Oly Jr. | Por que perdemos a capacidade de criar novas canções folclóricas?

Oly Jr.

Faz um tempo eu venho me perguntando: não existe canção folclórica atual, ou perdemos essa capacidade cultural? Antes de deslanchar o devaneio, é interessante conceituar “canção folclórica”. Resumindo, seria um tipo de canção propagada pela sabedoria popular, anônima do ponto de vista legal, e disseminada pela tradição oral.

Se atendo à música folclórica brasileira, tenho refletido sobre seu repertório. É antigo. Mesmo as novas gerações ainda cantam na totalidade, creio, canções com uma temática que geralmente não condiz com o tempo atual. “Roda Peão”, “Prenda Minha”, “Ciranda Cirandinha”, “Boi Barroso”, “Peixinhos do Mar” e afins. Obviamente são canções folclóricas clássicas, e acredito que devamos exercitar a existência de muitas delas. Apesar de que algumas soam extremamente datadas no conteúdo, exemplificando um tipo comportamental temporal, da qual era perfeitamente normal assustar crianças antes de dormir com o “boi da cara preta”, ou “que a Cuca vem pegar”, ou insinuando que a “Lelê precisava de umas boas palmadas”, ou ainda falando da admiração de uma tal de Dona Chica com “o berro que o gato deu”, depois do felino ter sido acertado com um pau, e por aí vai.

Muitos continuam a natural reprodução, outros adaptam as letras, como também é tradicional da difusão oral, e outros não se sentem representados por algumas canções e evitam a perpetuação. Mas isso daria outro texto. Me atenho ao fato da dificuldade, ou a não existência, mesmo, de um repertório folclórico que retrate a sociedade atual, e que seja usado espontaneamente pela população no cotidiano. Não seria mais possível esse tipo de manifestação cultural devido às mudanças comportamentais e tecnológicas da sociedade? Será que esse tipo de manifestação folclórica é intrinsecamente ligada à uma condição comunitária mais compacta, e de uma época específica? E será bom senso nos conformarmos com uma eventual mudança, ou adaptação do sentido inicial da palavra “folclore”?

A palavra “folclore” vem do inglês folklore, que significa “conhecimento do povo” ou “o que é ensinado pelo povo”. É formada pela junção de dois termos também ingleses: folk, que quer dizer povo, e lore, que significa “conhecimento”, “doutrina” ou “ensinamento”. Trazendo a palavra pro contexto musical brasileiro, tais canções provavelmente foram compostas por alguém, mas não registradas legalmente, ou adaptadas de outras canções, geralmente de origem européia, por conta da colonização, e se misturando com outros elementos culturais dos mais variados povos que passaram, ou viveram pelas mais remotas regiões. Essas canções geralmente eram usadas pelo povo pra animar festas, ninar bebês, recreações comunitárias e escolares, contemplação e etc.

Mas no decorrer dos anos, e dependendo também de cada região, a palavra “folclore” foi tomando outra medida significativa. Minha experiência in loco, é de sempre ouvir a palavra “folclore” no contexto musical, associada a um tipo de composição antiga, datada, de autoria desconhecida, muitas delas usadas em atividades infantis, ou cantaroladas quando a ocasião lembra a temática, ou algo assim. Os ritmos musicais regionais executados de forma instrumental, de cunho demonstrativo, ou para danças, também são associados ao folclore. Mas quase nunca vem seguido de algo atual. Há também a adoção da palavra “folk” pelas bandas tupiniquins, mas amplamente usada, pelo menos por artistas, parte do público, e formadores de opinião, com uma conotação estética. Seja na música, no figurino, ou instrumental. Quando um artista diz numa entrevista que o seu som é folk, ele provavelmente quer que entendamos que a obra dele é calcada no violão, nas baladas, numa vestimenta mais despojada, com temáticas cool, com pouco ou nenhum acompanhamento, mas se tiver, perambula pelo contexto acústico. Acredito que essa leitura começou a ser disseminada por influência de Bob Dylan na música contemporânea a partir da década de 60 do século XX, que se propagou através da mídia, do mercado fonográfico, e das turnês mundo afora.

Mas Bob Dylan estava inserido numa espécie de segunda geração de um revival da american folk music, por jovens americanos do norte, universitários, boêmios, sensíveis, críticos, que mesclavam as artes, que por sua vez, influenciados por nomes como Woodie Guthrie, Pete Seeger, Odetta e outros tantos, que por sua vez, já estavam exercendo uma revitalização da folk music desde os anos 40 do século passado. Essa revitalização consistia em fazer show onde desse, principalmente em manifestações em favor dos direitos humanos e trabalhistas, interpretando canções folclóricas, adaptando-as, mantendo muitos versos, mas também compondo novas frases com a mesma harmonia e melodia, ou alterando um pouco conforme a canção chegava nos ouvidos de forma oral, ou pelo rádio, ou em gravações. E esse movimento era essencialmente acústico.

Então, quando se fala num som folk hoje em dia, é quase certo que não tem a ver com o sentido inicial e etimológico da palavra, e sim, de um fator estético dentro de um formato musical. Mas se alguém disser que trabalha com música folclórica, quer dizer que o elemento principal é canção anônima, versos curtos, melodias simples com temática cotidiana, mas essencialmente temporal, composta, e/ou difundida, num tempo antigo, que remete a outros costumes que não o atual. E aí que vem o núcleo do meu pensar a respeito. Não tem, ou eu não conheço, um contexto cultural regional, que dê continuidade no elemento criativo das canções folclóricas. Ou seja, que mantenha a tradição oral, ou até fonográfica, de propagar músicas com versos, harmonias e melodias simples, mas que retratam um cotidiano atual.

Se tem uma coisa que faz esse papel hoje em dia, é o meme virtual. Um meme se propaga na internet que nem peste. E é amplamente repetido a exaustão, mas estão constantemente se modificando conforme a temática. Muitas vezes se mantém a mesma foto, ou um jogo de palavras, ou o sentido da piada, apenas trocando os personagens, ou a ação. Pode ser que eu esteja “mucho loco” também. Mas vem me ocorrendo esse pensar faz um tempo. Não nos apropriamos mais de melodias e versos populares para retratar o nosso tempo. Apenas reproduzimos um troço datado. Não menos importante. Mas estancamos esse processo cíclico de sabedoria popular, que em muitos casos, no num determinado tempo, vinha seguido de críticas, deboches, decepções, denúncias, angústias, alegrias, e por aí vai.

Hoje em dia usamos esses conteúdos somente para fins recreativos, e atividades infantis. Perdemos a capacidade de usar a canção folclórica para interferência no meio. Isso ficou a cargo dos memes. Seria o meme, uma genuína manifestação folclórica do século XXI?

OLY JR.
Músico/compositor auto-didata, atuante desde 1998 e ganhador de 4 Prêmios Açorianos de Música. É o autor da fusão “Milonga Blues”, misturando a milonga latino-americana com o blues norte-americano. Atualmente, além da carreira como músico, é estudante de curso de Música do IPA.

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