Daniel Drexler: “Para mim era engraçado encontrar gente tomando chimarrão, vestido de gaucho e falando português”

Foto: Santiago Epstein

Foto: Santiago Epstein

Luiz Paulo Teló

No último dia 3 de setembro, Daniel Drexler esteve em Porto Alegre. Na verdade, ele chegou bem antes da quinta-feira em que fez o show no Teatro do Bourbon Country. O uruguaio não só tem amigos, mas também muitos parceiros musicais na capital gaúcha. Aqui, se sente à vontade. Passou a semana indo a diversos veículos de comunicação divulgar seu mais recente trabalho, o DVD Tres Tiempos, lançado juntamente com um livro de ensaios escritos por ele mesmo, irmão mais novo de Jorge Drexler.

Tres Tiempos é fruto da reunião de canções dos últimos três álbuns de Daniel Drexler: Vacío (2006), Micromundo (2009) e Mar Abierto (2013). No livro, o artista (e médico formado) versa sobre o processo de gravação destes discos e discorre sobre o termo “Templadismo”, tema que criou em 2002, para falar sobre os músicos do Uruguai, da Argentina e do Brasil, que têm a geografia e o clima como parte influente em seus processos de composição.

Nesta entrevista exclusiva, um dia antes do show em Porto Alegre, o músico falou sobre a turnê, sobre sua relação, a princípio de estranheza, com o Rio Grande do Sul e ainda abordou assuntos como mercado fonográfico, Mujica e a veia progressista de seu país. Confira:

Culturíssima: Por que a opção de lançar um livro junto com o DVD?

Daniel Drexler: Na verdade não foi uma opção consciente. Tenho um amigo muito querido, Ariel Hassan, diretor de Encuentro en el Estudio, um programa de televisão gravado em Buenos Aires, muito assistido em toda a América Latina, e já fazia um tempo que ele estava tentando me convencer a escrever um livro, principalmente sobre o Vacío. Procurei ele para gravar o DVD, ele disse “ok, eu gravo, mas você escreve o livro pra mim”. Foi quase uma troca. Mas no momento em que comecei a escrever, foi uma descoberta maravilhosa. Para quem está acostumado a escrever canções, as regras são muito precisas, você tem que contar uma história em dois ou três versos, tem que respeitar harmonia, melodia, a métrica. Tenho experiência em escrever artigos científicos, que também tem uma estrutura muito fechada, tudo tem que estar racionalmente aceitável. Aí quando comecei a escrever, senti essa liberdade de poder flexionar com ideias, metáforas, alegorias. Foi uma sensação de liberdade muito interessante, e o que seria um livro pequeno, acompanhando um DVD, virou um livro grande, acompanhado de um DVD.

Culturíssima: Como você chegou ao repertório do Tres Tiempos?

Daniel Drexler:  Me dei conta que os últimos três álbuns são uma trilogia, que estão muito relacionados entre si. Vacío, Micromundo e Mar Abierto, eles têm temáticas que tem muito a ver com processos que passei na minha vida nos últimos 10 ou 15 anos. Aconteceu também de ter gostado muito do processo de gravação de Mar Abierto, ele foi gravado quase ao vivo, com arranjos escritos para cordas, para sopros também. O tipo de paisagem musical do disco, pra mim, foi muito agradável. Gosto muito dos três, inclusive do ponto de vista da composição, acho que gosto mais do Vacío, mas do ponto de vista da produção, de como foi gravado, mixado e masterizado, eu gosto mais do Mar Abierto. Então a ideia foi pegar músicas dos três CDs e utilizar o mesmo processo de gravação de Mar Abierto. Foi bem interessante o que aconteceu, porque muitas músicas de Vacío e Micromundo, agora estão explodindo no Deezer, no Spotify, enquanto a versão original tinham ficado quietinhas. Hoje de manhã, a versão original de Vacío tinha 2 mil audições, e a versão que está em Tres Tiempos, tem 110 mil. Estou muito contente de ter feito esse processo, porque muitas das músicas que eu achava muito boas, entendia que era um desperdício que tivessem sido gravadas daquele jeito. Agora, gravadas de um jeito diferente, tomaram outra vida.

Culturíssima: Como foi esse processo de gravação?

Drexler: Mar Abierto foi a primeira vez que trabalhei com o produtor Dany Lopez, músico, pianista, um amigo maravilhoso, e fizemos um trabalho bem diferente do que eu vinha fazendo nos outros CDs. Trabalhamos muito na pré-produção, foram três ou quatro meses escrevendo os arranjos, ensaiando as músicas com a banda, mas depois, no momento da gravação, entramos no estúdio e fizemos praticamente em três dias. Em certa medida, foi como voltar à maneira que se fazia os discos na década de 50, 60, quando se chegava no estúdio e gravava com todos os músicos se enxergando, apostando na coisa espontânea, bem humana. O DVD, Tres Tiempos, foi gravado todo em quatro horas. De cada música, fizemos dois takes, mas não por causa do áudio, por causa do vídeo, eles precisavam de muitas imagens para poder editar. Praticamente em todas as músicas permaneceu o primeiro take. Isso pra mim foi um aprendizado muito grande, uma dica do que fazer no futuro, de não ter medo da espontaneidade, não ter medo dos erros, daquela coisa humana, de estar gravando ao vivo. É uma coisa boa, que gera uma qualidade de transmissão de emoção, que às vezes quando você grava de outro jeito, a emoção fica mais fraca. Ao final da história, o que você está fazendo como músico, é tentar fixar emoção, em um formato digital, ou em uma fita magnética, mas tentando fixar emoção. Aprendi que a gente não tem que ter medo, tem que deixar as coisas fluírem.

Culturíssima: O DVD foi gravado no estúdio. Essa turnê, está sendo registrada para futuros lançamentos?

Drexler: Estamos fazendo registros, sim. Na verdade, eu não pensei na possibilidade de que vire um novo material, mas pode acontecer. O que está acontecendo é muito estranho, porque a gente está atingindo um tamanho de cenário bem maior do que eu estava acostumado. Mesmo aqui em Porto Alegre, no Bourbon Country, que é um teatro grande. Semana que vem vamos para o SESC Pinheiros, em São Paulo. Na outra semana no Centro Kirchner, em Buenos Aires, que também é um teatro bem grande. Então, é interessante que a gravação foi no estúdio, sem público, e agora ao vivo, está sendo com muito público.  

Culturíssima: Você desenvolveu uma relação muito legal com Porto Alegre e o Rio Grande do Sul. Quais os artistas que você gosta e que você é próximo aqui do estado?

Drexler: Tenho muitos amigos aqui. Virou um problema, porque eu chego na cidade e não sei como receber todo mundo. Tenho um amigo muito querido, compositor maravilhoso, pra mim um dos grandes compositores daqui, que é o Zelito Ramos, que é parceiro da vida já. Sou muito amigo do Vítor Ramil, gosto muito de receber ele na minha casa em Montevidéu, e ficar na casa dele em Pelotas, às vezes até passamos férias no litoral do Uruguai. Sou muito amigo também do Marcelo Delacroix, já fizemos muitos trabalhos juntos. Gosto muito do trabalho do Mário Falcão, sou parceiro também do Richard Serraria, do Perisca Greco, da Shana Muller, Paulinho Goulart, Angelo Primon, é muita gente. Minha relação com o Brasil sempre foi de muita admiração. O Brasil sempre esteve muito presente no meu imaginário, mas minha relação sempre foi com Rio, São Paulo, Salvador. Em uma etapa da minha vida, quando tinha 20 anos, virei fã de Salvador. Quase todos os anos eu ia para o carnaval de lá. O Rio Grande do Sul foi uma descoberta de poucos anos. Quando eu viajava para o Brasil tentava passar rápido pelo RS para chegar nas praias de Santa Catarina. Pra mim era engraçado encontrar gente tomando chimarrão, vestido de gaucho e falando português. O arquétipo que eu tinha do brasileiro não era esse. A partir do momento que comecei a descobrir o Rio Grande do Sul, foi uma sensação estranha, passei a compreender melhor porque nós uruguaios somos como somos. Somos bem uma mistura de gauchos e portenhos. Essa questão da fronteira, uma sensação de estar longe das coisas. Eu tenho família aqui no estado, meu bisavô materno é de Cassino, tenho uma parte boa da minha família no porto de Rio Grande, então agora, minha sensação quando venho pra cá é de que não estou saindo do Uruguai. Montevidéu e Porto Alegre estão separadas por quase 800 Km de pampa, mas é quase a mesma cidade pra mim.

Culturíssima: Você falou sobre sua família. De onde vem a relação de vocês com a música?

Drexler: Estranho. Os meus pais são médicos, a gente se formou como médico, tanto o Jorge quanto eu, e minha irmã é odontologista, mas sei lá, aconteceu alguma coisa. A música estava muito presente, sempre ouvi muito. Mas não era intenção dos meus pais que fôssemos músicos. O meu irmão caçula, Diego, também é músico, e está lançando seu primeiro CD. É estranho, mas ao mesmo tempo isso fez com que a gente seja muito próximo. Temos muitas motivações comuns na vida.

Culturíssima: E a decisão pessoal de largar a medicina e se dedicar apenas à música, como foi?

Drexler: Sou muito medroso. Às vezes eu deixo que as coisas tomem as decisões importantes por mim. Foi difícil, quase 10 anos de sofrimento, reflexão, uma sensação de que aqueles dois universos eram paralelos e incompatíveis. Mas no final tudo ficou bem. Na medicina acabei trabalhando na área de reabilitação auditiva, em um projeto de pesquisa em biotecnologia para desenvolver um aparelho de tratamento para zumbidos no ouvido, e estava tudo relacionado com a música. Acho agora, com 46 anos, que foi uma história com final feliz, mas durante muito tempo pensei que aquilo iria terminar mal, que eu estava indo para um lugar com os braços cravados, porque a vida de músico tem muitas incertezas. Hoje olho para trás e vejo que foi quase uma história de Hollywood, mas foi bom. Tenho muita alegria de ter tomado as decisões que tomei naqueles momentos e não ter me afastado totalmente da medicina, ter mantido aquela relação criativa, de achar que essa mesma criatividade que eu desfrutava na música, podia também acontecer na medicina. Ao final, a música me ensinou a viver, a procurar uma vida criativa, fazer as coisas com carinho e com amor. E agora, depois de muito tempo, posso falar disso com tranquilidade.

Culturíssima: Em uma entrevista tua, de 2013, li sobre a diferenciação que você via entre a sua música e a música feita pelo Jorge. Você se encontra em um esfera mais voltada ao regional e ele em uma etapa mais cosmopolita. Ainda vê dessa forma?

Drexler: Exatamente, mas é engraçado, porque no início, eu tinha uma atitude muito mais elétrica, mais relacionada com o rock, o reggae. Mas são etapas, coisas que vão e vêm. O Jorge agora está em um momento da sua vida em que está há 20 anos morando na Espanha, mas seu sotaque não mudou nada, mas na música, particularmente, seu último trabalho é mais pop e o meu, Mar Abierto, é bem regional, com muita milonga, muito condombe, chacarera e chimarrita. São etapas da carreira de cada um.

Culturíssima: O teu trabalho circula naturalmente entre o sul do Brasil, Argentina e Uruguai. Como é o trânsito em outros países latinos e no centro do Brasil?

Drexler: É bem interessante, porque sinto agora que meu trabalho está se desenvolvendo melhor na Bacia do Prata, justamente naquela zona em que eu comecei a falar daquela história do temperadismo. Mas agora está começando a acontecer no centro do país. Já fiz três shows em São Paulo. Esse ano fizemos em Curitiba e foi bem bonito. Já fiz três vezes show em Salvador, e pra mim foi uma emoção muito grande, cidade de Caetano, do João Gilberto, do Gil. Está começando a acontecer, mas em uma escala diferente. Estou muito curioso com o que vai acontecer agora, nos próximos shows, que são bem grandes. Ao mesmo tempo está acontecendo a mesma coisa no México, também na Espanha, na Colômbia, que são todos lugares que já conheci, já fiz turnês, mas sempre em lugares pequenos. Essa coisa de algumas músicas terem estourado no Spotify, tem muito peso do México e da Colômbia.  

Culturíssima: De um modo geral, os artistas sul-americanos enfrentam dificuldades para entrar no mercado brasileiro?

Drexler: Sim. Particularmente para os artistas uruguaios, acho que está ficando um pouquinho mais fácil. Isto tem a ver com o fato de termos descoberto o Rio Grande do Sul, que é nossa porta de entrada no Brasil. Muitos uruguaios tentaram ir direto para Rio e São Paulo, e foi difícil. Mas quando você passa pelo RS, você vai pegando certos códigos da cultura brasileira, que fazem com que seu trabalho seja melhor compreendido no centro do país. Para os uruguaios, que são bem uma mistura de brasileiro com argentino, nós temos essa capacidade de compreender o imaginário brasileiro muito melhor que os argentinos, por exemplo, porque o Uruguai foi parte do Brasil em um momento da história. Tem muitos colegas da minha geração que estão começando a desenvolver o trabalho aqui no Brasil, mas da geração anterior, quase ninguém tocava aqui.

Culturíssima: Você gosta de praia, Rio de Janeiro, carnaval em Salvador. Ouve muita música brasileira, todo aquele movimento tropicalista, etc. Em que momento essa estética tropical conversa com o teu conceito de “Templadismo”?

Drexler: Conversa muito. Conversa o tempo inteiro. Desde o momento em que eu, quase que como uma piada, escolhi aquele nome. Templadismo é quase uma confrontação com tropicalismo. Conheci o Manifesto Antropofágico através do trabalho do Caetano e dos tropicalistas, e acho que se aplica perfeitamente na ideia do templadismo. Aquela ideia de enxergar a região, os gêneros, os estilos próprios da região, mas ao mesmo tempo ter o ouvido aberto para o que está acontecendo no mundo. Ter a capacidade de comer as outras culturas, digerir o que é bom e eliminar o que não é bom. Continuar sendo uma pessoa dessa região, mas ao mesmo tempo incorporar o outro. Isso tem muito a ver com a música do Brasil central, de Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro. E também, muitos dos gêneros que a gente toca, milonga, milongón, se você muda um pouco o acento, para um lado ou para outro, fica um baião, um afoxé. Na verdade a gente tem um canal de comunicação muito forte, que é o Atlântico Sul, é normal que haja uma conexão e uma comunicação contínua.

Culturíssima: Como foi, depois de tantos anos, desenvolver esse conceito por escrito?

Drexler: Foi um processo bem interessante, porque aquilo começou verbalmente, em conversas com amigos. Vivi, na minha infância, durante a ditadura, a gente morou em Israel, e eu vi a dificuldade que é se comunicar entre a gente, as fronteiras são sítios muito difíceis de furar, então eu fiquei com muito orgulho do que acontece aqui no sul, com nossas cidades de fronteira. Chuy e Chui, Rivera e Livramento, Artigas e Quaraí, cidades que são uma única, a gente cruza de um lado para o outro sem nenhum problema. Então comecei a falar disso, dessa comunhão de entidade, das fronteiras políticas, fronteiras linguísticas, entre espanhol e português. Mas então a imprensa pegou aquele tema, e começou a perguntar o que eu queria dizer, e no início eu não tinha muito claro, e até hoje não tenho. Eu finalizo o livro dizendo que no momento em que eu souber claramente o que é o templadismo, vai ser o fim do templadismo. O templadismo é uma coisa viva, uma ferramenta de discussão. Escrever sobre aquele processo, com uma distância de quase 10 anos, foi maravilhoso. Agora estou começando a entender que não é um movimento, é simplesmente uma ferramenta de agitação cultural, uma incitação ao debate. E a melhor coisa que ele gerou foi a reflexão sobre o trabalho de muita gente e a aproximação de muitos sujeitos, o surgimentos de projetos de filmes, como A Linha Fria do Horizonte. Tem muita gente no underground fazendo projetos juntos, e quando acontece um projeto no underground, aquilo é bem roots, não é um projeto que surgiu do interesse de uma multinacional, não. Aquilo acontece de subir no ônibus, chegar até aqui, fazer um projeto pequeno junto, morar um na casa do outro, fazer música junto, conhece a família, e aí começa a ficar uma coisa muito mais de rede. É o que eu sinto que está acontecendo agora.

Foto: Carlos Lopez

Foto: Carlos Lopez

Culturíssima: Qual a realidade do mercado fonográfico dentro do Uruguai? Ainda é possível trabalhar com gravadoras, ou plausível esperar que a música toque no rádio ou então projetar que um disco venda muitas cópias?

Drexler: A pergunta importante é: tem um mercado fonográfico no Uruguai? É um país muito pequeno, com 3 milhões de habitantes, é muito difícil desenvolver uma indústria fonográfica lá. Particularmente agora, com a crise da indústria fonográfica por causa da internet, o Uruguai está sofrendo com os mesmo problemas de todos os lugares do mundo. Agora que a gente está olhando uma luz no fim do túnel, mas o disco físico no Uruguai, devem ser fabricados uns 200 ou 400. Em todo o país acho que tem 20 lojas de disco, e tem muitas cidades do interior que já não têm mais. Ao mesmo tempo que essa situação de não ter um mercado estabelecido é ruim, ela também é boa porque a gente lá acaba criando sem pensar no mercado. Você cria com uma liberdade que, principalmente na Argentina e no Brasil, os artistas não têm por estarem muito focados no mercado. isso faz com que no Uruguai seja muito difícil desenvolver um projeto, mas a variedade do que surge lá, a quantidade e a qualidade, são bem interessantes.

Culturíssima: Você está no meio da turnê, mas já está pensando em um novo trabalho, com músicas inéditas?

Drexler: Estão começando a aparecer músicas novas, já estou pensando em álbum novo, mas eu sinto que Tres Tiempos se transformou. Era pra ser um projeto entre dois discos, e na verdade ele se tornou um disco em si, tomou a entidade de um álbum, e na verdade acho que tenho até a metade do ano que vem de turnê com coisas relacionadas a Tres Tiempos. Porém, já estou incorporando algumas músicas novas no show, embora os produtores não gostem muito [risos]. Por sorte continuo tendo essa vontade de escrever, de pegar um violão e começar a imaginar uma música e gerar uma letra. Nunca me aconteceu de ter um branco, tampouco de ter que gravar um CD sob pressão, de ter que terminar rápido as músicas. Isso nunca me aconteceu, e me deixa muito alegre. Estou tentando não fazer mais aquelas turnês de dois meses fora de casa, porque se você fica muito tempo na estrada, perde muito tempo de composição. É muito necessário o equilíbrio entre estar em silêncio, entre quatro paredes, e o tempos em que você está na vertigem da estrada

Culturíssima: Como cidadão uruguaio, que avaliação você faz da passagem de José Mujica pela presidência do Uruguai?

Drexler: Dentro do trabalho da administração do país, dos ministérios, a executividade em fazer obras, foi muito ruim. Ele é um cara muito desorganizado, um anarquista. Mas, ao mesmo tempo, para mim foi uma sensação muito estranha, ouvir um presidente, um político falando, e achar que ele é bacana e acreditar nele. É uma sensação muito estranha, pois a gente está acostumado a olhar com desconfiança ou aceitar que está falando bobagem porque é um político. E aquele cara, cada vez que falava, quando apareceu na assembleia da ONU, a gente chorava. E num país pequeno como o Uruguai, você conhece o cara, cruza com ele na rua. Um amigo meu conta que uma vez estava dirigindo na estrada e estava o presidente com o fusca dele, parado, pedindo carona porque ficou sem gasolina. São coisas muito fortes. Afinal de contas, o que é mais importante, ter um presidente que seja executivo ou um que seja um padrão moral e ético par sociedade inteira? É uma pergunta boa. Ele retornou uma tradição que o país tinha, e que a região tinha, de liberdades individuais. O Uruguai, na primeira metade do século passado, teve leis de vanguarda no mundo: voto feminino, trabalho de oito horas, aposentadoria. E agora, com a lei da liberação da maconha, o casamento igualitário, a lei do aborto. Ele novamente colocou o Uruguai em uma vanguarda de nível mundial. O país está nesse momento no grupo das 10 nações com melhor qualificação das liberdades individuais. Lá você realmente sente que a democracia funciona, que as liberdades funcionam, que a gente é livre e o Estado não está para fazer sacanagem com a gente, está para ajudar você. Toda aquela questão executiva, é importante também, mas minha visão do que aconteceu com ele, é que vamos ter muita saudade.

Culturíssima: Aqui no Brasil a gente vive um momento, tanto no congresso, quanto na sociedade como um todo, em que a caretice parece que volta a ganhar força. O povo uruguaio médio, lida bem com questões políticas mais progressistas?

Drexler: Acho que tem conservadorismo em qualquer sociedade, mas essa região, que antigamente era o Rio Grande do Sul e o Uruguai, sempre foi um sítio em que o poder da Igreja Católica foi muito fraco. Gente que estava fugindo da Inquisição, vinha pra cá. Os anarquistas, Garibaldi, toda essa gente libertária, vinham pra cá, pois ficava na fronteira, longe do Rio de Janeiro, longe de Lima. Então o poder monárquico na América do Sul, era fraco nessa região. Aquela obsessão do gaucho pela liberdade, tem a ver com isso também. E no Uruguai tem uma onda de gente pensando assim, de forma libertária, anarquista, não religiosa. A Igreja e o Estado se separaram no Uruguai em 1918, foi um dos primeiros países do mundo a separar. Isso gera uma liberação. Mudamos até os nomes no calendário: Semana Santa lá é Semana do Turismo. Cara, se você quiser ser religioso, faça o que quiser da sua vida, o Estado não é religioso, e não tem que impor nenhuma religião a ninguém.

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