dos cartógrafos, Antares não está nos mapas.

Antares desenho

Mapa da cidade de Antares, desenhado pelo próprio Veríssimo durante o processo de composição do livro

2 – Blumenthal (em Um rio imita o Reno, de Viana Moog)

Cidade influenciada pela cultura germânica, faixadas austeras, igreja gótica. A rápida descrição de Blumenthal faz a localidade criada por Viana Moog parecer semelhante com muitas das cidades fundadas por imigrantes alemães no sul do Brasil. Mais do que isso. Blumenthal dava a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. A cidade foi inventada para ambientar um romance que critica um dos tantos tipos de racismo praticado naquele tempo. Um ano antes de estourar a Segunda Guerra, o escritor gaúcho narra a história de imigrantes germânicos completamente influenciados pelo arianismo de Hitler. O case é a relação impossível entre o engenheiro amazonense Geraldo e a filha de alemães Lore. Para saborear um bom chope, Blumenthal não é um bom lugar. A São Leopoldo natal de Viana Moog pode ser uma opção bem melhor. Mas a história que se passou na cidade fictícia deve permanecer viva na memória para que o erro histórico não se repita.

1 – Santa Fé (em O tempo e o vento, de Erico Verissimo)

Santa Fé deveria ser a capital das cidades fictícias. Não pelo seu tamanho, mas pela sua importância para literatura. Criada para ambientar a história contada na série de livros O tempo e o vento, Santa Fé é testemunha do desenvolvimento do Rio Grande do Sul e seu do povo. Na obra, Erico Verissimo analisa, por linhas literárias, a formação, identidade e personalidade do gaúcho. Quanto à Santa Fé, foi elevada à categoria de cidade em 1884 e chegou a ser, lá no século dezenove, maior e mais importante que Cruz Alta. Talvez as duas cidades mantivessem, no passado, alguma rivalidade, como Pelotas e Rio Grande. Assim como outras cidades gaúchas, Santa Fé deve estar vivendo um momento de tranquilidade. As guerras  marcaram, sim, sua história, mas é parte do passado. Se conseguir um bom hotel, vale a pena passar um fim de semana lá. E, quem sabe, trocar uma ideia com a dona Bibiana, para entender um pouco como chegamos até aqui.

As cidades fictícias da literatura do Rio Grande do Sul, como visto, se parecem bastante com as cidades reais. Características que fazem, muitas vezes, o leitor acreditar que a história está se passando numa cidade conhecida de verdade. Temos, claro, o caso de Antares, que é um pouco diferente. Mas o que há de diferente é na história em si e nos personagens. Não na cidade. Sob o aspecto urbanístico e de cenário, parece que Neptuno é a mais distante da realidade. Não que apresente coisas absurdas, mas sua beleza talvez seja fora da realidade. É o tipo de cidade que muitos imaginam como a ideal. E que a história mostra, sob o aspecto social, não ser perfeita. Afinal, crimes também acontecem por lá. São, portanto, todas cidades construídas a partir de fragmentos das verdadeiras cidades gaúchas. Por isso, apesar de fictícias, também são tão verdadeiras.

carlos

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Um Comentário

  1. Gostei muito do texto e me esclareceu muita coisa. Depois de ir para o 3° livro de O Tempo e o Vento comecei a achar que Santa Fé realmente existia e, já até planejava ir visitar haha, é uma pena.

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