Rock de Galpão: Hiperpampa

Thiago Suman

Pintar sua aldeia pra se fazer universal, assim o escritor russo Liev Tolstói estabeleceu um conceito que pigmenta muito dos regionalismos, das influências de uma aquarela cultural que compõe o vitral da cultura brasileira, por exemplo.

Já, por outro turno, Mauro Moraes, compositor gaúcho, natural de Uruguaiana, na extrema fronteira oeste do sul do país, escreveu certa vez “Pensei que fôssemos bando, nômades, músicos, mouros e manos, Fulanos, sicranos, sábios paisanos no despertar das manadas”.

Assim, do soviético ao uruguaianense, abro o texto de apresentação de um espetáculo que tive oportunidade de absorver. Falo do Rock de Galpão, no Theatro São Pedro. Sublime, encantador e visceral.

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O palco, um templo sagrado da arte; e sobre ele, um bando, uma tribo, na aldeia de fulanos e sicranos que se reúne pelo chamado mais forte da arte. É daí a proposta do Estado das Coisas: o que há de mais transcendental no conceito da arte, pretendendo visitar o cancioneiro, revigorar a história, sulcar do passado tudo que pode gerar semente e fruto pro amanhã. A princípio, um tradicional repertório de clássicos da música produzida no Rio Grande do Sul, porém, o que os diferencia, profundamente, são roupagens modernas e contemporâneas, o novo dentro do velho. As canções, insinuando levadas de rock em solos de guitarra elétrica, quebram as correntes e cadeados de meros rótulos conceituais, sem se reduzirem aos gêneros e nichos de mercado. Méritos, portanto, ao Rafa Schuler, o guitarrista, que é cheio de virtuose e vibração durante todo o show. Alexandre Kó, nos teclados e Gustavo Viegas, no contrabaixo, dão piso e telhado para essa casa de sensações que é o Rock de Galpão.

Então, da nostalgia do cancioneiro regional até a imersão das influências guaranis, encapsulados por modernidade e arrojo, do bater pé no compasso, sendo alma, ao cantar junto de olhos fechados, sendo coração. Paulinho Cardoso é, em palco, o pêndulo que representa o trânsito livre da arte em seu tempo. Explico: ele produz, com seu acordeon a textura regionalista que tonifica a ideologia antropofágica do grupo, revisitando raízes da cultura colonizadora, pois sua gaita é fluente em vários idiomas musicais, passando da música gaúcha –  com extrema habilidade – até esse repertório de passadas modernas num instrumento pouco fértil no rock, mas que colore de modo ímpar tudo isso que a moçada do conceito hiperpampa prega e trabalha com afinco. Na “cozinha”, uma Taba e uma Senzala de couro “cru” comendo e evocando toda e qualquer força pra cima do palco; falo aqui do Diablo Jr e do Daniel Vargas (convidado especial), com bombo-leguero, perfumarias, bongô, e do Guilherme Gul, com a polarização da bateria, mas, em especial, com a mística do derbak (instrumento de percussão egípcio) que acalanta e pontua o ritmo durante todo o tempo, dando um tempero que poucas vezes já experimentei.

Não obstante, destaco as participações especiais que, em suas diferenças, representam tudo que é embandeirado pela mescla, pela releitura do Rock do Estado: Frank Jorge, rockeiro de carteira, bebeu, neste espetáculo, do nativismo em violão e gaita e logo empunhou guitarra punk.  Ainda, a presença marcante de Karen Volkmann, do erudito ao chão; a moça, cantando em guarany, fez a prece ave Maria em sotaque índio, a ecoar um  tom de catedral e bonita liturgia, criando intensa catarse no público que, por ora, esqueceu que estava nas encantadoras instalações do São Pedro, já que se imaginou em cenário missioneiro de outro tempo. Depois, com melismas do canto indiático, nos fez mergulhar embevecidos em uma sensível interpretação, quando a pequena cantora de gigante talento se derramou em voz e jogou o número pra cima quando, logo, emitiu a força e pulso do bombo-leguero, somando aos demais, num peso impressionante no palco.

E Hique Gomez, dispensa redundâncias a respeito de um artista que tem nos poros e nos músculos, nos nervos e nos olhos, a arte, o ser e estar a serviço da arte. É imprescindível que fosse ele a assinar a “gerência” dessa moçada, ai tem-se o ânima pra que a dinâmica se desse por completo. No violino, encantador, no bombo, surpreendente. De cara pintada feito membro de uma gente destemida, eis o gesto que traduz: Hique é da aldeia, a tribo do Rock, do galpão, das artes plásticas, do canto, do lírico, da gente, de todos nós.

E, por fim, chegamos ao Tiago Ferraz: artista iluminado que fez aldeia com toda essa tribo e que canta sorrindo. Justifico tal definição: tenho comigo que o artista entoa sua arte com sorriso no rosto só quando se é completo, que insufla a alma antes dos pulmões, que afina o espírito antes da voz, que canta seu tempo, seu povo, sua história antes de letras e verbos, que aprende sobre a vida antes de melodias e arranjos. Esse é o Tiago. Abençoado por reunir todos na taba da arte, que incendiou o teatro com a chama que não se apaga: a da virtude de ser o elo entre o ontem e o hoje com sua musicalidade, com sua potência, com sua explosão. Uma síntese: é ele a matriz deste uber-nativismo.

Um espetáculo, em resumo. Vida longa ao Rock de Galpão. E que saibamos derrubar, como eles fazem, nossas pré-definições sobre arte, iconoclastia campeira, e sobre pessoas, inclusive. Que não decantemos e não apartemos; que saibamos aglutinar, misturar e gerar. Que saibamos, enfim, fazer parte do todo e ser o todo da parte de um universo que é nossa aldeia, sem divisa nem fronteira, e que sejamos manos no despertar das manadas.

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