Thiago Suman | O Julgamento de Sócrates – Do autoconhecimento ao pensamento crítico

Tonico Pereira em cena. (foto: Antônio Silva)

Thiago Suman

Que Tonico Pereira é um dos mais carismáticos e consagrados atores da cena brasileira da última metade de século, já se é sabido. Com veia cômica e trânsito no tragicômico, esteve nas telas da televisão e telonas de cinema de 1975 até agora, em quase todos os anos (com raros períodos de recolhimento); representou de Shakespeare a Érico Veríssimo. Porém, para brindar o cinquentenário de carreira, foi beber na fonte mais cristalina do pensamento ocidental: Sócrates. Isso, em um formato nunca antes experimentado: o monólogo.

Tonico assumiu a proposição do roteirista Ivan Fernandes de texto direto, com um cerne crítico e atemporal e com mensagem resoluta. O ator dirige com o próprio roteirista este passeio reto pelo diálogo apresentado em Apologia de Sócrates, aonde Platão, aluno mais brilhante do empírico filósofo, detalha os argumentos expostos pelo mestre em sua própria defesa contra as acusações que acabariam lhe condenando à pena de morte. O meio fatal: ingestão de cicuta.

Sócrates foi sentenciado por júri popular grego, mesmo expondo com primazia argumentos que esvaziavam as acusações de Ânito, Meleto e Lícon. Estes o rotulavam corruptor da juventude ateniense nos critérios sociais, religiosos e tradicionais. Ainda, acriminavam-no de negar os deuses oficiais do Estado. Enfim, Sócrates foi bode-expiatório dos interesses de uma elite política que chafurdou motivos para silenciar o pensamento crítico que trazia riscos de subverter a prática social da época.

Ao ler esse brevíssimo resumo da obra de Platão, você, caro leitor ou leitora, imediatamente recorre a fatos acrônicos de líderes políticos, humanitários ou sociais, desde os que descerraram as vendas dos olhos das pessoas do seu tempo e por tal postura foram conduzidos ao exílio, ao extermínio, ao descaso, até o banimento da história. Exemplos didáticos: Mandela a Jesus Cristo; de Sócrates a Chico Mendes…

Tonico é socrático ao extremo: abre a peça reconhecendo e valorizando os tantos “Sócrates” de sua trajetória, desde pessoas que conhecera na infância – um sapateiro – e na juventude, um advogado, entre outros ‘professores da vida’.

Percebeu-se sempre ignorante e, por tal sabedor que nada sabia, poderia saber além na mais legítima mensagem que atravessa milênios, legada por esse totem do criticismo. Tonico admite não ter se amparado em títulos nem diplomas, cita a experiência orgânica de uma vida em comunidades, entre becos, prostíbulos, cochias e submundos e o desaguar para a compreensão das coisas como de fato elas são, sem o véu da arrogância dos sabedores.

Eis então que começa o espetáculo…

O breu no fundo de cena, o ator em vestes simplórias, tendo para si uma única cadeira e o famigerado cálice de veneno. É a inscrição inicial que sinaliza cenário e figurino para a potência posterior: Tonico imerge no pensamento e acaba desnovelando as teses mais profundas em argumentos de autoconhecimento – lição que Sócrates buscou em escritura no Oráculo de Delfos e deixou para a posteridade – enquanto isso, trança – com fumos de personalidade deveras autêntica – as falas do pai da filosofia com os fatos e acontecimentos mais recentes. Das fétidas articulações políticas aos ditames de navalha do capitalismo selvagem, passeando pelo autoritarismo religioso ao passo em que desnuda, em puras mensagens de reflexão socrática, tudo que diz respeito ao Brasil de agora.

Com audácia, em tempos que se requer coragem, Tonico, no auge de 70 anos – faixa etária em que o maior dos filósofos foi condenado e executado – não se constrange ao expor nomes, tonificando de humor e ironia (outro legado do seu ídolo da filosofia). A despeito disso, o deboche aos regimentos dos líderes religiosos cuja conduta é – e muito! – questionável: elencam-se os pastores Silas Malafaia e Edir Macedo; ou o escárnio sobre o comportamento dúbio e soturno do juiz e ministro Sérgio Moro; cita, ainda Zezé di Camargo como representante de uma classe artística acrítica, amorfa e sem postura de qualidade; faz troça do deputado Kim Kataguiri, um dos nomes mais fortes do MBL (Movimento Brasil Livre), apresentando-o como estúpido e sem lastro de entendimento político-social, chegando a clamar pela justiça (maior obsessão socrática) em nome de Marielle Franco, vereadora defensora de pautas sociais que foi executada em Março de 2018.

Tonico é impetuoso, vem e diz, sem receio, tudo o que deseja dizer, inclusive estimulando oposição. Resumidamente, convocando a plateia e encorajando a desdizer o que dissera – até evoca Raul Seixas – nessa sina da metamorfose de si, juramentando dessa maneira as lições introduzidas pelo pensador grego que, substancialmente, motiva a peça.

O sagrado Theatro São Pedro vira uma Ágora em duas sessões lotadas. Ali, paira uma atmosfera de filosofia, criticidade, gracejos bem humorados, com coragem política e humana e gigantismo em cena por meio de texto limpo e curto nos 55 minutos de peça.

Tonico, enfim, comemora aniversário de carreira e quem está presenteado é o público que precisa muito disso nestes tempos turvos.

Contudo, só sabemos que nada sabemos e nos resta conhecer a si mesmo para buscarmos justiça, amor, verdade e sabedoria

THIAGO SUMAN
28 anos, natural de Porto Alegre, radialista, indicado cinco vezes consecutivas ao Prêmio Press de Jornalismo e detentor do Prêmio ARI, é correspondente do Daily Mail, da Inglaterra. Professor de filosofia e sociologia e diretor do Solução Vestibulares; Como compositor, com 13 anos de trajetória, assoma mais de 100 registros em CDs, tendo sido consagrado vencedor do maior festival de música do Rio Grande do Sul, a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, em 2009 e com primeiro lugar e melhor letra do Musicanto Sul-Americano, em 2018. Thiago Suman escreve para o Culturíssima sempre no primeiro sábado de cada mês.

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