Segunda pátria: os brasileiros que queriam ser alemães

Carlos Garcia

O que teria acontecido com o Brasil se Getúlio Vargas tivesse aderido oficialmente à causa nazista no início da Segunda Guerra? Não se sabe. A única maneira de se ter uma ideia do que poderia ter ocorrido é fazendo um exercício de imaginação e enxergar as diversas hipóteses. É exatamente isso que Miguel Sanches Neto faz no romance Segunda pátria.

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Ao contextualizar a situação política e social do final dos anos trinta e início dos anos quarenta, o autor cria uma base consistente para contar a história de dois personagens vítimas do acordo firmado entre Vargas e Hitler. Naquele período, o nazismo estava ganhando, de fato, simpatizantes no Brasil, em especial nas colônias alemãs do sul. O que o escritor paranaense adiciona na história, de forma ficcional, é a solidificação do domínio nazista no país. A causa de Hitler foi crescendo com todas as suas intolerâncias e preconceitos. Vargas, que já tinha ideias parecidas com as do ditador alemão, principiou a transformação do país em um braço do Terceiro Reich. As pessoas falavam alemão, tinham gosto pelo militarismo e odiavam mestiços.

No centro da narrativa encontram-se Adolfo Ventura e Herta. Ainda que estejam diretamente ligados um ao outro, só contracenam juntos em uns poucos flashbacks. Mas também nem precisa. O leitor não vai demorar para entender que a histórias dos dois estão amalgamadas. Quando percebe isso, vai manter os dois unidos até o final, mesmo que estejam sempre separados fisicamente.

Adolfo Ventura é um negro formado em engenharia e mantem um cargo público em Blumenau. Sim, a maior parte da história se passa em Blumenau, cidade de forte colonização alemã. Adolfo se considera verdadeiro germânico, fala a língua de Hermann Hesse e do goleiro Neuer e segue a fio os mandamentos nazistas. Mas é um negro. E, para o rebanho do Fuhrer, ser negro era um pecado. Por conta disso, virou prisioneiro junto com tantos outros descendentes de africanos em uma fazenda controlada pelo partido nazista. Entregou seu cargo, casa e biblioteca para os brasileiros que queriam ser alemães. Foi preciso deixar para trás até mesmo seu filho. O bebê ficou com os avós, que tiveram que fugir da cidade.

Herta é descendente de alemã e desde cedo militou na juventude hitlerista. Chegou a viajar para Alemanha e conhecer o ministro de Propaganda Joseph Goebbels. Dona de beleza exuberante, Herta arrebata corações e passa o rodo na população masculina de Blumenau. Mas é Adolfo que ela ama e com Adolfo que ela teve um filho. O relacionamento dos dois acontecia às escondidas. Não podia, na visão dos nazistas, um negro e uma branca formarem um casal. Ter um filho juntos era tirar a pureza dos arianos. O bebê, portanto, ficou com Adolfo, e Herta foi enlouquecendo por causa disso.

Um dos trechos que merece destaque é aquele que tem Porto Alegre como pano de fundo. Nessa parte, Herta deixa Blumenau para cumprir uma missão importantíssima para o nazismo. Ainda que sem saber, hospeda-se no antigo hotel Majestic e fica aguardando o dia em que será amante de Hitler. Que loucura! Mas é isso mesmo. A coisa acontece porque o Hitler vem para Porto Alegre, onde assina, com Vargas, o acordo da parceria entre Brasil e Alemanha. É realizado um grande evento na Praça da Matriz e a população toda se mobiliza para ver e ouvir os dois ditadores.

Na noite anterior a toda essa festividade, Hitler se hospedou nos porões do palácio Piratini. E foi nos porões do palácio que ele deu aquela bimbada com Herta. Foi escolhida e trazida a Porto Alegre pela Gestapo, que organizou minuciosamente o encontro. A partir de então, Herta passou a sentir repulsa por Hitler e o nazismo.

Gostei que o autor tenha usado, nesse trecho, as passagens subterrâneas da cidade como cenário. São lendários os túneis secretos sob o centro de Porto Alegre. E, claro, por se saber pouco sobre eles, se eles existem de fato ou não, acabou se criando essa mística em torno disso. Mas é um elemento pouco explorado pela literatura gaúcha. E, convenhamos, pode até ser que o subterrâneo de Paris, Constantinopla, Roma ou Londres estejam batidos e desgastados na literatura. Mas o de Porto Alegre não.

Por outro lado, é o trecho mais mentiroso da história. O autor foi longe demais. Sabemos que Hitler nunca esteve em Porto Alegre e não rolou essa coisa toda de parceria, evento com discurso e tudo mais. Entendo que a ideia é imaginar o que poderia ter sido. Mas não sei, nessa parte, não consegui mergulhar na história e acreditar nela.

Já quando fala de Adolfo, o autor consegue fazer com que o romance cumpra um papel importantíssimo na literatura, que é a reflexão a respeito do racismo. Começa na infância do personagem, quando ele precisa tirar proveito das suas habilidades nos estudos para se incluir na turma do colégio particular que lhe é bancado por um padrinho. Em seguida, já adulto e com a ascensão do nazismo, não consegue se manter no emprego, mesmo sendo um engenheiro prestigiado. Toda população de influência alemã na cidade vai o excluindo cada vez mais. Um soldado nazista chega a cuspir-lhe num dia que andava pela cidade com o filho no colo. Desrespeito pior acontece com sua mãe, que saiu à rua numa noite e um grupo de nazistas bêbados urinaram nela. Tudo isso porque Adolfo e sua mãe não eram de uma raça considerada legitima por aqueles seguidores de Hitler.

Logo Adolfo foi mandado para uma fazenda ou colônia penal que era uma espécie de campo de concentração. É nesse ponto que mostra a quantidade de negros que estavam sofrendo o mesmo que ele. Mais do que a questão racista, nesse trecho, o autor também denuncia as atrocidades cometidas com os homossexuais.

Nesse ponto, Sanches Neto acerta o tom. Claro que ele se concentra na questão nazista, mas os atos racistas que aparecem ficcionalmente na narrativa não passam de um reflexo que pode ser visto ainda na sociedade atual. Pode ser que não existam mais campos de concentração, como os do texto, mas ainda há quem mantenha o pensamento de que o negro deve ser excluído da sociedade. Não há exemplo melhor e mais atual que a atriz Taís Araújo e o jogador de futebol Michel Bastos, que sofreram ataques preconceituosos na internet.

Por outro lado, existe uma preocupação do autor em não incluir todos os alemães no mesmo saco. Não é porque os simpatizantes de Hitler exaltam a pátria e a língua alemã, que todos alemães estão no mesmo time. Ele faz questão de deixar claro que os vilões da história são os nazistas e não o povo alemão de forma geral. E isso é fundamental para que o leitor não caia na velha armadilha da generalização. Nesse quesito, o escritor foi preciso. Mexeu na colmeia, mas teve todo cuidado para que o público não fosse picado.

Também é interessante como Sanches Neto estrutura a narrativa. A divisão em quatro partes passa a impressão, inicialmente, de que cada uma delas é independente. Na primeira parte é contado um trecho da história de Adolfo e, na segunda, de Herta. Esses trechos são autossuficientes. Poderiam ser considerados dois contos grandes ou duas novelas pequenas. Claro que o leitor não é bobo e já consegue perceber a ligação entre os dois personagens principais nesses dois capítulos iniciais. Mas é só na parte seguinte que a relação entre Adolfo e Herta se torna evidente. Mesmo assim, o autor resiste ao máximo em explicitar esse vínculo.

O texto em si é meio pesado. Ainda que a história seja boa, a leitura é lenta. Se tivesse sido mais enxugado, certamente o texto fluiria melhor. Há um trecho meio estranho no terceiro capítulo: quando a narrativa está na fuga dos negros do campo de concentração, surge uma explicação que aconteceu uma fuga assim de verdade e tal. Mas parece totalmente fora dos padrões do restante do texto. Tive a impressão de ser uma informação verídica e que não fazia parte do romance. Uma informação interessante, é verdade, mas que talvez ficasse melhor em uma nota de rodapé.

Entre pontos altos e outros nem tanto, é possível fechar o Segunda Pátria com um saldo bastante positivo. Afinal, o objetivo foi alcançado. O exercício de imaginação e reflexão de como poderia ter sido se o Brasil tivesse aderido ao nazismo foi feito com sucesso. É sempre importante olhar a história para aprender com os erros do passado. Nesse caso, a história verdadeira mostra que acertamos. O romance de Sanches Neto alerta para o erro que poderíamos ter cometido e escapamos. Na dúvida, é bom sempre manter um olho no passado e o outro no presente.

carlos

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