A franqueza de Leo Felipe

Foto: Daniel C. / Reprodução Facebook

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Luiz Paulo Teló

É difícil imaginar que, em uma situação formal, como conceder uma entrevista, ou escrever um livro, Leo Felipe seja tão franco como foi em A Fantástica Fábrica (2014), quando contou, em primeira pessoa, com uma narrativa reta, sem floreio nem autocensura, a história do clássico bar Garagem Hermética – que abriu ainda adolescente, com dois amigos, em 1992. Nessa conversa com o Culturíssima, entretanto, Leo, com sua receptiva informalidade, foi bem franco.

Filho de pai mineiro, o jornalista, DJ, escritor e produtor cultural foi morar em Belo Horizonte com um ano de idade. Voltou para a capital gaúcha com 14 anos. Para uma geração mais velha, ele é o cara do Garagem. Para uma geração mais nova, o cara do programa Radar, da TVE. Hoje, além de ser diretor e curador da galeria da Fundação ECARTA, faz parte do projeto mínima.fm, rádio web que completará 4 anos em setembro.

Leo Felipe nos falou um pouco dos anos loucos do velho casarão da rua Barros Cassal, do processo de criação do livro e também sobre alguns assuntos mais cabeludos. Fomos do machismo do rock gaúcho, passamos pela doentia beatlemania porto-alegrense e chagamos na polêmica participação das Putinhas Aborteiras na TVE.

Culturíssima: Quando vocês decidiram abrir o bar, vocês tinham algum planejamento para aquele empreendimento que veio a ser o Garagem Hermética?

Leo Felipe: Foi no barrigaço. Não tínhamos a menor noção de administração de empresa, de toda essa ciência que envolve montar e manter um negócio. Era muito mesmo essa vontade de ter um lugar em que pudéssemos nos reunir, conversar, tocar com as nossas bandas e ouvir as músicas que a gente estava afim. Não era um viés comercial, era um viés existencial.

Culturíssima: Sempre teve essa vontade de trabalhar nesse meio cultural?

Leo Felipe: Na verdade eu estava no banco, comecei com 15 anos, bem novo. Já estava há 3 anos lá, não aguentava mais. Queria muito trabalhar com cultura, com artes. Cheguei a fazer o vestibular pro Instituto de Artes, mas em função do Garagem, tomei um trago num dia e perdi uma das provas. Mas sempre tive vontade, tanto é que eu falo no livro que a coisa do bar era tentar realizar aquela obra de arte que eu buscava realizar, que não sabia qual era, nem como. Então era um pouco dessa ideia romântica mesmo, não era um negócio, era um estado de espírito.

Culturíssima: Quando se deram conta que aquele lugar definitivamente tinha entrado pra história  do cenário cultural da cidade?

Leo Felipe: Me lembro que uma vez, desci de lotação, pra abrir o bar, e a rua já estava tomada de gente, muito cheia. E tinha aqueles bares da volta, o Líder, que agora não tem mais, o próprio Bambus, e estava a rua muito cheia. Aquela vez foi quando me dei conta que, poxa, a gente fez alguma coisa que é grande, maior do que a gente pensava lá no início. Mas essa ideia de ter uma importância para a cidade, acho que veio mais no final da década. Depois de oito anos que a gente viu que o bar tinha valor pra essa cena alternativa. Isso era 97 ou 96, quando eu vi que tinha extrapolado aquela coisa só de amigos.

Culturíssima: Em outra entrevista, falou que o melhor ano do Garagem foi 1997. Por que esse foi o melhor ano?

Leo: Foi nesse ano que apareceu o Júpiter [Maçã] com [o álbum] A Sétima Efervescência. Tenho boas memórias disso. Até brinco com isso no livro, que foi my private one summer of love, nosso mini verão do amor. Muita droga psicodélica, o Júpiter com aquela presença fascinante, com aquela música fascinante, a gente já escaldado, sem aquela inocência, sem aquela ingenuidade dos primeiros anos. Foi uma época bem boa, que a gente curtiu mesmo, além de estar dando grana, chamando a atenção das pessoas, a gente feliz com os projetos musicais, com os músicos, com as bandas. Foi por isso, e acho que tem muito a ver com a presença do Júpiter, a chegada dele naquele ambiente.

Culturíssima: Quando abriram o bar, do que sentiam falta na cidade que vocês queriam ter no bar de vocês?

Leo: Basicamente, a gente sentia falta de um espaço pra tocar – eu não tinha banda, mas os meninos tinham. Então era essa a ideia, de ter um espaço ali que a gente pudesse tocar. E também espaço para ouvir as músicas que a gente gostava. Era uma época pré-internet, em que tu ter uma coleção de disco era um fato notável. A gente queria tocar aquelas músicas, os grandes clássicos psicodélicos, Motown, soul music, Sly and the Family Stone, era muito essa música dos anos 60, éramos muito vidrados nisso. Hoje isso até está mais banal, porque está a um clique, qualquer discografia está no youtube. Mas aquela época não rodava muito isso, então a gente tinha essa vontade, de ouvir as músicas que a gente gostava.

Culturíssima: Nos oito anos do bar, vocês viveram aquilo intensamente. Tu conseguia acompanhar ou ter uma ideia de outras coisas legais que também estavam rolando na cidade?

Leo:  Mais ou menos. Acompanhava na medida do possível. Em 96 teve aquele festival, o Free Jazz, aqui em Porto Alegre, que foi super legal, com Isaac Hayes, Stevie Wonder, que acompanhei, também bares de amigos, alguns shows. Mas tinha uma coisa meio alienante ali, tanto é que o livro trata de quase uma década, e não tem acontecimentos políticos ali, não faz referência ao momento político que o Brasil vivia e que o mundo vivia. Pegamos toda aquela transição do início do plano real, e não tem referência disso no livro. Isso propositalmente, pra representar essa coisa meio alienada. A gente estava tão envolvido naquelas coisas, da música, das drogas, dos shows, da nossa vida ali naquela casa, que o resto do mundo não importava muito.

Leo Felipe - A Fantastica Fabrica

Culturíssima: Tu lançou o livro na metade do ano passado. A repercussão parece ter sido muito boa. Tu já esperava?

Leo: Em certa medida sim. Eu criei uma estratégia, um dispositivo para terminar esse livro. Ele começou a ser escrito em 2004, mais ou menos, e aí fiz toda uma estrutura e comecei a escrever pela ordem dos capítulos mesmo. O livro tem quatro partes, e quando terminei a segunda parte eu parei de escrever, me envolvi com outras coisas e tal. Alguns anos depois, criei um blog, que atualizava com textos, com comentários e um dia pensei: vou começar a colocar os capítulos do livro, até pra ter uma noção, porque até então ninguém tinha lido. Eu tinha a ideia de que, se as pessoas gostassem, tinha um estímulo para terminar o livro, o que, de fato, aconteceu. Tanto é que, logo depois, a Kátia Suman me fez um convite para que eu lesse os trechos do livro no Talk Radio, programa dela na [rádio] Ipanema. O quadro chamava Crônica Falada, então toda sexta-feira, mais ou menos uma da tarde, eu lia trecho do capítulo e logo depois eu subia para o blog. Isso foi uma experiência muito legal, porque as pessoas ouviam no rádio, depois liam na internet e comentavam no blog algum episódio que tinham passado, relacionado com o que eu estava narrando ali. Então teve muita repercussão. Os capítulos chegaram a ser publicados em revistas independentes e tal. Então quando lancei o livro, eu tinha ideia que ele seria bem recebido. A primeira edição, de mil exemplares, está quase esgotada, devo ter uns duzentos exemplares em casa. Foi totalmente independente, não teve distribuição, praticamente eu que vendi os livros, de mochila. Acho que foi um fenômeno nesse tipo de marketing de guerrilha.

Culturíssima: O livro é basicamente um relato, quase autobiográfico. Por que essa opção? Tu chegou a entrevistar ou falar com outras pessoas pra relembrar alguns fatos?

Leo: Em inglês, esse tipo de livro se chama Memoir, um livro de memórias. Ele foi todo da minha cabeça, a não ser no final. Confesso que no final tem três capítulos que recorri à memória alheia. Acho que, no primeiro momento que comecei a escrever, não tinha ideia que viraria um livro, queria era contar esse relato mesmo. Dei muito de mim naquela primeira parte, e na segunda parte eu já não lembrava muito de alguns episódios, então em três capítulos recorri à memória de amigos. Mandei e-mail, aí as pessoas me responderam e eu incorporei a fala delas dentro do livro. Então foi a Alessandra Marder, que falou sobre a festa Full Moon, que era uma festa de música eletrônica. Botei ela como uma personagem falando ali. O Gustavo Spolidoro, que falou do projeto Cinemeado no Garagem e, por último, para falar sobre o Bailão do Cardoso, que foi a festa do Cardoso Online, uma das primeiras experiências de literatura na internet no Brasil. Essa foi mais radical, porque mandei um e-mail para o Cardoso: estou aqui, no caítulo tal, mas não me lembro muito, conta aí o que tu lembra. E eu publiquei exatamente assim, mandando essa introdução e o Cardoso escrevendo. É muito curioso que, no texto dele, ele encorporou um texto do Daniel Galera, que também escreveu o prefácio do livro. Então o Cardoso acabou usando o mesmo artifício que eu tinha usado. Acho que isso contribui para que o livro não fique exatamente um livro de memórias ou de ficção, porque tem ali essa parte de uma fala, meio jornalística, que ajuda a ficar nessa indeterminação de gênero dele.

Culturíssima: Comentou que lia trechos do livro no programa da Kátia Suman, ainda na Ipanema FM. O que tu acha dessa migração da Ipanema pra web e como é teu trabalho aqui na mínina FM?

Leo: Quando saiu a notícia da Ipanema, fiz um comentário no facebook, que era assim: “Se vocês estão órfãos da Ipanema, lhes digo que: a mínima não será a madrasta”. Foi uma maneira de sair do óbvio. Pela estrutura da frase, daria a entender que eu ia dizer venham pra cá, venham escutar a mínima. Acho que a Ipanema estava em um formato que não era o formato que a gente faz aqui na rádio, não somos comprometidos com o rock, somos comprometidos com a boa música, seja ela de qualquer gênero. É uma rádio que busca aprofundar os temas, busca trazer ativistas como colaboradores, fala de política, muito. Aí política em uma ideia macro e também micro política, na ideia de comportamento, repensar nossas atitudes, nossos pequenos gestos, nossos pequenos fascismos, extirpá-los de nós. Acho que a Ipanema não era isso, como estava atualmente. Tinha aquele playlist , com aquelas músicas manjadíssimas, aqueles rocks que todo mundo já conhece, aquelas discussões em que os apresentadores só achavam, opiniões sem embasamento algum, muitas vezes reproduzindo esteriótipos, preconceitos. Então, a mínima não era isso! Se o ouvinte estava órfão dessa rádio, não precisava vir pra cá, porque a gente quer buscar um outro tipo de ouvinte. O fato da Ipanema ir para a web, acho que é natural, na verdade. A gente vê que tem essa migração, muitos projetos de web rádio aqui em Porto Alegre. Tem um custo menor, e é uma maneira da Band manter essa marca, que é uma marca muito querida do público.

Culturíssima: O porto-alegrense, ou o gaúcho, tem essa coisa do pertencimento, do se sentir dono das coisas, e quando as coisas terminam, ele sente muito, mesmo que aquilo não represente o que já representou um dia…

Leo: Tem uma coisa aí da tradição, do tradicionalismo. Por mais que a gente viva uma cultura urbana aqui, nada a ver com essa invenção do tradicionalismo, acho que esse tipo de mentalidade é tão forte que aí o tradicionalismo se aplica até na cultura pop, até nas coisas que não deveriam se sustentar em tradições. Um exemplo: eu tenho uma festa no Bar Ocidente há 12 anos. Quer dizer, a natureza maior da festa é a efemeridade, ela não dura pra sempre. Mas aqui a gente é tão tradicionalista que até as festas duram.

Culturíssima: E é sempre o mesmo pessoal que vai?

Leo: Agora não. Ali, no caso, da Pulp Fiction [nome da festa], a gente viu muito essa mudança, a mesma coisa do Garagem. Aquele primeiro público cansa, fica mais velho, tem que começar a trabalhar, não dá pra ficar na festa todo o tempo, e a gente observa essa mudança. Quando fica muito tempo em um bar, em uma festa, tu observa essa rotação, que é cada vez tu te sentindo mais velho em meio à gurizada.

Culturíssima: Fazendo uma comparação daquela última década do século 20 com esta segunda do século 21, quais as diferenças que tu percebe na noite de Porto Alegre e nas tribos jovens?

Leo: Há um mês, mais ou menos, a gente recebeu a notícia da morte do Sílvio Freitas, que foi um dos fundadores da Fim de Século, uma casa muito importante na virada dos 80 pros 90. Comecei a frequentar a noite ali. Aí fiz um post sobre uma matéria que saiu no LOFT55, em que eu comentava a importância das casas noturnas e dos bares para o imaginário cultural afetivo social de uma cidade. Lá pelas tantas um amigo meu perguntou: mas ainda tem importância? O que me fez pensar que talvez essa seja uma mudança muito significativa. Hoje os eventos são muito mais massificados. Antes a comunicação era mais lenta, mais restrita, então os agrupamentos acabavam sendo mais restritos mesmos. E hoje as festas são, sei lá, pra mil pessoas. Tem mais gente no mundo, tem mais gente com poder aquisitivo pra poder usufruir destes bens supérfluos, que são bebidas, festas e shows. Antes tinha uma ideia de nicho, de fazer um bar com a inocência de não se preocupar se vai dar grana. As pessoas já estão em um esquema de mercado, das coisas terem de funcionar, pois essa ingenuidade se perdeu, para o bem e para o mal. Acho que isso é a mudança principal, de ter muita gente. As pessoas têm muito acesso a esta informação que circula e elas querem, de alguma forma, ouvir sempre o mesmo. Tem aquela frase que diz que turismo é ir em um lugar pra ver coisas que tu já conhece. Isso é uma coisa que eu percebo, as pessoas querem ir na festa para ouvirem o que já conhecem, não querem ouvir uma música nova ou ter uma experiência singular ali.

Culturíssima: Na ocasião do lançamento do livro, tem uma coluna do Galera no Estadão em que ele chega a comentar as péssimas condições com que vocês abriram o bar e faz um paralelo com a tragédia da Kiss, em Santa Maria. Tu já pensou nisso?

Leo: Claro, que sim. Eu jamais repetiria a experiência tal qual foi. Era de uma irresponsabilidade, de uma negligência até, absurdas. Quando houve essa tragédia da boate Kiss, a primeira coisa que pensei foi isso. Meu sócio, o Ricardo, tinha muito sonhos em que a casa pegava fogo, que o chão sedia, que tinha desabamento, ele era atormentado por esse medo. Mas, realmente, era muito irresponsável, não tinha um extintor de incêndio, e o fio estava lá, desencapado no aparelho de som.

Culturíssima: Depois que vendeu a casa, chegou a frequentar algumas vezes?

Leo: Fui algumas vezes. Mas não gostava muito, acho que, curiosamente, as paredes foram postas abaixo e a casa parece que ficou menor. Tenho essa impressão. Aconteceu um episódio, acho que a segunda ou terceira vez que estive lá, fui agredido por um ex-frequentador do bar, até hoje não sei muito bem o porquê. Já fui o rei disso aqui, agora chego e apanho! Acho melhor não frequentar mais esse lugar [risos].

Culturíssima: Naquela época viram algumas bandas surgirem. Hoje, continua ligado nas coisas novas? O que anda ouvindo?

Leo: Estou muito afastado dessa cena, da produção local. Trabalhei por oito anos no Radar, programa da TVE, e isso foi um privilégio, porque sem sair do trabalho, eu tinha acesso a quase toda a produção musical do estado. Eram, em média, duas ou três atrações musicais por dia. Passou todo mundo por lá, então nessa época eu realmente era muito antenado. Hoje eu migrei um pouco para as artes visuais, por essa ideia da arte contemporânea, que é tão livre, que extrapola a visualidade, vai buscar coisas no som e nas próprias palavras. Achei que esse campo seria o campo em que eu poderia trazer todas as minha experiência, seja ela como escritor, como DJ, como jornalista, e isso me faz afastar um pouco dessa pesquisa da cena local. Claro, a gente mantém a rádio aqui e me mantenho informado. Mas não da forma como eu consumia esse tipo de informação. Bom, sobre o que eu poderia destacar? O disco do Ian Ramil acho muito legal, acho o trabalho dele super legal, a própria Apanhador Só é uma banda super legal, e o que acho bacana, o que me atrai no discurso deles é que não se identificam com essa ideia do rock gaúcho, que cada vez eu tenho mais vontade de desmistificar, problematizar essa noção do rock gaúcho. Noto que essa geração não está preocupada com essa coisa de rock gaúcho, e não é nem rock exatamente, pois vai flertar com MPB e outras sonoridades.

Leo Felipe

Culturíssima: O que te incomoda no rock gaúcho?

Leo: Me incomoda o rock, em primeiro lugar. Acho que, cada vez mais, tem se tornado uma música elitista, museificada, não que a gente esteja sempre buscando o novo, até porque é difícil buscar o ineditismo nesse momento em que tanta coisa já foi feita, mas o rock está muito apegado a formatos conservadores. O rock virou uma coisa de homem branco, heterossexual. Não é de se espantar que duas figuras proeminentes do rock brasileiro dos anos 80, nesse último momento de eleição, acabaram se identificando com gente que defende até a volta da ditadura. E o rock gaúcho é rock também, acho que ele é machista, se fizéssemos uma leitura feminista do rock gaúcho ele não passaria. Essa ideia das tradições, de honrar as tradições do rock gaúcho… Acho que a música mais interessante vem da favela, o funk carioca é a expressão cultural mais interessante da cultura brasileira contemporânea e o rock virou um artigo de museu, na verdade. Reedições de discos, cada vez mais suntuosos, como uma coisa museificada mesmo.

Culturíssima: Uma vez tu disse que, umas das coisas que te aborrece em Porto Alegre é a beatlemania. O que isso quer dizer?

Leo: É justamente isso. Não sou idiota para não reconhecer o valor dos Beatles, nem a excelência da música deles, que é maravilhosa, mas tem tanta coisa pra ser escutada, aí ficam com essa coisa do Beatles, Beatles, Beatles. Não, os anos 60 terminaram há 60 anos! Claro que é uma década com muita produção, acontecimentos, que sempre vai ter atenção e ser lembrada. Mas acho que é muito essa ideia da tradição, do conservador, e ficar ouvindo Beatles, Beatles… Pôxa, ninguém fala de Yoko Ono! Vamos falar da Yoko, que é uma mulher, uma artista visual que, diferente de quem acha que ela acabou com os Beatles, não! Ela trouxe o John Lennon pro mundo, pra realidade, pra deixar de ser um roqueiro machista pra ser um artista, um homem político. Então é isso, acho que essa beatlemania acaba restringindo, sendo que tem um monte de coisa que veio depois, veio antes, ou era contemporâneo aos caras.

Culturíssima: Tu ficou oito anos no Radar, que ainda é um programa importante pra cena cultural do estado. Qual o potencial da TVE? Ele é bem utilizado?

Leo: É, a TVE é uma questão muito delicada. Sim, ela tem valor, que é o de abrir um espaço de mídia que não seja o mainstream, até como um contraponto à RBS, que dita o que se pensa, o que se consome, o que se fala e o que se faz aqui no estado. Nesse sentido a TVE é importante. Mas eu trabalhei por oito anos lá, sei como é essa lógica. Normalmente os governos do PT chegam e investem em aparelho. Aparelham nos dois sentidos, tanto no sentido tecnológico quanto no sentido ideológico. Aí nesse grenalismo mental do gaúcho, ele nunca vai reeleger o governo, aí a oposição chega e decide que não é nada daquilo, tira as pessoas, tira os programas. Tem que ter autonomia! A emissora não pode ficar refém de questões políticas e administrativas, porque daí não há como desenvolver um trabalho. A TVE é isso, parece que fica um pouco parada no tempo às vezes, não tem investimento, aqueles funcionários estão sem atenção, sem cursos formativos, sem cursos de atualização. Acho curioso que, à vezes, eu vou lá dar entrevista e no outro dia, na rua, vem uma senhora e “ah, te vi na TVE”. Quer dizer, parece que esse público daqui a pouco vai morrer se não houver novas estratégias pra trazer novos telespectadores.

Culturíssima: Como tu agiria se estivesse lá ainda na época que deu a polêmica com o grupo Putinhas Aborteiras?

Leo: Se eu tivesse lá não teria levado as Putinhas Aborteiras pra dentro do estúdio, porque eu já sei como as coisas funcionam. Eu teria feito uma matéria com elas, aí tu tem a condição de editar, tem um domínio maior daquele conteúdo. Mas obviamente que há um moralismo ridículo nisso tudo. Achei muito corajoso da parte do Domicio [Grillo, apresentado na ocasião] levar as meninas pro estúdio pra elas se apresentarem ali. Mas o caso é um retrato da loucura que é a TVE, pois elas foram, se apresentaram, depois subiram pro youtube, como sempre se fazia, e ali na internet que deu problema, porque as pessoas começaram a compartilhar. A resposta da emissora foi demitir o funcionário que subiu o material pro youtube, sendo que ele fez a coisa certa, fez o trabalho dele, ele faz isso com todos os vídeos.

Culturíssima: Tu começou a cursar jornalismo tardiamente. Trabalhar com comunicação não era uma vontade antiga?

Leo: É, entrei pra faculdade com 25 anos. Mas eu tinha vontade de fazer artes, passei na prova específica como como já contei, e depois perdi uma prova do vestibular e não entrei. Em 98 não passei na prova específica, aí tive que ir para uma segunda opção, e escolhi o jornalismo, pois gostava de escrever, era desinibido, e o jornalismo é meio essa coisa que cabe tudo ali dentro.

Culturíssima: Como é o teu trabalho na Fundação ECARTA?

Leo: Estou lá desde 2011. Sai da TVE e fiz uma postagem no facebook, dessas que colam, com bastante emoção, com bastante compartilhamento. Fiz um relato, agradecendo aos colaboradores, a todas as pessoas envolvidas, pedi que cuidassem da TVE e, no final, fiz um texto engraçado, dizendo que estava disponível, com a minha simpatia, o meu know how, para projetos em artes, música, entretenimento, literatura. E uma amiga minha, que trabalhava lá na ECARTA, na função que eu faço hoje, ela era diretora da galeria, estava saindo e pensou que eu podia contribuir, mesmo não sendo das artes. Me fez a proposta e eu aceitei, porque gostava da coisa da arte, estava com intenção de fazer um mestrado em arte, então foi o start pra isso. Lá sou o diretor chefe da galeria, convido artistas e curadores para apresentar exposições lá, faço a produção dessas exposições, organizo o edital da galeria e, eventualmente, faço curadoria também. É um trabalho que tenho gostado muito de fazer. A gente faz entre sete e oito exposições por ano. E voltando mais uma vez nas tradições, era um lugar em que os professores do Instituto de Artes frequentavam com seus alunos, os eventos eram sábado de amanhã, não podia bebida alcoólica. Quando cheguei lá falei gente, vamos abrir isso aqui pra cidade. Não pode ser um negócio só do campo das artes. Claro que é importante o Instituto de Artes, quero que vejam minha exposições, e que opinem sobre elas, mas quero também que não-artistas vejam estas exposições. Era uma galeria voltada exclusivamente para a produção local, foi uma das primeiras coisas que mudei. Tem que ter intercâmbio, tem que ter o artista de fora que venha pra cá! Pras pessoas conhecerem, pra circular, pra depois um artista daqui quando fora pra lá ouvir “ó, os caras me trataram bem lá, vamos tratar bem aqui também”. Tem que ter circulação, não dá pra ter esse protecionismo de reserva de mercado.

Culturíssima: Tu chegou a fazer o mestrado em História, Teoria e Crítica de Arte. Que tema tu trabalhou?  Pretende seguir carreira na academia?

Leo: Sempre quis fazer artes. Mas não queria fazer outra graduação, então decidi pelo mestrado. Então tive que escolher algo que eu realmente gostasse, então minha ideia foi estudar o rock a partir das artes visuais. Sempre achei que o rock fosse tanto de imagem quanto é sobre som. Ou fosse até mais de imagem do que é de som. Pra conseguir achar o fio da meada desse tema tão abrangente, descobri uma performance que aconteceu em Porto Alegre, em 1986, de dois artistas, chamados Telmo Lanes e Rogério Nazari. Eles estavam pintando na época, iriam apresentar usas pinturas mas antes fizeram uma pequena instalação em um palco de teatro, com elementos que tinham nas pinturas. Essa performance contou com a participação do DeFalla. Então eu usei esse episódio, que era completamente esquecido na história local das artes, ninguém lembrava, e a partir desse evento fiz essa relação entre artes visuais e rock. O nome da dissertação foi O dia em que Edu K entrou para a História da Arte. Agora também estou com essa ideia de fazer um doutorado investigando a história da arte, que é um tema que me interessa, essa coisa da narrativa. Porque me dei conta que o livro do Garagem tem isso, essa ideia da narrativa. Ele narra a história de um bar, com uma preocupação maior com a fluência narrativa que com o fato. Isso tem uma intersecção da minha ideia de pensar a história da arte como uma narrativa de fatos. Estou, lentamente, lendo coisas e vendo possibilidades pra tentar fazer um doutorado.

Culturíssima: Além de A Fantástica Fábrica, tu tem outros dois livros publicados, O Vampiro (2006) e AUTO (2004). Tem planos de lançar outros livros?

Leo: Quero lançar a minha dissertação em livro. Ela tem um regaste da cena cultural de Porto Alegre nos anos 80. E acho que Porto Alegre foi uma cidade muito interessante nos anos 80, me parece ao menos. Mas tenho a impressão que tinha uma coisa mais cosmopolita e menos provinciana. A dissertação tem essa contextualização histórica, que seria legal aqui pra cidade. Mas também tem toda uma parte que eu falo de John Lennon e Yoko Ono, falo muito do punk, pois esse é um movimento que explodiu e explorou muito a ideia da imagem. É uma dissertação legal, que precisa sofrer uma revisão, ficar menos acadêmica, porque é um texto que eu gostaria de ver publicado.

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