Por que Qorpo-Santo não participou do Partenon Literário?

Foto: Edu Oliveira/ Ilustração

Foto: Edu Oliveira/ Ilustração

Carlos Garcia

Qorpo-Santo e o Partenon Literário são contemporâneos. O primeiro era escritor e produziu a maior parte da sua obra nas décadas de 1860 e 1870. O segundo era um grupo de intelectuais que incentivou a produção literária e o pensamento crítico. Foi fundado e atingiu o auge das suas atividades também nas décadas de 1860 e 1870 . Fizeram parte da instituição os mais notórios nomes da literatura de Porto Alegre, com a única exceção do Qorpo-Santo. Ao menos não se sabe de qualquer registro que possa indicar a participação dele no Partenon Literário. Numa cidade ainda pequena e uma instituição tão aberta, qual a explicação para não ter acontecido a aproximação entre esses dois ícones da cultura de Porto Alegre?

Partenon

O Partenon Literário foi fundado em 1868, reunindo os intelectuais de Porto Alegre à época sob a liderança de Apolinário Porto Alegre. A instituição visava estimular os porto alegrenses ao contato com a literatura. E mais do que isso: proporcionar um círculo de conhecimento e saber. Para ajudar a divulgar suas ações e ideias, o Partenon criou sua própria revista. Além de literatura, a instituição usou o informativo para difundir os princípios defendidos pelos seus integrantes. Entre as bandeiras levantadas pelo grupo estavam ideias republicanas, abolicionistas e feministas. O Partenon Literário também oferecia uma série de atividades de ensino e cultura. Eram realizados debates, cursos, saraus e peças teatrais.

Leia: Porto Alegre e seu Partenon Literário

Foi na tribuna da instituição que teria acontecido o primeiro discurso proferido por uma mulher no Brasil. A responsável pelo fato foi a poetisa e professora Luciana de Abreu, que questionava o posicionamento da mulher na sociedade da época. Das iniciativas de destaque do grupo, merecem atenção as ações em defesa dos escravizados. Uma delas era a arrecadação de fundos para comprar alforrias dessas pessoas. Também podemos destacar, no campo do ensino, a implantação das aulas noturnas gratuitas, voltadas para a população carente. O curso oferecia classes de gramática, aritmética, geografia, história e francês.

Qorpo-Santo

Qorpo-Santo, conhecido originalmente como José Joaquim de Campos Leão, nasceu em Triunfo, em 1829. Mudou-se para Porto Alegre ainda jovem, com o objetivo de estudar. Começou com um emprego no comércio, mas logo se habilitou ao magistério e passou a dar aulas. Além da atividade docente, participava de um grupo de teatro e escrevia para a imprensa. Depois de casado, morou por cerca de três anos em Alegrete, onde foi jornalista, delegado e vereador. De volta a Porto Alegre, retomou sua carreira de professor.

Foi nesse momento, e isso era o início da década de 1860, que acontece a virada para baixo na vida de Qorpo-Santo. As pessoas a sua volta passaram a vê-lo com transtronos mentais, sintomas que foram confirmados pelos médicos de Porto Alegre. Sua mulher estaria querendo interditá-lo judicialmente para ficar de posso de seus bens. Depois de diversos diagnósticos positivo à sua fragilidade mental, Qorpo-Santo viajou ao Rio para um exame mais preciso. Na então capital imperial, os médicos contrariaram os resultados clínicos apresentados anteriormente. Ainda assim, quando retornou do Rio, foi processado mais uma vez e, nos novos exames, os médicos porto alegrenses bateram pé. Confirmaram que o escritor estava louco.

Bueno, então é por isso que Qorpo-Santo não participou do Partenon? Até pode, mas é pouco provável. O Partenon era uma instituição que demonstrava estar sempre de braços abertos à sociedade, como o fato de acolher mulheres e lutar em favor dos negros. Os sensíveis membros do Partenon provavelmente não acatariam a controversa decisão médica de que o escritor tinha enlouquecido. Até porque Qorpo-Santo, mesmo com o atestado clínico, ainda trabalhava na sua gráfica, o que demonstra que ele não estava tão fora da casa.

Ensiqlopèdia

Foi em 1868 que ele começou a impressão da sua obra, a Ensiqlopèdia ou seis meses de uma enfermidade. Nela, Qorpo-Santo reuniu todo o seu trabalho, dividido em nove volumes que foram publicados até 1873. A tal Ensiqlopèdia apresenta diversos tipos de textos, como poesia, peças de teatro, crônicas, uma pequena autobiografia, e até uma sugestão de reforma ortográfica.

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Merecem destaque os textos para o teatro. Como na época seu trabalho não teve notoriedade, já que era tido como louco, as peças ficaram às sombras por quase um século. Foram redescobertas somente na década de 1950 e republicadas em 1969. Os críticos e apreciadores chegaram a considerar que, com a “descoberta de Qorpo-Santo”, a história da dramaturgia estava sendo reescrita. Passou a ser apontado, desde então, como precursor do teatro do absurdo.

Embora o sucesso do trabalho de Qorpo-Santo tenha sido tardio, é improvável que os membros do Partenon o conhecessem apenas como professor. Sua Ensiqlopèdia foi publicada em Porto Alegre, portanto, era de conhecimento público sua carreira de escritor. Além disso, os homens interessados nas questões literárias, no caso os integrantes do Partenon, não seriam indiferentes às publicações do suposto maluco. Se não observassem o trabalho pela visão literária que os ligavam, no mínimo teriam interesse por pura curiosidade.

Prováveis razões

Questionei algumas pessoas que estudaram o Qorpo-Santo e outras que estudaram o Partenon Literário. Foram unanimes. Garantem que, em suas pesquisas, não encontraram qualquer documento que registrasse, ou ao menos desse pistas, da relação entre um e outro.

Foi no livro Coruja, Qorpo-Santo & Jacaré (LPM, 2013), do professor de literatura Luis Augusto Fischer, que encontrei a melhor resposta para o enigma. Primeiro, Fischer reafirma que a revista do Partenon publicou trabalho de “praticamente todo escritor disponível num raio de centenas de quilômetros”. Menos Qorpo-Santo. Em seguida, explica as razões mais prováveis para isso.

“Vistas as coisas à distância, é compreensível que não tenha havido diálogo: os associados do Partenon eram em sua maioria escritores de temperamento romântico, algo tardios em relação à França e mesmo à capital do país, embora certamente orgânicos em relação às demandas locais, ao passo que a escrita daquele atormentado José Joaquim era, o que dizer?, estranha. Nunca se ocupou de dramatizar ou figurar os temas da busca da identidade, brasileira ou gaúcha, que ocuparam seus conterrâneos”, registra Fischer.

O fato é que Qorpo-Santo parece que era um homem a frente do seu tempo no que se refere à literatura. O Partenon, por sua vez, podia até estar atrasado, mas cumpria com o seu papel. Era um momento em que o Brasil e o Rio Grande do Sul precisavam construir e consolidar uma identidade. E nomes como Apolinário Porto Alegre e Caldre Fião, aqui na província, contribuíram bastante para tanto. Qorpo-Santo seguiu por outro caminho e sua contribuição para a nossa cultura demorou até ganhar os merecidos louros.

carlos

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Um Comentário

  1. Belo trabalho de pesquisa Carlos Garcia. Temos um pesquisadora de Qorpo-Santo, a Maria Aparecida Dias, Cida Cias, de São Jerônimo qua juntamente coma Historiadora Margaria Tiburi também se SJ descobriram que Q-S foi testemunha principal de importante inventário de Estancieiro da região. Sabe-se que ele pertencia à Maçonaria, mas provavelmente não quis se valer da influência do grupo. O Partenon Literário pode ter perdido muito por não incluir em seu seleto grupo o nosso José Joaquim de Campos Leão. Abraço. Odila L. Rubin de Vasconcelos – Conselho Gestor da FCQ-S / Triunfo / RS

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