A identidade de Marcelo Monteiro

Foto: Samantha Berg

Foto: Samantha Berg

Luiz Paulo Teló

Da parceria entre o casal Marcelo Monteiro e Vanessa Berg nasceu o Estúdio Hybrido, em 2011 e, um ano antes o Téo, filho deles. A principal matéria prima de ambos é a criatividade. Ela, designer de moda, com foco na pesquisa de materiais alternativos, que possam contribuir com a diminuição da produção de lixo de difícil degradação. Ele, prestes a completar 40 anos, é um artista de mão, e mente, cheias. Seu trabalho envolve xilogravura, litografia, calcografia, desenho, fotografia e vídeo.

Marcelo tem sua formação toda em Porto Alegre. Ao custo de que só quem vive da arte entende, conseguiu estabelecer uma carreira no cenário cultural da cidade. Estudou no Atelier Livre da capital e lá aperfeiçoou sua técnica, mas sempre teve, desde a infância, um desenho refinado e um olhar especial para o cinema.

Em 2008, foi primeiro lugar na premiação Descobrindo Talentos, do SESI. Até aqui, já tivera seu trabalho exposto no Núcleo de Gravura do RS, no MARGS e também participou do Grupo Pelosmuros, um coletivo que produzia xilogravuras em grandes formatos para intervenção urbana. Ao longo da carreira, sua arte já esteve em Porto Alegre, em São Paulo, em livros, em oficinas, em galerias, nas ruas, em mostras de vídeos.

Marcelo recebeu a reportagem do Culturíssima na sua usina de ideias, o Estúdio Hybrido, um lugar que busca promover o diálogo entre as diversas formas de manifestações artísticas. O estúdio fica em um dos apartamentos do centro cultural Vila Flores, no bairro Floresta em Porto Alegre. Esse lugar  é formado por 3 edificações da década de 1920, e abriga projetos e coletivos nas áreas da cultura, educação e negócios criativos. Vamos à entrevista:

Culturíssima: Como a arte surgiu na tua vida?

Marcelo Monteiro:  Desde pequeno, meu primeiro desenho fiz com três anos. Minha mãe não acreditou, pensou que tinha sido minha irmã mais velha. Mas só fui ter ideia mesmo de trabalhar com isso lá pelos 18 anos. Até então era diversão desenhar. Eu queria outras coisas, queria trabalhar com audiovisual ou museografia. Mas era difícil, porque aqui em Porto Alegre, no começo dos anos 90, não tinha curso de cinema. Museologia então, só foi ter agora, nessa década, na UFRGS. Aí fui abrindo outros caminhos. Comecei a trabalhar cedo, com 15 ou 16 anos, só que daí fui buscar trabalhar com o que eu gostava. Trabalhei 10 anos com videolocadora. Comecei a aprender bastante coisa e nisso entrei no Atelier Livre. Não fiz faculdade, entrei no Atelier Livre para melhorar o desenho. Tinha feito um básico de desenho quando era adolescente no SENAC. No Atelier Livre fiquei 10 anos, e lá eu fiz tudo: desenho, modelo vivo, pintura, gravura em metal, xilogravura, litografia… E fui crescendo, a coisa foi tomando um corpo e aí entendi que era o meu ofício.

Culturíssima: Tem influência de alguém mais próximo ou foi algo que veio independente de qualquer influência?

Marcelo Monteiro: Na real, minha mãe e meu pai nunca foram inibidos para desenhar. Nunca levaram a sério o desenho, mas na escola, quando pedia pra desenhar alguma coisa pra mim, pegavam numa boa. Não tinha aquela coisa de ‘ah, não, não sei desenhar’. Tive um primo que desenhava muito bem também. Ele fraquentava minha casa pra ouvir vinil, que na casa dele não tinha toca-discos. A gente ficava ouvindo e desenhando juntos, coisas de história em quadrinhos. Mas na família, trabalhar com arte, não tem ninguém, só eu.

Culturíssima: Chegou a pensar em outras alternativas que não fosse ser artista?

Marcelo: No caso das artes visuais foi uma decisão. Sempre fui chegado nessa coisa da arte. Cinema, vídeo, quando era pequeno ouvia música e queria tocar instrumentos… Mas algumas necessidades de sobrevivência vieram antes disso. Tive empregos inusitados: vender jazigos no [cemitério] Jardim da Paz, digitador na Caixa Federal, trabalhei na polícia. Um monte de trampo por necessidade, mas quando percebi que tinha um mercado da videolocadora, que eu podia ganhar grana e ver filme, aí foi amenizando, fui vendo que podia casar as coisas e trabalhar com o que me dava prazer. Mas chegou um ponto que, quando entrei no Atelier Livre, fui entender que eu podia dar um jeito de viver daquilo. Nessa época eu fazia duas coisas: estava aprendendo gravura e, junto com um amigo meu que hoje é um VJ conhecido, mora em Santa Catarina, começamos a experimentar essa coisa da projeção, do vídeo, da animação. Aí fui entrando nesse meio tecnológico de filmadoras, edições, projeções, enfim…

Culturíssima: Com que idade entrou no Atelier?

Marcelo: Pra valer, entrei com uns 18 ou 19. Por aí.

Culturíssima: Onde foi tua infância?

Marcelo:  Cresci no [bairro] Menino Deus. Nasci em 75, então peguei os anos 80 no Menino Deus, antes da retirada da galera do bairro. Porque boa parte do que hoje é Restinga, por exemplo, saiu ali do Menino Deus. A parte pobre do bairro era muito massa, aglutinava muita diversidade. Família japa, italiana, negra, alemã, era todo mundo convivendo junto. Estudei em um colégio estadual que tinha todas as classes, todas as raças, deficientes físicos de vários níveis, todo mundo misturado. Foi uma loucura [risos].

Culturíssima: Em 2004 tem a tua primeira exposição individual, Ossos do Ofício. Qual a sensação de ter teu trabalho em uma exposição só tua? E como foi, a partir de então, disputar espaço no mercado em Porto Alegre?

Marcelo: Foi no tempo certo. Já fazia uns cinco ou seis anos que eu estava na ativa, produzindo. Resolvi fazer aquela mostra porque tinha achado um tema, tinha criado uma produção bacana, já tinha criado uma rede de amigos, e grupos de trabalho dentro da cena, aí me senti confiante de mostrar meu trabalho. Foi num espaço que era novo, o Núcleo de Gravura, em uma casa muito antiga. A casa em si já tinha uma carga muito grande, pela arquitetura, por todo o clima, e o trabalho que eu estava fazendo era justamente uma coisa mais mórbida, com temas de escritores clássicos como Dostoiévski, Nietzsche, Edgar Allan Poe. Me senti bem em mostrar o trabalho naquele lugar. Não foi que surgiu uma oportunidade de mostrar o trabalho. Não. As coisas foram se moldando de uma maneira que ficou muito bacana naquele momento, fazer aquele mostra. E aquilo me alavancou mesmo. Aquela mostra fez com que eu publicasse pela primeira vez em um livro de filosofia, de uma editora paulista, entrei para a direção do Núcleo de Gravura naquele ano e logo depois me firmei mesmo no mercado da gravura. Consegui me colocar em um cenário que, até então, era de pessoas mais velhas. Pra esse mercado de gravura e litografia… poucas pessoas da minha idade faziam litografia. Era só coroa de 50 pra cima.

Culturíssima: Por que?

Marcelo: Acho que pela linguagem. O lance da gravura tem muita regra, muita técnica, então precisa ter muita disciplina para fazer gravura. Não é só a criatividade. O que a gente vê muito nessa fase jovem do artista é que o cara quer experimentar coisas e ficar livre dentro da criação. Na gravura, para ter essa liberdade, é preciso alcançar um nível técnico grande e trabalhar muito. Isso hoje mudou bastante, mas a linguagem na gravura também tem um rigor na apresentação, tanto estético quanto técnico, de galeria, de museu, papel, número de tiragem. Isso tudo levava para um caminho old school mais clássico da cena artística. Mas depois, no decorrer, a gente foi deixando algumas coisas de lado, essas chatices, mas é o tipo da coisa que só se consegue diluir depois que sabe muito. Tu não pode só negar a técnica pela liberdade. Tem que alcançar a técnica para depois poder destruir ela e fazer uso do jeito que achar melhor.

Culturíssima: Em 2005 surge o grupo Pelosmuros, que apostava em intervenções urbanas. Como que era isso?

Marcelo: Pelosmuros surgiu pelo exemplo de um trabalho que acontecia em São Paulo, de um pessoal que tinha um grupo chamado Piratininga. Alguns deles ainda trabalham com essa linguagem de gravura em grande formato. Essa pagada que a gente chupou, essa possibilidade de fazer gravura em grande formato para colar na rua. Mas o que diferenciava mesmo é que era uma gravura, e não a cópia de uma gravura. Era eu e mais oito mulheres, todas de uma faixa etária muito diversa, dos 18 aos 70 anos. Um grupo maluco, que se entendeu muito bem durante os dois anos, foi incrível. A proposta não era divulgar o nosso trabalho individual, mas sim o trabalho coletivo. Tudo que a gente criava era coletivo. Aí que entra o lance de acabar com algumas regras, porque tu tira a gravura de dentro da galeria, tira ela daquele formato pequeno, do sujeito ter que olhar com uma lupa, e leva pra rua. Foi massa porque a gravura e a xilogravura tem essa característica de popularizar a imagem, de deixar mais acessível. E a gente ampliou isso levando pra rua. Fomos muito felizes de nos apropriarmos da linguagem certa e da maneira certa. Se tem alguém fazendo isso hoje? Em Porto Alegre não vejo mais. A arte urbana aqui meio que se perdeu. Perdeu o foco da potencia que ela tem, de causar estranhamento, causar discussão. O que tenho visto muito por aí é arte cosmética, pra enfeitar a rua, enfeitar parede. E quando vejo coisas boas na rua são de pessoas que não são da rua. O povo que eu sei que é da rua não faz mais a diferença, com essa potência toda.

Culturíssima: De tudo o que tu faz, entre foto, vídeo, gravura, e outras coisas, o que te realiza mais? E o que te envaidece?

Marcelo: Ultimamente o que tenho mais gostado de fazer é trabalhar com vídeo e essa coisa das tecnologias digitais, mais acessível, de bolso. É muito bacana, pelo menos pra minha geração, que vem do analógico, em que tudo era muito pesado, muito caro, difícil de acessar, e hoje eu tenho um ipode de 32 gigas que é um absurdo as coisas que a gente pode conseguir com um aparelhinho desse tamanho. O que tem me agradado é essa coisa de poder gravar, editar, publicar de uma maneira muito rápida. E o que me envaidece? É meu desenho. O meu desenho e minha gravura. O meu desenho na minha gravura. Acho que sou muito bom na técnica da gravura, acho que sou muito bom na técnica do desenho, mas o que me envaidece é ver meu desenho ser apreciado pelo desenho em si. Sempre tive essa preocupação desde o início da minha trajetória, pois via alguns exemplos, que estão aí até hoje, de artistas que tu conhece, sabe quem é, mas se perguntar pra pessoa se conhece algum trabalho do fulano de tal, a pessoa não sabe responder. Eu queria que o meu trabalho fosse reconhecido, tipo: “Ah, já vi isso em outro lugar. Esse cara fez aquele outro trabalho”. Não precisa falar meu nome, mas reconhecer o meu trabalho é o que me envaidece. É uma identidade, que é a resposta do empenho. Não é meu nome, não é o Marcelo, marido da Vanessa, pai do Téo, é o meu trabalho que está ali, sendo elogiado.

Culturíssima: Como foi a experiência de ter feito uma oficina de xilogravura com deficientes visuais em 2013?

Marcelo: Foi inusitado. Na verdade o projeto começou com um grupo de surdos. Uma amiga nossa, Ana Meneghetti, trabalhava com libras. Ela estava procurando inserir o grupo de alunos dela na cena cultural de Porto Alegre e estava bem complicado. Realmente é uma necessidade que tem a na nossa cena na questão de acessibilidade. Cinema, artes visuais, tudo! Não tem. E aí a gente topou de receber os alunos dela, e surgiu um trabalho muito bonito, muito bacana. A xilogravura, que foi a técnica que eu passei, é bem simples, bem rústica, só precisa querer aprender a técnica. Gerou um material muito bom aquela experiência. Aí chegou até nós o pessoal do Tagarellas, uma empresa que trabalhava com audiodescrição para audiovisual. Eles trouxeram então o pessoal que eles trabalhavam, e foi massa. Pra mim foi total novo, porque por mais que a gente entenda que a gravura é passível dessa coisa do tato, tem uma parte da impressão que tem a tinta, que tu vê! Porém, dentro da técnica, existe uma linguagem que não usa tinta, mas sim um relevo no papel, e dá pra pessoa tatear o que fez. Foi o que eu trouxe pra eles. Tinha no grupo pessoas com total falta de visão, alguns nem tanto, mas foi rico, teve muito contato, que é muito louco isso. Eu tinha que pegar nos alunos, nas mãos, braços, falar perto, mostrar o material. Foi chocante, lindo demais. Era pra ser apenas uma aula, mas aí virou um mega projeto. A aula gerou os trabalhos dos alunos, gerou o vídeo que eu fiz, aí colocaram audiodescrição, depois descolei um lugar para fazer a exposição, com as matrizes, os trabalhos impressos, para que as pessoas tocassem e os deficientes visuais poderem acessar a exposição. Montamos um sistema de áudio dentro da exposição, com a descrição do que estava sendo mostrado. Enfim, foi redondo, perfeito em todo o processo, tanto que a exposição já foi até a Portugal. Também foi exposta na Unimed.

Culturíssima: Como nasceu o estúdio Hybrido?

Marcelo: Eu e a Vanessa tivemos um filho e aí veio de novo aquela dúvida: vamos manter a gente com o ofício da arte? Cara, não dá, na real é meio complicado sobreviver disso. No fim a gente optou em tocar ficha, porque se a gente não fizesse imaginamos que íamos ficar frustrados de alguma forma. E essa frustração poderia pesar sobre o Téo, então apostamos, mas apostamos de verdade. Aí dentro do Hybrido, em que eu produzo o meu trabalho, a Vanessa produz o dela, a gente também sabia da potência de misturar o nosso trabalho. Como eu venho dessa cultura da gravura, de dividir o atelier, porque são poucos gravadores que tem o atelier próprio, então eu tinha muito isso. E também por causa dos espaços que eu frenquentava, que tinham outras áreas juntos, mas que não conversavam. Lá com o Atelier Livre tinha mais dois teatros, com um circulo de bailarinos, músicos, atores e artistas visuais dentro do prédio e eu sentia falta de diálogo entre essas áreas. Quando a gente criou o Hybrido o carro-chefe da proposta era trazer esse diálogo pra dentro do estúdio. Então a gente começou a criar projetos interdisciplinares com artistas amigos, conhecidos, ou artistas que a gente admirava. Começamos a misturar audiovisual, artes visuais, moda, cinema, dança, enfim, aí foi se criando o que é o Hybrido hoje. Criamos uma boa rede, apostando em um mercado que Porto Alegre ainda está descobrindo. Acho qu o trabalho do Hybrido ainda é muito novo pra cena cultural e artística da cidade.

Culturíssima: Como vocês vieram parar na Vila Flores?

Marcelo: Na real lá no centro estava ficando pesado já pra gente, por causa do aluguel que era dividido só por mim e pela Vanessa. E por mais que a gente estivesse no Centro Histórico, ao lado do Gasômetro, ao lado da Casa de Cultura [Mário Quintana], a gente se sentia meio ilhado. Pra juntar um público tinha que fazer muito esforço de divulgação. E nesses três anos que ficamos lá, foi bem complicado da Prefeitura nos enxergar, do Governo do Estado nos enxergar. A gente não custa nada pra eles, fomenta a cultura, se apóia e se ajuda em rede, com os coletivos, os atelies autônomos, geramos esse diálogo e, ao mesmo tempo, não nos enxergam. Estamos fazendo um papel dentro da sociedade civil, mas não tem um retorno. Chegou num ponto que ficou frustrante e pesado economicamente. A gente ia fechar o estúdio e procurar uma casa em que pudéssemos morar e trabalhar. Bem nesse momento, que eu tinha mandado proposta para uns editais, com a esperança que esses projetos fossem aprovados, aí ganhávamos um fôlego de mais dois anos lá no centro. Numa semana a gente recebeu a negativa dos editais e na outra semana entraram em contato da Vila Flores, dizendo que tinha um apartamento vago. Então viemos aqui, conhecemos o projeto, a proposta, e vimos que era uma possibilidade de manter o estúdio de uma maneira que não fosse transformar ele em outra coisa. E ao mesmo tempo essa coisa rica de chegar em um espaço com outros coletivos autônomos, em uma proposta que é autônoma, não é do governo nem da prefeitura, então era nossa realidade, a gente se reconheceu aqui. Vindo pra cá convidamos o Ernani Chaves, que é um colaborador nosso antigo, que conheço há um bom tempo, e o Kelvin Koubik, que estava procurando um lugar pra ele, e a gente estava com uma sala livre ainda, e topamos na hora. E ficou muito mais tranquilo, conseguimos respirar ao dividir o aluguel em quatro partes. ‘Tá’ massa.

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2 Comments

  1. Fiquei muito feliz com a oportunidade dessa entrevista, e pela seriedade do trabalho de vocês. Foi ótima a repercussão e retorno. Muito obrigado. Desejo prosperidade e sucesso ao projeto.
    Um forte abraço!

  2. Conheci o Marcelo em 2016 e já virei fã dele. Grande artista. Um cara de visão artística extraordinária!

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