Número Zero: Um manual de antijornalismo

Carlos Garcia

O jornal Amanhã foi planejado para nunca ser publicado. Seriam produzidas apenas edições pilotos, o chamado número zero. No caso, os números zeros, no plural. Era para ser 12, o 0/01, 0/02, 0/03 e assim por diante. Mas não faz sentido planejar um jornal para não publicá-lo. Por que uma loucura dessas? É que seu idealizador pensou em usar essas edições para fazer chantagem e ter acesso aos círculos do poder. Essa é a proposta de história de Umberto Eco em Número Zero (Record, 2015).

O escritor italiano é mestre em romance histórico medieval. Mas, em Número Zero, ele foge desse período histórico tão comum nos seus outros livros. A narrativa, desta vez, acontece nos anos noventa. Nunca antes uma ficção sua havia se passado em período tão recente. Mas isso não quer dizer que os elementos típicos das suas tramas tenham mudado. As conspirações e as sociedades secretas, sempre presentes nas histórias de Eco, compõe, sim, a espinha dorsal do mais recente trabalho do autor.

numero zero eco

O protagonista chama-se Colonna, um tradutor de alemão contratado para ser gost-writer do diretor do jornal. Sim, tem mais essa. O diretor, sabendo que o jornal não terá futuro, planeja escrever um livro sobre a história que poderia ter acontecido. Ou seja, um livro sobre os bastidores do “quase” jornal. E não seria ele a botar as mãos na massa. Por isso, contratou Colonna e o infiltrou na redação como se fosse seu ajudante.

Só os dois sabiam que o jornal não ia ser publicado. O restante da redação era formada for um grupo de repórteres fracassados. Achavam, todos, que finalmente tinham chegado a melhor oportunidade da carreira. Como o planejamento era de produzir doze edições no período de um ano, o grupo não media esforços para mostrar seu trabalho.

A redação era orientada pelas palavras de Colonna e do diretor. Os dois apresentavam, a cada reunião com o grupo, o que poderia ser o manual de redação deles. Mas tudo informal, nada de livretinhos e tal. O problema era o conteúdo desse manual. Os repórteres deveriam aplicar as técnicas mais avessas e, mutias vezes antiéticas, do jornalismo. Tudo para atender o objetivo do proprietário do jornal, que era a chantagem.

Do grupo que integrava a redação, merecem destaque dois jornalistas. A Maia trabalhava, antes, em revistas de fofoca, sempre tentando pescar informação da vida pessoal de celebridades e até forjando alguns casos. Claro que isso diminuía ainda mais algum pingo de respeito que os colegas podiam ter por ela. Até porque era a única mulher numa redação formada por homens educados sob ótica machista. Colonna, ao contrário dos colegas, conseguiu enxergar a verdadeira Maia e logo começam a sair juntos.

O outro jornalista que vale a atenção é Braggadocio. É um dos personagens mais importantes da trama. E, junto com Maia, um dos mais próximos de Colonna. Para ele, todos mentem e, em toda parte, há conspirações sendo planejadas. Essa sua paranoia o levou a investigar um caso muito doido, e sério ao mesmo tempo, mas que parecia não ter a mínima credibilidade. A coisa começava com a sua certeza de que Mussolini não tinha sido morto ao final da Segunda Guerra. Tinha um monte de argumentos para sustentar a teoria de que o ditador italiano fugiu para a Argentina e o cadáver reconhecido era, na verdade, de um sósia do Duce. No pacote dessa sua história, Braggadocio incluiu a participação de grupos como a loja maçônica italiana P2, a organização secreta anticomunista Gladio e, até mesmo, a CIA. São essas investigações de uma história aparentemente paranoica que deixam a narrativa com o tom tão característico de Umberto Eco. Mas é importante lembrar que isso não aparece desde o início do livro. Até porque nem é o ponto central. Ainda que essa história toda de conspiração seja fundamental para deixar a trama interessante, o principal é o jornal falcatrua.

Além da história em si, é importante destacar o estilo usado por Eco no texto. Número Zero é, antes de tudo, um livro de leitura rápida. Tem lá sua familiaridade com a linguagem jornalística. As linhas são lisas e os olhos correm em alta velocidade sem que o leitor perceba. O que até pode representar um perigo, já que a complexidade da trama exige bastante atenção. E isso é um diferencial enorme em relação às outras histórias de Eco. Até então, em nenhuma das suas ficções, ele apresenta um texto com a roupagem tão moderna. E não se trata de uma evolução no estilo da redação do autor. É milimetricamente calculado. Eco, normalmente, veste o texto com o estilo de linguagem do período em que a história se passa. Por isso, Número Zero trás um texto tão agradável em relação a livros como O nome da rosa ou Baudolino. Até a família tipográfica escolhida para a edição brasileira combina com a proposta da história. Só não sei se foi uma exigência do escritor, o que não me surpreenderia, ou uma sacada inteligente do setor de diagramação da editora.

Jornalismo

Pode até ser um chavão escrever que o Número Zero é um manual de antijornalismo. Mas é verdade. Umberto Eco consegue refletir sobre pontos importantes do jornalismo e aquilo que poderia estar registrado num maçante ensaio foi transformado em uma apresentação leve em forma de romance. São problemas presentes diariamente na comunicação, mas que, muitas vezes, o leitor comum não se dá conta. E não acontece somente com o leitor comum. O público mais intelectualizado também é capaz de deixar passar algumas armadilhas do jornalismo nas leituras apressadas da era da informação. Também o próprio jornalista é capaz de trabalhar no piloto automático e criar essas armadilhas, involuntariamente. Ou deliberadamente, em muitos casos. E o livro de Eco alerta para o quão maléfico isso pode ser para a Comunicação.

Entre as tantas questões abordadas, está, por exemplo, a forma de lidar com as fontes. O repórter, de acordo com o personagem Colonna, manipula uma reportagem pela ordem em que dispõe a “fala” do entrevistado no texto. Ele diz que, como não deve emitir sua opinião de forma explícita, o repórter lança mão desse recurso. Primeiro, coloca entre aspas uma “fala” neutra, sem opinião ou com uma opinião óbvia e de consenso. Em seguida, larga um “entre aspas” com uma opinião forte, sendo provavelmente a mesma do repórter. Assim o texto é manipulado para o lado que o repórter quiser e o leitor será levado a interpretar a informação de acordo com o desejo do repórter. Está aí o exemplo de mau jornalismo, que a redação do jornal Amanhã incentiva.

Outro problema exposto em Número Zero está no próprio título do jornal: Amanhã. A ideia do nome, conforme explica o diretor da publicação, é justamente a de fazer um jornal com notícias de amanhã. Por que? Ele diz que é uma evolução natural do jornal. Atualmente a maioria dos diários do mundo inteiro publicam notícias da noite anterior, o que é pouquíssimo útil. Afinal, quando o jornal chega na mão do leitor pela manhã, todos já leram aquelas mesmas notícias na internet, ou escutaram no rádio e televisão, na noite anterior. Portanto, são notícias velhas, ou seja, não são mais notícias. O diretor propõe, então, que as notícias do Amanhã, sejam projeções do que pode vir a acontecer e se tornar notícia no dia seguinte. Claro que para o objetivo chantagista do jornal, esse método cai como uma luva. Mas até que ponto é válido para ser aplicado num jornalismo sério? Essa, mais que qualquer uma, é uma questão que estrapola os limites das páginas do Número Zero. Porque pode representar o grande ponto de interrogação sobre o futuro do jornalismo impresso. O próprio Eco já abordou a questão como estudioso e não como romancista. E talvez seja um dos temas mais discutidos nas escolas de comunicação.

Umberto Eco informa, em entrevista, que os espanhóis correram na frente e já estão trabalhando para inserir o livro na bibliografia de ensino nos cursos de jornalismo. Pode até ser um exagero oficializá-lo como um manual, mas é fundamental que todo jornalista o leia. E, pelo jeito, esse objetivo já está sendo atingido. Tenho observado que alguns grandes jornais vestiram rapidamente um novo casaco e já estão aplicando ensinamentos do livro.

Seja como teórico ou ficcionista, Umberto Eco acertou a mão mais uma vez.

carlos

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