Cinco representações do gaúcho na literatura

Carlos Garcia

Bombacha, lenço, bota, faca na guaiaca e cuia de chimarrão na mão. As características do gaúcho típico aparecem em todo lugar e esse conjunto é tido por muitos como verdadeiro. A literatura foi um dos meios que ajudou a disseminar essa fotografia. Mas será que essa a verdadeira imagem do gaúcho? Certo que não. Claro que o desenho do gauchão típico, à cavalo, de modos grosso, de bombacha, chapéu e bigodão resgata um tipo de gaúcho campeiro do passado. Mas não é exclusivo.

Assim como a literatura ajudou a construir e eternizar essa figura do gaúcho, ela também pode ajudar a mostrar outros tipos que compõe a imagem do homem do sul.

Busquei, portanto, cinco personagens que podem mostrar as características do gaúcho ao longo de sua história. Isso inclui, sim, o gaúchão típico, mas também outros tipos que formam a nossa imagem. A lista é composta somente por personagens fictícios e é restrita à literatura do Rio Grande do Sul, o que excluí figuras como Martín Fierro (José Hernandéz), Manuel Canho (José de Alencar) ou Facundo (Domingo Faustino Sarmiento). Vamos a lista, com ilustração de Stefano Pfitscher.

5 – Ângelo Gardone (em O quatrilho, de José Clemente Pozenato)

Alguém até poderia protestar, esse nem gaúcho é! Mas fiz questão de incluir a figura do imigrante que ajudou a construir o estado, aqui representado pelo italiano. Para quem acha que esse tipo não pode simbolizar a imagem do gaúcho, é só lembrar do passado recente. Por um bom tempo, o Felipão foi a representação máxima da figura do gaúcho. E o que ele era se não um descendente de imigrantes com acentuadas características de italiano? No caso do Gardone, trata-se de um trabalhador esforçado, acima de qualquer coisa. É também um homem conservador, católico fervoroso e que valoriza a família. Ao seu modo, procura ser justo e honesto.

Gardone - literatura gaúcha - desenho de Stefano Pfitscher

4 – Rodrigo Cambará (em O tempo e o vento, de Erico Verissimo)

Erico Verissimo não só retratou o gaúcho, mas também o Rio Grande do Sul e a história do seu desenvolvimento. Como aqui estamos tratando apenas de personagens, o escolhido é o capitão Rodrigo Cambará, que passa a imagem do gaúcho forte, bravo e guerreiro. Era militar e tinha fama de galanteador. O próprio Erico pode descrevê-lo melhor: “Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira”.

Capitão Rodrigo - literatura Gaucha - Stefano Pfitscher

3 – Blau Nunes (em Contos gauchescos e Lendas do sul, de Simões Lopes Neto)

Blau Nunes é a representação máxima do gaúcho. Não de todos os gaúchos. Mas do gaúcho idealizado, aquele gaúcho do campo, gaúcho grosso, o guasca do pampa. Simões Lopes Neto, ao dar vida a Blau Nunes, retratou com perfeição esse tipo típico, tanto na imagem, quando nos costumes e linguagem. É um homem guerreiro, trabalhador, que gosta dos animais e da natureza e exalta o espirito guerreiro do gaúcho. “Genuíno tipo — crioulo — rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco”, assim Blau Nunes é descrito pelo seu criador pelotense. Muitos o colocariam como o número um desta lista, mas o que temos no personagem é mais uma caricatura do gaúcho campeiro do passado do que um retrato geral gaúcho.

Blau Nunes - literatura gaúcha - desenho de Stefano Pfitscher

2 – ele (em Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera)

Quem ler este texto deve se perguntar que diabos esse personagem, que nem o nome eu sei, está fazendo aqui? O que ele tem a ver com a identidade do gaúcho? Explico: Quis incluir na lista um gaúcho do século 21. E o personagem de Daniel Galera, que na história é chamado simplesmente de “ele” pelo narrador, consegue dar mostras do gaúcho atual. É um homem que gosta da cidade, mas ao mesmo tempo quer fugir dela. Ao contrário do gaúcho antigo que preferiria o campo, nosso sulista moderno refugia-se do caos da grande cidade no litoral. Como a costa salgada do estado não é atrativa, esse gaúcho estica o passo até as belas praias de Santa Catarina. No caso do Barba ensopada de sangue há um motivo para migrar para o estado vizinho, mas muitos gaúchos o fazem por puro prazer. Ele é um homem preocupado com o físico e gosta de praticar esportes. E, sobretudo ligado à cultura pop. O cavalo como meio de transporte, há muito abandonado, é substituído pela bicicleta. Por outro lado, ainda segue apegado às origens.

desenho de stefano pfitscher

1 – Chiru (em Sem rumo, de Cyro Martins)

A medalha de ouro vai para o Chiru. Ao criar o personagem, Cyro Martins foi responsável pela quebra da imagem do gaúcho tradicional, representada em sua máxima expressão por Blau Nunes. A escolha se da muito mais pelo que o personagem representa de forma geral do que pelas suas características específicas. Sem rumo é o primeiro livro da série O gaúcho a pé, que mostra a verdade sobre o gaúcho do campo e as dificuldades políticas e econômicas do estado. Chiru retrata a decadência do homem do pampa, que devido fatores econômico e social deixa o campo para tentar a vida na cidade. Quando chega no novo ambiente, se depara com todas as tramoias que ainda hoje são comuns na nossa sociedade. E essas tramoias refletem, consequentemente, na política. Chiru, por sua vez, precisa ganhar o pão e tenta encontrar espaço no meio do fogo cruzado. Acaba perdido nesse conflito entre ser honesto e manter a família mesmo que a custo de falcatruas.  É isso que deixa a história tão atual e faz de Chiru mais próximo do gaúcho atual do que o figurão clássico que só é visto no mês de setembro.

Chirú - literatura gaúcha - desenho de Stefano PfitscherOs personagens escolhidos para compor esta lista compartilham lá suas características parecidas, mas cada um destaca-se pela personalidade própria. Ainda que tentei fugir da figura esteriotipada do gaúcho, me foi impossível excluir os personagens mais importantes da nossa literatura que apresentam pouco ou muito de tal característica. O que mostra uma presença significante do gauderião bombachudo nos romances do nosso estado. Por outro lado, são o retrato de uma época. O Chiru, mesmo ainda carregando alguns traços do homem tradicional do pampa, quebra a construção desse tipo, que vinha desde José Avençal, do livro O Vaquiano, de Apolinário Porto Alegre. Ainda que Rodrigo Cambará tenha sido criado depois (para cumprir outro objetivo), é a partir de Chiru que o gaúcho começa a deixar de ser Blau Nunes. Mas não tenho como objetivo analisar a linha do tempo do desenvolvimento dos personagens gaúchos. Apenas quero lembrar dos personagens que podem representar o homem do Rio Grande do Sul.

Mais que as características individuais e a brincadeira de ranquear os personagens, é importante observar a soma das figuras lembradas. A verdade é que todos ajudam a formar a imagem do gaúcho. Podemos ter um pouco do guri do Barba ensopada de sangue e se sentir como o Chiru ou representado pelo Gardone.

EXTRA – Analista de Bagé (nos contos de Luis Fernando Veríssimo)

O Analista de Bagé pode até não ser a melhor representação do gaúcho na literatura, mas provavelmente é o nosso personagem mais popular. Luis Fernando Veríssimo soube potencializar ao máximo a grossura do gaúcho justamente num profissional que deveria ser o oposto. Claro que esse absurdo dá um tom divertidíssimo ao personagem e suas histórias. O que não deve ser nada divertido é ser o paciente desse psicanalista freudiano mais ortodoxo que reclame de xarope. Ainda mais se ele aplicar a técnica do joelhaço.

carlos

 

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3 Comments

  1. Autografando na Feira do Livro de Porto Alegre dia 08 novembro as 17 hrs.

    “Após vinte anos de observações resolvi escrever este novo livro. São fragmentos de histórias de diversos homens que abandonaram seus amigos e seus familiares para não darem explicações de suas vidas. Suas lutas tornaram-se solitárias! Os que ficaram casaram e construíram famílias ou libertaram-se. Agrediram a sociedade, esquecendo a dimensão do seu próprio terreno. Tanto uns quanto outros, apesar da aparente felicidade, escondem amargura, angustia e revolta, entregando-se à bebida ou às drogas. Quando, tais efeitos, desejam a própria morte, a de seus parceiros; até mesmo de seus pais para, assim, conquistarem a tão sonhada liberdade. Quem entenderá estes homens?!”
    Att,
    Renato Weber
    51 99651072

  2. Muito clara descrição dos tipos de gaúcho, que , com certeza, há de contentar a todos os gostos. De fato, no ambiente urbano , há esta saudosa remininiscência do gaúcho campeiro, mas só relembrada nos períodos de setembro. O dia a dia das grandes cidades impõe outros modelos, mais apropriados, sem perder a essência da origem de quem nasce e se orgulha do estereótipo cultural sulino.

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