A música livre de Ian Ramil

Foto: Mariana Copland

Foto: Mariana Copland

Luiz Paulo Teló

O sobrenome não só denuncia, mas também credencia. Ou, ao menos, desperta a curiosidade: mais um Ramil fazendo música? Como em outra época já fizeram – e continuam fazendo – os tios Kleiton, Kledir e o pai Vítor, Ian Ramil e sua música já venceram as fronteiras do estado,  conquistando admiradores pelo Brasil e países vizinhos.

O primeiro disco, IAN, lançado apenas em 2014, foi gravado em Buenos Aires, dois anos antes, e produzido por Matias Cella, que também trabalha com Jorge Drexler. O trabalho é uma compilação daquilo que o músico vinha compondo desde os seus 17 anos, época em que iniciou a faculdade de jornalismo, que posteriormente desistiu para ser ator, para só então descobrir que sua vontade era mesmo tocar as músicas que compunha.

Em março deste ano, ganhou o Prêmio de Revelação do Ano em Música Popular pelo álbum IAN,  na 59ª edição do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

Com o segundo disco a ser lançado nos próximos meses, Ian Ramil nos recebeu em sua casa, em Porto Alegre, para nos contar suas impressões sobre a repercussão de seu trabalho de estreia, como se relaciona artisticamente com seu pai e de que maneira sua geração entende o atual mercado fonográfico.

Culturíssima: Você vindo da família que veio, parece muito improvável que não se tornasse músico. Como isso aconteceu? Como se deu conta que isso seria a sua profissão?

Ian Ramil: É, acaba que tu te cria a vida inteira no meio, indo em shows, tocando em casa, vendo todo mundo na família cantando. Nunca foi nada forçado. Sempre toquei desde pequeno, sempre compus, daí vim pra Porto Alegre fazer jornalismo, fiz dois anos e meio na PUC. Depois comecei a fazer teatro na UFRGS, por quatro anos fiz meio curso. Nessa época fiquei trabalhando muito como ator. No final destes quatro anos, a gente começou a ter uma frequência muito grande, eu e uns amigos meus que também compunham. A gente começou a se juntar muito e fazer churrasco, passava a noite inteira bebendo, tocando e compondo. Uma amiga nossa que tem uma galeria de arte nos convidou pra tocar lá. E foi a partir dali, de um projeto chamado Descoletivo, que no primeiro show me dei conta, quando estava no palco, tocando minhas músicas, que percebi que era aquilo que eu tinha que fazer. Nessa turma tinha o Eduardo Mendonça, que hoje trabalha com rádio, é ator e comediante também, era meu parceiro de composição. Tinha o Leo Aprato, que até hoje é compositor, e é muito bom. Nós três nos juntamos e chamamos mais dois amigos pra tocar e fizemos esse show, só com músicas nossas. Era um show com prazo de validade, tinha o propósito de durar quatro apresentações. Foi legal, pois no final acabamos fazendo mais. Depois a gente se dissolveu e no final de 2010 fiz meu primeiro show solo. A partir dali vi que era isso que eu tinha que fazer, baixei a cabeça e fui trabalhar.

Culturíssima: Nesse primeiro show, já tinha muita coisa composta?

Ian Ramil: Várias do primeiro disco já estavam nesse show. No Descoletivo também já tinha várias que estão nesse primeiro disco, são músicas que fiz no período dos meus 17 anos até o período ali de gravar, em 2012. A partir daquele show comecei a tocar, tocava direto na noite, em bares. Tocava só as minhas músicas, às vezes com banda, às vezes sozinho, pra ganhar cancha mesmo. E o repertório foi se desenhando. O que foi gravado no disco foi um repertório que foi naturalmente se impondo nos shows. Só Rota foi feita pouco tempo antes da gravação.

Culturíssima: Fora os músicos da família, quais as tuas outras influências?

Ian: Muita coisa. Ouvi muita coisa a vida inteira, de João Gilberto a Nirvana. Talvez as coisas que mais ouvi, que são chaves na minha vida, são Beatles, Nirvana e Radiohead. São os que mais enxergo na minha música. No meu caso, eu faço a música e depois vou enxergar a influência de alguma coisa, de como faz relação com algum outro negócio. Tem um disco do Red Hot Chili Peppers que ouvi muito, que é o Blood Sugar Sex Magik, que escuto até hoje. Muito Caetano, muito João Gilberto, muita coisa variada.

Culturíssima: Como foi essa história de gravar o disco na Argentina? De onde já conhecia o produtor Matias Cella?

Ian: O Matias conheci através dos shows do Drexler e do contato com o meu pai. O Matias produziu dois ou três discos do Drexler, tocava com ele nos shows, então a gente já tinha se encontrado várias vezes. Ele se tornou meu amigo. Sempre mostrava as músicas pra ele e ele sempre falava pra eu ir pra lá gravar o disco. Na hora em que eu estava pronto pra gravar, falei com ele. E aí, Matias, vamos gravar? Vem pra cá. “Não, vem você pra cá, pra Buenos Aires, temos músicos incríveis aqui”. Acabei indo, confiei nele e conheci os músicos no dia de gravar o disco. Mandei as músicas antes, eles trabalharam nos arranjos. Levei bastante coisa de referência que eu tinha criado com a minha banda aqui, aí a gente trabalhava as músicas e gravava, foi nesse espírito. Essa primeira parte foi uma semana, de estúdio. Aí adoeci, perdi a voz, não consegui gravar as vozes. Isso era abril de 2012, e só consegui gravar as vozes em outubro. Depois ainda ficamos trabalhando bastante na mixagem, na edição e tudo mais. O Matias trabalha muito, estava viajando muito com o Drexler na época, então acabou tendo esse gap dentre a gravação e o lançamento. O disco levou dois anos, desde o início da gravação, para ser lançado.

Culturíssima: Isso não te angustiou de alguma forma?

Ian:  Totalmente. O disco saiu e eu não tinha mais nenhum tesão nele, estava saturado já. Nesse período, boa parte do disco que vai ser lançado esse ano foi composto. Algumas músicas [do segundo disco] a gente já vem tocando desde o show de lançamento [do primeiro disco]. Tem duas músicas que sempre tocava no bis, e uma que entrou mais agora.

Culturríssima: Esse primeiro álbum foi super elogiado, no Brasil todo. Como foi isso pra ti?

Ian: Depois de tanto tempo em cima de um trabalho, depois que ele saiu, às vezes eu amava ele, às vezes eu odiava. É uma relação de amor e ódio, porque depois de tanto tempo envolvido com aquelas músicas, tu acaba perdendo a referência. São músicas que fiz com 17 ou 18 anos, que estou lançando com 28, depois de ter gravado há dois anos. Então já estava dando um nó na cabeça e eu não sabia o que esperar da reação das pessoas. Acabou que foi muito bom, super elogiado, ganhou esse prêmio APCA [de revelação], dos críticos de São Paulo, que é bem importante. Foi uma surpresa ótima. Mas a gente trabalhou muito pra conseguir fazer, não é só ficar sentado e esperar as coisas acontecerem, não. Teve uma assessoria de imprensa, a gente correu atrás, porque ao mesmo tempo tu é músico, compõe, mas não tem mais essa do empresário que vai resolver tudo. Trabalhei muito em parceria com o Lauro Maia, que lançou o disco por um selo que ele abriu. Ele é meu amigo de infância, tem um estúdio lá em Pelotas, e trabalhamos muito juntos agora estruturando estas coisas. A Pâmela Leme, da Agência Alavanca, responsável pelos shows em São Paulo, o Thiago Piccoli em Porto Alegre, responsável pelos show daqui. Tudo a gente constrói junto, é labuta, baixar a cabeça e correr atrás.

Culturíssima: O sobrenome ajuda, abre portas, ou essa coisa te enche um pouco?

Ian: Cara, encheção de saco não. Acho que abre portas sim, mas elas não vão ficar abertas se tu não fizer por onde. Às vezes elas abrem rápido mas também tendem a fechar mais rápido. Mas certamente gera uma curiosidade, as pessoas querem saber “ah, o filho o Vítor Ramil, o sobrinho do Kleiton e Kledir, que esse cara está fazendo?”. Agora, se tu vai construir uma carreira sólida, não dá pra se basear só nisso. Gera uma curiosidade, gera um interesse, gera muitas vezes um ranço, mas é muito menos que a curiosidade positiva. Tem gente que gosta do trabalho do meu pai e por isso faz questão de me ouvir, mas não vai necessariamente gostar, porque é diferente. Acaba sendo um marketing involuntário.

Culturíssima: Ouve muito o teu pai?

Ian: Ele fala pra caralho, procuro não ouvir muito [risos]. Ele é uma grande influência, não somente musical, mas é meu pai, afinal de contas! Sempre foi um cara que me estimulou muito a seguir o meu caminho, ter as minhas escolhas. Isso é uma tendência minha também, não querer ouvir muito os outros. Ouvir, mas não sair me apegando a tudo o que dizem. Meu pai é muito opinativo, ele gosta muito de tentar colaborar com as coisas e eu já tenho um ouvido seletivo pra ele.

Culturíssima: O Vítor tem uma coisa de ser muito metódico, perfeccionista com a qualidade do som, com a afinação e tal. Você herdou isso no teu trabalho?

Ian: O rigor é uma boa influência que eu tive dele. Sempre foi rigoroso, de me ver cantando e dizer “ah, olha aqui essa melodia, presta atenção”. Sempre teve esse estímulo a eu procurar ser bom mesmo, a aprender a fazer as coisas direito, não apenas tapear. Ele é muito rigoroso com o trabalho dele e isso é uma coisa que eu procuro ser com o meu também, mas é diferente a maneira como a gente busca a perfeição. Todo artista acaba buscando isso de alguma maneira, nunca atinge, mas busca. Acho que sou mais relaxado que ele, gosto do que a espontaneidade e o relaxamento ativam na comunicação. Meu pai busca que o som seja perfeito, eu gosto que o som seja estragado às vezes, seja sujo, gosto de tocar em um bar, bêbado, com minha banda enfiando a porrada e tomando cerveja no palco. Isso gera um outro tipo de coisa e de ambiência, e a música acaba se transformando. São caminhos diferentes.

Culturíssima: Você faz parte de uma geração de músicos que valoriza muito o trabalho autoral, de compositor. Vocês também são muito próximos. Como essa turma se encontrou?

Ian: Muito surgiu lá do Descoletivo, foi uma coisa muito espontânea. Alguns anos depois, estávamos com um grupo que foi ficando maior e resolvemos bolar o Escuta – O som do compositor, um projeto que surgiu ali em 2012. A gente fez essa função com a ideia de manter um grupo aberto e horizontal, não tinha hierarquia, ninguém mandava em nada, era tudo em grupo. Funcionou por um tempo, sempre com a ideia de que qualquer um podia entrar. Quando a gente era 12 no início, tomar as decisões era muito mais simples, mas quando começou a se diluir um pouco, virar um espectro sobre nós, nessa época tinha 50 pessoas, e acabou que manter aquilo unido e tomar as decisões era muito difícil. Cada um tinha as suas vontades, seus ideais estéticos e artísticos, então acabou se diluindo de algumas maneiras, apesar de permanecer, eu acho, como um catalisador dessa cena. Foi ali que rolou essa união, passávamos muito tempo juntos, tocando, sempre fazendo churrasco e bebendo. Dali, tem um monte de gente que já vinha fazendo e, a partir dali começou a fazer com outras pessoas, e surgiu um monte de parceria diferente, baixando a cabeça e trabalhando, fazendo as suas coisas. Tem uma cena muito rica de compositores, muita gente gravando disco, EP, singles e caminhando nessa direção da coisa bem autoral mesmo.

Culturíssima: É uma cena que é difícil de rotular. Você consegue dizer que gênero toca?

Ian: Uma vez um cara perguntou isso e eu disse: música livre. Claro, se tu vai parar pra pensar, refletir sobre o conceito, é meio raso mesmo. Mas, na verdade, eu nunca quis me encaixar em nenhum estilo. O João Gilberto me influência e o Nirvana me influência, são duas coisas opostas. Esse é um reflexo do mundo que a gente vive, um mundo de informação, de ouvir tudo o tempo inteiro, a hora que tu quiser. Esses rótulos não servem mais para a grande maioria das coisas que se faz hoje em dia, é muito diluído, são muitas influências, é uma música que não se propõe a se encaixar em algum lugar e nem a se desencaixar. Ela se propõe a fluir simplesmente, de acordo com as pessoas. Tem ainda essa coisa de “ah, eu faço rock”, mas desse grupo nosso, daqui, vejo que a maioria tem esse ímpeto de se comunicar, de dizer o que quer dizer, mais do que fazer uma carreira de sucesso e fama. Não tem mais essa busca, é mais essa coisa de se comunicar mesmo.

Culturíssima: Geralmente quando a gente pede para que as pessoas indiquem artistas novos que estão fazendo um trabalho interessante, citam Ian Ramil e Apanhador Só. Curiosamente, vocês são muito amigos, né?

Ian: Há muitos anos. Conheci o Alexandre Kupinski [vocalista] na época em que estavam lançando o EP Embrulho pra Levar. Apanhador Só não é uma banda que está surgindo, ele têm, sei lá, 10, 15 anos de carreira. Desde lá a gente ficou amigo e começou a compor muito junto. Foi uma das grandes parcerias que eu tive. Talvez o Kuppinski seja com quem eu mais tenha feito música, e ele provavelmente, com quem mais tenha feito música foi comigo também. Essa coisa da parceria é incrível, tu aprende muito observando como o outro enxerga a construção da música, como ele enxerga a construção da letra, da melodia, da harmonia. Aprendi muito com os meus parceiros, e acredito que eles tenham aprendido muito comigo. É uma troca muito positiva para qualquer lado. Já fiz música entre duas, três, quatro, cinco pessoas.

Culturíssima: Teu disco está disponível para download, mas também está à venda como CD e LP. Como você enxerga o mercado fonográfico atualmente?

Ian: É um mercado em construção. A fonte dos artistas por muito tempo foi a venda de discos, hoje é muito mais o show. A internet está possibilitando que se descubra como se vai ganhar dinheiro com isso. Tem algumas saídas que são muito legais, como por exemplo o crowdfunding, que já está popular no mundo inteiro. O artista quer fazer um disco, lança um projeto e oferece contrapartidas e as pessoas apoiam, o que acho sensacional, é uma possibilidade incrível de interação do artista com o público. Graças ao público aquela trabalho vai se realizar, isso é muito bonito. Outra coisa que é muito legal é esse sistema de crowdfunding permanente, que tem um site aqui no Brasil, não sei se tem outro, que é o apoia.se, um mecenato basicamente, pois o artista está lá, tu gosta e, a cada vídeo que o cara lançar, tu dá 5 reais, por exemplo.É uma coisa que está se criando que pode ser o futuro da manutenção e sobrevivência dos artistas. Não é fácil ganhar dinheiro com arte, principalmente se propondo a fazer um trabalho autoral. É um momento de descoberta, de construção disso, e estas saídas me parecem as melhores, o crowdfunding de projetos e esse permanente.

Para ouvir, baixar ou comprar, acesse: www.ianramil.com

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Culturíssima: Como foi a decisão de disponibilizar o disco para download?

Ian: Nunca cogitei outra coisa que não colocar ele gratuito. Ele está no Itunes também, tu pode ir e baixar por lá, pagando não sei quanto. Eu sempre baixei música de graça, nunca paguei um centavo pra baixar música na internet. Já colaborei com projetos de crowdfunding e tudo mais, mas quando quero baixar um disco e ele não está disponível, baixo ele por torrent ou acho uma maneira de baixar aquele disco. Se eu não colocasse o meu gratuito seria muita incoerência.

Culturíssima: Faz poucos meses que que terminou de gravar o segundo disco. Como foram as gravações? Já está batizado?

Ian: Cara, estou um pouco em dúvida, não quis bater o martelo quanto a isso do nome ainda. Vai ser lançado em setembro, mas sem LP, é muito caro de fazer. O primeiro só consegui fazer LP porque entrou em um edital do Pró-Cultura lá em Pelotas, o que me possibilitou prensar CD, LP e pagar a assessoria de imprensa. Agora nesse segundo vou fazer um crowdfunding no final de julho, pra finalizar a parte que requer um investimento mais pesado, que é a prensagem, assessoria, mixagem, masterização, arte gráfica, estas coisas todas. O disco a gente gravou na guerrilha, na casa dos meus pais, em Pelotas. Eles estavam viajando. Fui com a banda toda pra lá e passamos 15 dias dentro da casa, dormindo junto, acordando junto, tocando o dia inteiro. O Lauro Maia levou o estúdio inteiro pra lá. Então como foi gravado na casa, tem uma pessoalidade, mas com um equipamento profissional de alta qualidade, o que deu um som muito peculiar ao disco. Foi um processo incrível. Tem uma música com o Poty, que é um compositor daqui, que gosto muito, produzi o EP dele, que vai sair em breve. É um grande compositor. Tem uma música com o Leo Aprato, que é esse meu parceiro lá do Descoletivo. Tem música com o Daniel Mã, um amigo baiano que mora em São Paulo, e tem uma música com o Guilherme Ceron. Participam do disco o Filipe Catto, que é um puta cantor, a Gutcha Ramil, minha prima, e o Kupinsk, que participa de uma música também. Musicalmente é disco bem diferente, mais violento, mais sujo, mais pesado.

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