O jardim dos poetas provincianos

Carlos Garcia

No início do Século 20, um canto de Porto Alegre foi tomado por um grupo de intelectuais gaúchos. O local, chamado de Praça da Harmonia, era o ponto de encontro preferido de escritores como Alceu Wamosy, Eduardo Guimarães e Alcides Maya. Mas, no imaginário do povo, o local era tido como assombrado. Foi sob a inspiração macabra do jardim dos poetas que parte da obra desses escritores foi concebida. 

O imaginário popular tinha razão para ter a praça da Harmonia como assombrada.

Já no início da história da cidade, os açorianos fizeram na área um pequeno cemitério. Também próximo à praça, no início do século 19, havia uma forca, onde os condenados à morte davam seu último suspiro. Na cabeça dos fantasiosos, os fantasmas dos penalizados rondavam à cercania do Largo da Forca durante à noite.

“Almas penadas emergem das tumbas pedindo oração. Depois que o sol se afunda atrás das ilhas, ninguém ousa caminhar naquela área onde os colonizadores açorianos enterravam seus mortos”. Rafael Guimaraens, Rua da Praia: um passeio no tempo (Libretos, 2010).

 

A importância histórica da praça vai além da fama de assombrada. Foi naquele ponto que os açorianos atracaram pela primeira vez em Porto Alegre. O local logo foi chamado de Praça do Arsenal por estar localizada junto à praia do Arsenal. Foi por ali que os portugueses começaram a construir a história da leal e valerosa cidade, em 1752. Vinte anos mais tarde, quando José Marcelino de Figueiredo transferiu a capital do Rio Grande do Sul de Viamão para Porto Alegre, instalou junto a Praça do Arsenal a sede provisória do governo. Com o crescimento da cidade para os locais onde hoje estão a praça da Matriz e o Paço Municipal, a ponta do Arsenal foi se degradando.

Embora tenha acontecido tentativas de revitalização ao longo do século 19, somente em 1866, que o local realmente recebeu as melhorias para se tornar um espaço de lazer para os porto alegrenses. Na ocasião, o vereador Martins de Lima mandou plantar 94 árvores na área, que já abrigava um cais. Dez anos mais tarde, até o funcionamento de um rinque de patinação já havia sido liberado pela Câmara Municipal.

“Porto Alegre tem, enfim, o seu point democrático, que arrasta multidões de todas as classes, aos finais de tarde, para apreciar o pôr do sol, bebendo chope com acepipes, enquanto os mais jovens deslizavam no skating rink”, comenta Rafael Guimaraens, no Rua da Praia: um passeio no tempo..

 “Era lá, á sobra de uma paineira, a improvisada redação do jornal O Século, do estouvado moço-fidalgo Miguel de Werna e de seu companheiro de charges, o João Gonçalves, ambos se inspirando em despistadoras rodas de chimarrão (ao invés de água, cachaça)”. Nilo Ruschel, em Rua da Praia (Editora da Cidade, 2009).

 

A crença de praça macabra fora esquecida pela população. Pelo menos durante o dia. À noite, só os escritores mesmo frequentavam o local.

Com a obra de construção do Cais do Porto, a partir da segunda secada do século 20, o local tornou-se canteiro de obras. Instalações do Exército e repartições do governo do estado também passaram à ocupar a área. A nova revitalização aconteceu somente em 1960, mas já sem o charme de outrora, como registra Sérgio da Costa Franco, no seu Porto Alegre: Guia Histórico (Ufrgs Editora, 4ª edição, 2006). “A nova encarnação não restaurou a beleza da velha praça que, no final do século 19 e princípio do século 20, fora recanto poético da cidade. Ela foi o jardim dos poetas provincianos”.

*

Local de inspiração para tantos poemas, a praça não poderia deixar de ser homenageada em versos.
 
Ela foi o jardim dos poetas provincianos
– a velha Praça da Harmonia,
– rodeada de frades de pedra, alumiada de lampiões a gás,
debaixo das paineiras, com estátuas de louça à beira das aléias e bancos,
sob a fronde amorosa das tílias…
 
O Álvaro, o Felipe, o Dionélio, o Eduardo,
O Wamosy, o De Souza… andaram por ali…
 
Eles liam Samain, Rodenbach, Verlaine…
 
Ao fundo, junto ao plinto e ao gradil da amurada,
o Guaíba embalava, às vezes, um veleiro…
 
E a noite camarada e cheirosa de orvalho
Acordava violões, nas esquinas, cantando…
 
Que é dos poetas que, um dia, ó velha praça morta,
embriagaste com o filtro amável dos teus luares,
das tuas sombras cariciosas,
dos teus silêncios confidentes?…
 

Athos Damasceno Ferreira, em Poemas da minha cidade (1936)

carlos

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