Oly Jr. | O blues e eu

Oly Jr.

Volta e meia, em meio a toda e qualquer produção musical em que eu me envolva, tenho um cacoete psicológico de sempre lembrar do tempo em que dediquei parte de minha vida ao aprendizado do blues, e de certa maneira, isso me faz reafirmar essa escola musical e me orgulhar de ter escolhido esse gênero como ponto de partida pra toda e qualquer coisa que eu viesse a fazer em relação à música na minha carreira artística. Comecei a me envolver com o blues por uma sucessão de acontecimentos musicais relacionados ao velho estilo do Mississippi.

Quando eu era bem guri, antes de aprender a tocar violão, eu escutava de tudo um pouco, mas o rock era o “fio condutor” das rádios modernas. A gurizada gostava mesmo era do rock. Qualquer tipo de rock. O rock era o que todo adolescente escutava e consumia em larga escala e eu não era diferente até resolver me aprofundar no rock ‘n’ roll, buscando sua origem, suas histórias, suas lendas. O que era pra ser o nascimento de um fanatismo pelo rock, virou um efeito contrário.

Ao pesquisar a origem mais remota das bandas de rock, cheguei ao blues da maneira mais natural possível. E começou uma sucessão de coisas que foram me levando cada vez mais fundo no universo blueseiro. Até então, eu só escutava as canções e fim de papo. Conhecia muito superficialmente a lógica e o universo musical como um todo. Na medida em que fui pegando os discos de vinil, fitas K7’s e revistas especializadas em música, fui prestando mais atenção nos detalhes e nos escancaramentos do mundo musical. E comecei a perceber que quase tudo que eu gostava me levava ao blues cedo ou tarde. Os artistas mais improváveis da MPB, os mais distantes do blues e os mais chegados, tocavam, citavam ou se inspiravam no blues.

Caetano e Cazuza cantando: “… e desperdiçamos os blues do Djavan…”, Belchior: “… um tango argentino me cai bem melhor que um blues…”, Gilberto Gil com “Volkswagen Blues”, Barão Vermelho com “Down em Mim”, “Blues do Iniciante”, o Frejat dizendo: “… agora vamos aos blues…”, num disco ao vivo do Barão, no encarte do disco “Hein?!” de Nei Lisboa, dizia que a música “Faxineira” era inspirada num blues de Brownie McGhee, Legião Urbana com “Baader-Meinhof Blues” e “Música Urbana II”, Cazuza com “Blues da Piedade”, Garotos da Rua com H.D. Blues, no disco “Rock Garagem” tinha uma banda chamada Moreirinha e seus Suspiram Blues, ouvia falar bastante de Celso Blues Boy, descobri um cara chamado André Christovam, e uma banda chamada Blues Etílicos. Isso só no cenário nacional, no final dos anos 80, início dos 90. E isso eu fazendo um exercício de lembrança por cima.

No rock internacional então, bah! Quase tudo que eu pesquisava me levava ao blues. De Bob Dylan à Led Zeppelin, de Beatles à The Doors, de Eric Clapton à AC/DC, passando por Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Animals, The Yardbirds, John Mayall, Fleetwood Mac, Santana, The Who, The Band, Allman Brothers, Pink Floyd, Jethro Tull… enfim, todos esses artistas e bandas que eu reverenciava, tinham elementos do blues, direta ou indiretamente. Mas o que me chamou mais a atenção e o que me deu credibilidade e confiança pra mergulhar no blues, foi saber que o nome da banda de rock ‘n’ roll que mais me fascinava na época, foi tirado de um blues de um cara chamado Muddy Waters. Daí pra frente foi só alegria… e blues!

Resolvi aprender a tocar violão, porque um dos meus irmãos mais velhos, descolou um violão tosco pra caramba e de vez em quando ficava no nosso quarto tentando tirar o “riff” de “Wish You Are Here” do Pink Floyd. Quando ele largava o violão, eu tentava tocar a mesma coisa que ele tocava e percebi que eu tinha uma certa facilidade pra reproduzir aquilo. E em poucos dias eu consegui tocar toda a introdução da música e ele não se dava muito bem com as cordas. Depois eu quis aprender alguns acordes e comprei um livrinho numa banca de revista, que ensinava a tocar violão e vi que tinha uma infinidade de acordes, mas que basicamente, tudo girava em torno de sete acordes. Então comecei a devorar os livrinhos musicais que vinham as letras e os acordes das canções.

Por força das circunstâncias, aprendi um monte de músicas do rock nacional, Barão Vermelho, Legião Urbana, Ira!, Titãs, Paralamas do Sucesso, TNT, Cascavelletes, Garotos da Rua, e alguns outros, por que eram as músicas dessas bandas que a galera curtia cantar nas rodinhas de violão no colégio, ou em reuniõeszinhas de bairro.Eu ainda não cantava, só tocava pra alguém que tivesse a coragem de cantar. Se a música era bem conhecida e popular, aí todo mundo cantava e, feito o carreto!

Quando eu já tinha aprendido um bom repertório de clássicos do rock nacional, resolvi escolher uma canção que eu pudesse cantar. Fazer um número solo, algo que me identificasse realmente e que fosse meu “cartão de visita”, digamos assim, e que a viventada gostasse. Eu queria aprender uma música que o pessoal não conhecesse muito, pra eu poder cantar sem que todo mundo cantasse e virasse aquela zoeirada. Não que eu não gostasse da zoeira. Mas era um troço bem manjado, tocar um clássico do cancioneiro e nos primeiros acordes e frases, se os músicos quisessem nem cantavam. Nesse aspecto, eu era um pouco “do contra” e achava um saco ter que tocar sempre as mesmas músicas pra “locaiada” poder cantar.

Como eu já havia feito aquela pesquisa sobre a origem do rock contemporâneo e chegado ao blues, resolvi tirar de ouvido minha primeira canção. Até então, eu só tocava aquilo que eu aprendia nas revistas de cifras musicais. As músicas já estavam no subconciente, eu treinava cantarolando pra não me perder no tempo da canção. Como eu já havia me deparado com outros violonistas, sabia que tinham caras mais talentosos que aprendiam as músicas somente ouvindo-as. Eu ainda não tinha chegado nesse nível, mas já tava afim de chegar.

Eu já sabia um pouco da história blues, mas isso só na teoria. Sabia que os mestres do blues usavam basicamente três acordes, as vezes um, ou dois. Daí encasquetei que iria “tirar de ouvido” um blues desses, porque a métrica musical se repetia. Quando alguém tocava um blues numa roda de violão, sempre tocavam “Bilhetinho Azul” ou “Down em Mim” do Barão Vermelho, mas eu sabia que não era um blues tradicional, porque eu já tinha visto em algum livrinho de cifras, que esses blues do Barão tinha uma variaçãozinha de acordes. Depois de muito tempo fui aprender e compreender outras lógicas musicais do blues, com mais variações de acordes. Comentei com um cara (que estudava na mesma escola que eu) que também tocava violão, sobre isso, e ele me disse que o blues tradicional era muito chato de tocar porque só tinha três acordes e era sempre a mesma coisa. E esse mesmo cara, que tocava tri bem por sinal, me dizia que a gurizada não gosta de blues e o lance era o rock. Aquilo entrou rachando na minha mente. Eu gostava de rock, mas o blues tava começando a me dominar.

Eu não tinha ouvido muita coisa, pois o acesso era restrito, mas sabia alguns nomes dos blueseiros. E pra eu aprender uma música em inglês, iria ser um parto. Então me lembrei daquela música do Nei Lisboa, que citava o Mutuca, que foi inspirada num blues de Brownie McGhee e era sobre uma faxineira. Aquilo era tudo que eu precisava. Tirei a música de ouvido. Eram três acordes, mesmo. Decorei a letra e fui todo faceiro tocar em alguma rodinha de violão. Foi a gloria. Todo mundo curtiu o som. Achavam que era uma composição minha. Foi o despertar de uma alma enclausurada num mundo musical superficialmente aceito por todos. E já que a galera tinha curtido, saí atrás de outros blues pra poder tocar e me aprofundar. O pessoal ainda preferia o rock, mas volta e meia alguém me pedia pra tocar um blues. E isso já me bastava.

O blues me abriu os olhos pra muita coisa, desde a lógica musical até a questão racial. Entendi que a música precisa ter um certo grau de sinceridade e entrega, se não pode soar falsa. E uma das coisa bem ruins no meio artístico é alguém perceber, ou supor uma falsidade na tua arte.

Como quase tudo tem um lado positivo e negativo, e muitas vezes a gente tenta sair dessa dualidade, o lado negativo do blues, é a intensidade como o artista se doa a ponto de viver e procurar por coisas negativas na vida que o levam a desgraça. Não deixa de ser uma certa imaturidade, eu sei. Porque o blues tem esse contexto, do sofrimento, do preconceito, do racismo, da desigualdade social, pactos com o demônio, brigas, mortes e por aí vai. Quando o cara é guri, a tendência é entrar de cabeça num universo de maneira natural, até porque, a juventude tem uma força e uma reserva muito grande, tanto orgânica quanto mental para desbravar a vida. E eu entrei de cabeça no blues como poucas vezes entrei de corpo, alma e mente em situações na vida. Aos poucos a maturidade vai fazendo com que tu separe certas coisas, contexto, época, geografia, e no decorrer dos acontecimentos tu vais te situando no teu tempo e espaço e achando o teu universo artístico e social.

O lado positivo é o desenvolvimento de um senso de improviso que, instintivamente te faz usar em diversas situações musicais e até em fatos da vida. Outro fato positivo, apesar de paradoxal, o blues te dá um “up” pra viver. Aquela velha tática de que, quando tu pensa que tem um desgraçado pior que tu na jogada, a tendência é amenizar o teu sofrimento. Talvez por conta de tanto sofrimento, existe também o blues festivo, lascivo e até cômico, pra espantar a tristeza do dia a dia e tentar viver com o mínimo de dignidade.

É incrível como eu consigo encontrar no blues tudo o que eu preciso pra incorporar na minha manifestação artística. Seja tocando viola de 10 cordas, um instrumento tipicamente brasileiro, seja tocando milonga, um ritmo tipicamente sul-americano, e até tocando berimbau. Cada vez aprendo mais com o blues. O blues é assim, sempre me surpreendendo! Mas o que mais me deixa pasmo é que, volta e meia eu me questiono: Como pode um estilo musical influenciar tanto a música contemporânea? E volta e meia e fico devaneando sobre isso, mas a melhor resposta que a minha limitação mental chegou foi que: O blues com poucos elementos é capaz de traduzir o que todo mundo sente, não importa a cultura, a época ou a crença. Dor! E em virtude de sentirmos dor, procuramos encará-la com resistência, fé, lágrimas, esperança, sabedoria, pactos, risadas, sexo… e de alguma maneira, dar a volta por cima.

OLY JR.
Músico/compositor auto-didata, atuante desde 1998 e ganhador de 4 Prêmios Açorianos de Música. É o autor da fusão “Milonga Blues”, misturando a milonga latino-americana com o blues norte-americano. Atualmente, além da carreira como músico, é estudante de curso de Música do IPA.

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