Oly Jr. | A importância das fusões culturais

Oly Jr.

Sem rodeios, por tudo que venho lendo e ouvindo, ao longo do que acredito ser a metade da minha existência, me induz a defender a tese de que não existe cultura pura. Cultura por si só é a soma de elementos civilizatórios, que são passados por herança social para a próxima geração. E esses elementos já vêm misturados ao longo da existência humana. Então, por essa lógica, se torna muito complicado e raso, supor que exista uma condição cultural pura. Falou em purismo social e musical, já me dá um troço que parece que eu chupei um limão.

Cultura é sincretismo. Sem delongas. E esse sincretismo é que forma outra cultura, ou transforma uma cultura já tradicional, movimentando-a e atualizando-a. Ou simplesmente fazendo com que ela evolua, no sentido de deslocamento, e modificação por processo gradual no que diz respeito ao comportamento genérico de um coletivo, processo criativo, e não de aperfeiçoamento. Evolução não é sinônimo de aprimoramento. Mas se foi, ou se vai ser bom, ou ruim, são outros quinhentos. Vai depender de uma série de estudos e reflexões sociológicas, antropológicas, políticas, históricas, enfim. Me atenho a cultura musical, e é sobre as fusões musicais que eu irei escrever nas próximas linhas.

Não consigo imaginar o que seria da minha vida musical e artística, se eu não tivesse me deparado com a música Dente de Ouro, que está no disco de mesmo nome, da banda Blues Etílicos. Pra sintonizar o leitor, a banda usou elementos musicais formadores da capoeira, do blues e do sertão nordestino, basicamente. Muita coisa fez sentido pra mim ao escutar esse tema de domínio público, repaginada por uma banda essencialmente blues, mas que perambulava magnificamente por baladas, pelo rock, mesclando letras em português com inglês. Em termos de blues, de cultura, de música, essa banda foi, e ainda é, fonte de inspiração pra mim. Na minha ignorância juvenil, o blues tinha elementos muito particulares que justificam sua existência cultural, da qual não poderia ser mexido.


Hoje entendo que esse pensamento era mera reprodução dos inúmeros contatos pessoais no meu circulo de amizade, que reproduziam e exercitavam uma espécie de fechamento musical. Um troço excludente. “Blues é assim e fim de papo”. “Temos que respeitar o blues e tocar como ele é de fato”. Hoje eu perguntaria para os mesmos: e como ele é de fato? Quais os elementos de outras culturas que o blues se apropriou pra forjar suas nuances, chegar até aqui e se posicionar na cultura musical como a gente entende hoje? Sim, o blues tem elementos que o define, assim como a milonga, o jazz, o samba e por aí vai. Mas todos eles são resultados de sincretismos culturais, que ao longo do tempo e dos fatos reais, e também da história documentada, mesmo com fortes tendências ficcionais, ou potencializadas em relação ao verídico, ou forjadas mesmo. As fusões que tornaram o que o blues é hoje. O cruzamento de culturas resultou no que hoje chamamos de povo brasileiro. Então é reducionismo se referir a uma cultura, ou a um gênero musical, de maneira absolutista.

Cada vez que induzimos alguém, ou uma geração que está por vir, que não se deve mexer com elementos culturais pré-estabelecidos, podamos as criações, e travamos a evolução das coisas. Se vai ser legal, harmônico, belo, aí é outra parada. Aí é gosto de cada um. Um exemplo entre centenas que eu poderia dar é justamente a gama de conhecimento que me proporcionou o fato de prestar atenção e refletir sobre o que foi feito em Dente de Ouro. Hoje seria mais fácil pesquisar sobre o assunto. Mas no final do século XX não era bem assim. Me exigiu prazerosamente fazer ligações de pontos que eu já conhecia pela cultura popular, e pontos que só fui descobrir por conta da curiosidade e reflexão. Além de me instigar a obter mais conhecimento, alguns anos depois, usei muito da ideia e do vanguardismo pra compor uma canção nos mesmos moldes, sem ranço, sem amarras, com umas coisinhas a mais, outras de menos, só me valendo da sensibilidade de criar algo como manifestação artística. A capoeira enquanto manifestação de origem negra, seu gingado e instrumentação, eu já conhecia. Mas daí a ser combinada com o blues, gênero até então meio que fechado para alguns (muitos), no que diz respeito a injeções externas, foi como abrir a porteira de curral.

Ou seja, existe um mundo lá fora da qual eu nem sequer imaginava. Até então o máximo de cruzamento que me remetia à capoeira, era Gilberto Gil com Domingo no Parque. Aí por conta desse despertar para novas possibilidades, perguntando para os mais velhos e sábios da cultura musical, cheguei a Jackson do Pandeiro. Alguém falou em “zum zum zum, capoeira mata um”. Fui atrás de discos do artista em sebos espalhados por Porto Alegre. Aí o cara comenta as descobertas com seus, familiares, roda de amigos, e alguém diz que conhece um outro alguém que toca berimbau e coisa e tal. O cara do berimbau te dá umas barbadas da tradição do instrumento. Alguém que toca violão diz que tem um cara chamado Baden Powell, que toca violão como se fosse um berimbau. Fui atrás. Não achei nada nos sebos. Mas alguém tinha uma fita cassete de uma obra chamada Os Afro-sambas de Baden Powell & Vinício de Moraes. Só aí já tem muito material. Aí lembro que em Dente de Ouro tem uma gaita de boca que remete ao baião. Baião pra mim era Luiz Gonzaga e Genival Lacerda. Aí tu te dá conta que Raul Seixas tocava Elvis e Gonzagão como se fosse uma coisa só.

Vejam que em poucos exemplos alguns pontos foram sendo ligados de forma espontânea. Hoje eu percebo que dá pra tocar muitos gêneros musicais diferentes nas suas estruturas, como se fosse uma coisa só. Hoje percebo que a fronteira musical além de invisível, é totalmente psicológica e ignorante. Hoje percebo que se não fosse o agregar, não existiria cultura. Eu nem consigo imaginar o que seria do blues tupiniquim se a Blues Etílicos, o André Christovam (baita guitarrista/compositor/cantor que ajudou a formar o alicerce bluseiro brasileiro) e o Celso Blues Boy não tivessem injetado brasilidade no blues, com letras em português e seus sotaques regionais. Mas Dente de Ouro foi mais além. Creio. Esse tema juntou três continentes numa obra musical. E digo mais: se começarmos a desmembrar células musicais daremos a volta ao mundo.

Então qualé a moral de restringir os gêneros musicais a alguns elementos sonoros (como se já não fossem uma mistureba braba), cercá-los por uma suposta geografia, como se não pudessem sair, ou entrar? Não tem fundamento, a não ser a vontade mesquinha se estagnar sua própria cultura, e a cultura dos outros. Pessoa, pior ainda, artista que limita sua arte e criação com regras pré-estabelecidas, sem a menor reflexão sobre o espaço-tempo, ou sobre as origens do que se está defendendo intransigentemente, dentro do caldeirão de sua aldeia, é um troço medonho. Ser um arauto propagador do conservadorismo de uma cultura da qual não pertence à sua herança social/cultural, dá uma canseira. Não vejo o menor problema de se entrar de cabeça numa cultura, e exercitar alguns elementos no dia a dia e/ou na criação artística.

O mundo se estreitou dentro d’umas, e abriu-se um leque de possibilidades de nos identificarmos com um sem fim de coisas, que nem de longe (talvez de muito longe) nos diz respeito. E muitas vezes de forma inconsciente e espontânea misturamos centenas e mais centenas de elementos das mais diversas culturas, para a composição de nossa identidade pessoal e coletiva. Porque nos limitarmos na composição e na criação artística, principalmente cerceando as criações alheias? Vamos usar e abusar da nossa cultura, mas como ponto de partida, e não de chegada. Agregar, penso eu, é primordial para o amadurecimento do sentido de pertencimento de um povo.

OLY JR.
Músico/compositor auto-didata, atuante desde 1998 e ganhador de 4 Prêmios Açorianos de Música. É o autor da fusão “Milonga Blues”, misturando a milonga latino-americana com o blues norte-americano. Atualmente, além da carreira como músico, é estudante de curso de Música do IPA.

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