O voo noturno de Exupéry

Carlos Garcia

Antoine de Saint ExupéryVôo noturno conheceu Porto Alegre. Isso lá pela década de vinte, muito antes de escrever o Pequeno Príncipe. Na capital, o francês era visto pelos cafés do centro e teria até se deliciado com um bom churrasco. Ele e seus colegas eram facilmente reconhecidos pelas jaquetas de couro que vestiam, conforme lembra Nilo Ruschel no seu Rua da Praia.

Exupéry era, na verdade, escritor somente nas horas vagas. A cachaça das crianças era paga com o seu trabalho de aviador. Na época em que passou por aqui, transportava cartas, fazendo as linhas de correio entre o norte da África e a América do Sul. Mas, além da memória de Ruschel, não há registros que confirmem que o pai do Pequeno Príncipe passeou pela Rua da Praia.

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Uma das poucas referências que o próprio autor faz de Porto Alegre está no livro Voo Noturno, de 1931. O romance conta a história do diretor das linhas aéreas que faziam o correio da América do Sul e sua angústia numa noite de trabalho. O relato cheio de tensão e reflexão corre paralelo à história dos corajosos pilotos e suas dificuldades em meio à tempestade que se formou àquela noite.

Está claro que a história nada mais é do que a própria história do Exupéry. Para dar vida ao diretor, o autor se valeu da experiência de quando ocupou o cargo em Buenos Aires. Já sua vivência como piloto naquela região serviu de base narrar as viagens dos aviadores.

É interessante observar a questão histórica. A narrativa se passa num momento em que a aviação, com licença para o trocadilho, começa a ganhar asas. As dificuldades dos pilotos e do restante da equipe são expostas com clareza. Uma coisa fica evidente na leitura: se alguém tem medo de avião hoje, teria muito mais motivos para ter naquele tempo. Até algumas coisas técnicas da época são descritas, mas de forma tão sutil que nem parece que o autor está entrando no terreno da mecânica.

No entanto, o que chama atenção na história é toda questão sentimental, tanto por parte do diretor quanto dos pilotos. O chefe se mostra um apaixonado pela profissão e consegue fazer com que os pilotos também o sejam. Inicialmente, aparenta um jeitão militar, que vai se desmascarado aos poucos. “Ame aqueles que você comanda. Mas sem dizer-lhes”. A frase demonstra a verdadeira personalidade do diretor, deixando emergir seu afeto pelos pilotos, ainda que de forma durona . E os pilotos, por sua vez, deram uma demonstração, naquela noite, de determinação e coragem. Não fizeram caso da tempestade. Botaram o peito para frente confiantes, e para apreensão do diretor e das suas famílias, atiraram suas vidadas cegamente por entre a chuva, vento e nuvens revoltas.

Em meio a essa história que me levou de um hangar de aeroporto ao cockpit de um avião antigão, o narrador descreve a reflexão de um dos aviadores, parece que ao acaso: “O piloto pensava que possivelmente haveria bruma para os lados de Porto Alegre”. Ponto.

Na última feira do livro, uma senhora que tinha pra lá de oitenta anos iniciou uma conversa comigo. Dizia que não tinha autor que superasse o do Pequeno Príncipe. Não pelo seu trabalho mais conhecido, mas por livros como esse Voo Noturno ou Correio do Sul. Despendemos um bom tempo falando sobre o autor francês ali, sob a sombra de um mesmo jacarandá, que talvez, lá nos anos vinte, Exupéry tenha se protegido do sol.

carlos

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