Thiago Suman | Belchior: Das Coisas que aprendi nos discos

Belchior (1946 - 2017)

Belchior (1946 – 2017)

Thiago Suman

Hoje quero falar das coisas que aprendi nos discos; da obra, do mosaico-foto musical, de tessituras e identidade legados por Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle, ou, simplesmente, Belchior.

Não me cai bem essa prateleira existencial que carece ser povoada com um Souvenir da Lembrança. Isso, por exemplo, imprimiu em muitos, nos últimos dias, uma necessidade coletiva de transe catártico na qual todos dividiram em suas páginas, timelines e afins, memórias vividas – ou não – com o bigodudo místico. “Eu abriguei, convivi, vi, estive, toquei, respirei o mesmo ar que Belchior”. Isso prova o quão transcendental é o cearense que, da morte, transplanta-se etéreo pra habitar eterno o panteão do cancioneiro nacional.

Bem, neste caso, o que me toca em relação a “Belchi” , de fato, é a condução da sua obra, sem permitir a interferência industrial na sua forma de conceber arte. Foi, portanto, orgânico e fiel a seu modo de criação, inatura, e isso não quer dizer que não teve aderência de público, óbvio. Ao contrário, sua recepção só reforça a potência de quem tem algo a dizer com lirismo e consciência, mas, sobretudo, tão humano, tão divinamente humano, que uma nação inteira consumiu, em longos goles, sua identidade poético-musical nos últimos 40 e poucos anos de América do Sul.

Belchior, bem se tratando desta tal identidade, não escondeu o Ceará em suas canções. Ao contrário, soube cantá-lo íntima e genuinamente. Porém, acima de tudo, não há como negar, soube cantar o Brasil na proposta maquiveliana de ser – afastando o classicismo do “deve ser” e golpeando a projeção distópica do torrão de Pindorama, isso tudo, sem deixar, jamais, de personificar o tipo ibero-americano, contemporâneo a Mercedes, Galeano, Jara, Yupanqui, Llosa, e outros. E, nós, brasileiros, no contra-fluxo sul-americano, somos hesitantes sobre tatuarmos, nas idéias ou canções, o pertencimento continental. Parecemos, assim, negar nossa latinidade neste complexo vira-latista que, desde muito, afrancesou, europeizou nossa arte e sociedade numa colonização dos fatos. O artista é a resistência, capta sua época e a futura, e se propõe em cantá-la, por isso era ele, Belchior, uma antevisão colando esse pedaço de América em nós.

O bardo cearense guindou o regionalismo de Fagner, Ednardo e o “Pessoal do Ceará”, mas ecoando Caetano, Chico, Tom Zé, com ruídos e colagens tropicalistas, absorvendo a devora erudita e popular, em sua antropofagia tardia. Com isso, incorporou em suas canções desde Drummond, João Cabral de Melo Neto até a mais alta filosofia ocidental.

Me permitam um aparte: embriagado dos discos de Belchior, nesse momento, escrevo as palavras a seguir para apresentar testemunhas-chave – e autoridades sobre o assunto, para legitimarem o que digo:

Primeiro, convido o crítico musical Juarez Fonseca, que na extrema-unção da arte, autoriza a passagem corpórea da poesia e da canção belchioriana e canoniza a coletânea desse rapaz latino-americano:

“Lavrar a palavra a pá, como quem prepara um pão”. “Eu sempre estou em perigo e a minha vida sempre está por um triz”. “Ando pós-modernamente apaixonado pela nova geladeira, primeira escrava branca que comprei, veio e fez a revolução”. “Esses senhores se sentam à mesa, decidem por nós… Negociações… Estúpidos e idiotas da política! Dólares, tanques e mísseis. Meu coração tropical não aguenta. E o Cruzeiro do Sul, que não nos orienta?”. “Os filhos de Bob Dylan, clientes da Coca-Cola; os que fugimos da escola voltamos todos pra casa. Um queria mandar brasa; outro, ser pedra que rola… Daí o Money entra em cena e arrasa. E adeus, caras bons de bola”. “E então? Venceremos o crime? Já ninguém mais nos oprime. Pastores, pais, lei e algoz? Que bom voltar pra família! Viver a vidinha à pilha! Yuppies sabor baunilha. Era uma vez todos nós!”. “E então, my friends? Bastou vender minha alma ao diabo e lá vêm vocês seguindo o mau exemplo, entrando numa de vender a própria mãe! Alguém se atreve a ir comigo além do shopping Center? Hein? Hein? Donde están los estudiantes? Os rapazes latino americanos? Os aventureiros, os anarquistas, os artistas, os sem-destino, os rebeldes experimentadores, os benditos malditos, os renegados, os sonhadores?”. “Mas ando mesmo descontente, desesperadamente eu grito em português”.

Por onde quer que se chegue na obra de Belchior, dos anos 1970 aos anos 2000, ela terá a coerência dos trechos de letras que peguei em vários discos. Ouvi cada álbum nas épocas em que foram lançados, mas examinando-os agora, em conjunto, essa coerência adquire um status perturbador. Apoiado em vasta leitura de poetas, filósofos e jornais, ele esquadrinhou seu tempo mais do que qualquer outro compositor brasileiro. Traçou um panorama pessimista, amenizado por um laivo de humor, ironia e laissez-faire. Eu não tinha me dado conta de que os anúncios de seus dez anos finais de vida fora da “normalidade” já estavam em seus discos. Não sei se consciente ou inconscientemente, estavam mesmo todos lá. Não será difícil a um psicanalista arguto analisar o comportamento de Belchior tendo em conta suas canções, muitas vezes discursos filosóficos travestidos. Praticamente todos os discos traziam (trazem) a ideia do inconformismo, do sujeito que se sente pressionado pelas convenções e que, de alguma forma, cogitará escapar disso. Não fez outra coisa o Belchior escondido dos últimos dez anos. Se era ele quem conduzia o processo, ou se sua mulher Edna, nunca saberemos. Mesmo que Edna fale. Mas diante da morte, isso já não é relevante.

Juarez Fonseca

 

Miguel Arraes, Belchior e José Fogaça - comício das Diretas Já , na Praça da Sé , 1984 (Fogaça/Arquivo pessoal)

Miguel Arraes, Belchior e José Fogaça – comício das Diretas Já , na Praça da Sé , 1984 (Fogaça/Arquivo pessoal)

Já, por seu turno, meu outro convidado que partilha, assim como Fonseca, verbos sobre Belchi, é o político e compositor, José Fogaça. Este, resgata reminiscências do artista resistente e arrebata a gente, batizando-o à palo seco no panteão das belas-letras do país:

Belchior era um ser sem amarras, um homem livre e independente, no sentido mais mais completo que essas duas palavras podem ter. Mas não era um homem indiferente à realidade viva que o cercava. Em 1984, integrou-se plenamente à campanha das Diretas. Alguns anos mais tarde, eu o convidei para um depoimento em uma Comissão que estudava os direitos autorais no Brasil. Belchior compareceu com imensa boa vontade e com maior disposição de contribuir. Enfim: era um homem atento e comprometido com questões de seu tempo. Como poeta e compositor, o que penso é que Belchior tem lugar na mesma galeria em que colocamos Castro Alves, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac e Mário de Andrade.

José Fogaça

 

E por fim, o poeta, escritor e professor de literatura, Guilherme Suman, empresta pra esse debate, sua leitura do que foi artisticamente, Belchior:

E, como “viver é melhor que sonhar”, nesse Brasil-onírico, prefiro a realidade do que a pasteurizada alienação televisiva que nos coloca diante da arte pré-pronta e de uma vida da ficção. “Por isso cuidado, há perigos na esquina, nos becos, nos guetos, nos condomínios, no senado, nos partidos repartidos, nos canais, enfim. “O sinal está fechado “pra velhos em filas imensas – cada vez mais longas – da tal previdência e pra jovens, desde sempre. Porém, “Você me pergunta pela minha paixão”, eu digo: é a coragem de gente que, assim como Belchior, longe da perfeição, sente tudo na ferida viva de seu coração.

Guilherme Suman

Finalmente, Da vida pública ao ostracismo obscuro – à la Van Gogh -, vida e morte criam um tecido delicado sobre Belchior. Esse sudário o encobre com a imortalidade que só a arte garante. A metafísica justifica o que o limite da visão não alcança.

THIAGO SUMAN
26 anos, natural de Porto Alegre, radialista, indicado cinco vezes consecutivas ao Prêmio Press de Jornalismo. Narrador e apresentador da Rádio Grenal, e também professor de filosofia e sociologia dos cursos pré-vestibulares Fenix e Unificado e como repórter, correspondente freelancer do tabloide Daily Mail, da Inglaterra. Como compositor, com 11 anos de trajetória, assoma mais de 100 registros em CDs, tendo sido consagrado vencedor do maior festival de música do Rio Grande do Sul, a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, em 2009. Thiago Suman escreve para o Culturíssima sempre no primeiro sábado de cada mês.

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