Thiago Suman | Protestos na Avenida já conheço de outros Carnavais

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Desfile da Paraíso de Tuiuti (foto: MAURO PIMENTEL -AFP)

Thiago Suman

O processo criativo de samba-enredo sempre me chamou atenção.

Sou compositor há quase 13 anos, com centenas de obras feitas em parceria, a maioria delas com meu irmão, mas também com outros tantos letristas, melodistas e arranjadores, porém, poucas vezes com um contingente tão grande quanto costumam ser os coletivos de compositores que envergam os sambas de avenida.

Sempre gostei de carnaval. Sempre me empolguei com a ideia de ter um samba na avenida e esse é um sonho que mantenho. E quanto mais ouço o samba da Beija-Flor desse ano, remonto o frisson dessa apresentação e da hecatombe promovida pela Tuiuti, mais releio os modais de comunicação da arte carnavalesca.

É arte popular. Expressão de povo. Muitas vezes acaba escangalhada pela imperiosa ideia dominante das classes igualmente dominantes de que o popular é frívolo, desinteressado, raso, incauto e customizado pela vulgaridade. O carnaval profano é comunhão, é libertino, mas também é libertário. É sincrético, é expressivo… é manifesto – social, cultural e existencial -, é reflexo. E por ser reflexo é que me debruço nesse texto.

A gênese da avenida sempre foi a mais rica vertente da escola popularesca. A da rua. As lições de história, geografia, economia, filosofia e literatura, tudo isso acolhido por ritmo frenético e alucinante das orquestras de couro, dos sotaques de senzala e taba, da negritude matriz e matiz do nosso povo e da ameríndia natureza de nossa gente.

O sincretismo da avenida não é só religioso. Não é só ali que uma Pietá negra encoberta pelas páginas de Carolina de Jesus podem transbordar. É ali que intelectuais empíricos da viela, da favela, do barracão, se encontram com letristas, filósofos, pensadores, todos eles doutores e sabedores de sambas, de bambas, enredos, segredos, mazelas e amores.

E os protestos sociais SEMPRE. Eu disse SEMPRE estiveram emoldurados na proposta das escolas. E a resposta é simples:

Escola de samba é agremiação de comunidade. Resistência social vem da base, logo, da comunidade. Não é por motivo qualquer que o DOPS afivelou a ideia de que os hinos das escolas eram subversivos e monitorava os ensaios.

E que a Império Serrano gritou na avenida ”EU QUERO” em 1986 no pós-ditadura, com coragem e resiliência: “Quero nosso povo bem nutrido /O país desenvolvido / Quero paz e moradia /Chega de ganhar tão pouco /Chega de sufoco e de covardia”.

Não é por acaso que antes disso a Vila Isabel, em 1980, entoou o enredo “Sonho de um sonho” que escancarava a necessidade da prisão sem tortura. Que, em 1981, a Unidos da Tijuca nos brindou com o enredo “Macobeba – O que dá prá rir dá prá chorar”, que em 1985, a Caprichosos de Pilares deu tapa de mão aberta no cenho fechado da ditadura com “Por falar em saudade”, convocando indignação sobre escolha de presidente vetada um ano antes pela derrocada da emenda Dante de Oliveira. E aqui seguiríamos com Martinho da Vila e sua “Onde o Brasil aprendeu a liberdade”, poderíamos voltar pros anos 60 com “Heróis da liberdade” da Império Serrano e depois nos 80, quando a mesma Império propôs reflexão sobre a identidade cultural no processo de criação das escolas e seus conteúdos poéticos com “Bumbum Paticumbum Prugurundum”. E 1989 a incomparável “Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós” da Imperatriz, o que dizer?

Poderíamos seguir aqui destrinchando ano após ano. Tema sobre tema.

Há resistência, há religião e política, nem sempre há o pão na mesa, mas há formas de reclame: Enxada pro campo, vassoura pra gari, trabalho pra quem precisa, caneta pra quem escreve, samba no pé pra quem sorri e sobrevive.

Tuiuti e Beija-Flor mantiveram a linha de abordagem constante dos processos criativos de enredos de carnaval. É isso que quero lembrar. Não há nada novo sob o sol. Não é o povo que acordou agora. É a base que saltou quando o médio ficou amorfo e a alta extrapolou.

Não há ingenuidade de minha parte que desconsidere possíveis financiamentos e interesses específicos nas críticas sociais de canhões apontados para pontos específicos. Mas, concordemos que, independente do partido político, do fluxo ideológico, do pertencimento de cada um de vocês que perseveram na leitura até aqui…independente disso tudo, concordemos em uníssono que nenhuma crítica social que convoca milhares para uma avenida é isolada e oca.

Sejamos mais contingente. Sejamos mais gente – como a gente – que pensa diferente, mas que saibamos pisar em frente, sem medo, com samba-enredo que tenha o que dizer e que marque quem ouviu, de canto e de amor, afinal como falou Beija-Flor: ‘O teu livro não sei ler, Brasil.”

THIAGO SUMAN
27 anos, natural de Porto Alegre, radialista, indicado cinco vezes consecutivas ao Prêmio Press de Jornalismo. Narrador e apresentador, com passagem pela Rádio Grenal. Professor de filosofia e sociologia dos cursos pré-vestibulares Fenix e Unificado e como repórter, correspondente freelancer do tabloide Daily Mail, da Inglaterra. Como compositor, com 12 anos de trajetória, assoma mais de 100 registros em CDs, tendo sido consagrado vencedor do maior festival de música do Rio Grande do Sul, a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, em 2009. Thiago Suman escreve para o Culturíssima sempre no primeiro sábado de cada mês.

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