Entrevista | Ana Lonardi e a arte das musas

(foto  Dulce Helfer)

(foto Dulce Helfer)

Inusitado ou não, a cantora e compositora gaúcha Ana Lonardi não está lançado o seu disco novo ou um DVD de um show seu. Ana está lançando um documentário. Arte das Musas? foi idealizado e produzido por ela e dirigido por Tiago Trindade em 2015. O filme reúne o depoimento 14 musicistas de diferentes estilos, origens e gerações e, através dessas histórias revela as personagens para além da beleza e da imagem, mostrando mulheres criadoras, produtoras e transformadoras do mundo através da música.

Após elogiada pré-estreia em Porto Alegre, a partir desta segunda-feira, dia 20, Arte das Musas? entra na grade de programação do Canal Brasil. A primeira exibição ocorre às 19h30, mas outras três reprises já foram anunciadas: 21 de junho às 17h30; 22 de junho às 12h; e 26 de junho, dentro da Maratona Curta na Tela, que começa às 7h.

Ana Lonardi participou do programa The Voice em 2013, quando conseguiu projetar uma carreira que já dava passos importantes na capital gaúcha. Em 2014, lançou o primeiro DVD, gravado dois anos antes, e agora trabalha nas últimas faixas de seu primeiro disco, um álbum duplo que deve ser lançado no ano que vem. Ao Culturíssima, ela contou como foi concebido o documentário, alertou sobre a necessidade de combatermos preconceitos e encorajarmos as meninas a serem musicistas e também falou da exeriência de ter participado de um reality musical de tamnha proporção.

Culturíssima: Como surgiu a ideia de filmar o documentário?

Ana Lonardi: Parece ter sido de surpresa, mas são aquelas idéias que vão amadurecendo subconscientemente. Desde 2012, quando gravei meu DVD e comecei a fazer shows maiores, queria fazer algum projeto que juntasse mulheres. Tenho essa coisa social na minha personalidade. De início, queria fazer um calendário. Pensava em ter um material que, quando enviasse o meu, já fosse junto essas outras artistas. Quanto mais forte é o universo artístico em que a gente vive, mais ele atrai o olhar das pessoas e mais ele é valorizado. A gente cresce se juntando. Isso já vinha desde o Formiga Records, que era um selo que criamos eu, a Gisele de Santi, o Rodrigo Panassolo e Edu Martins. Pensamos isso, que se a pessoa, por exemplo, procurar o trabalho da Gisele, automaticamente vai achar o nosso. Bem, e se tivesse um calendário, com mais outras 11 artistas? E a coisa das mulheres, porque desde pequena cresci no meio de muitos homens e acabei sempre me questionando muito sobre isso e tal. Mas aí a idéia do calendário acabou não se concretizando. Só que todo ano eu fazia alguma ação singela no Dia Internacional da Mulher, ou um texto, uma foto, alguma coisa assim. Aí em 2015 estava com uma visibilidade bem maior, porque já tinha participado do The Voice em 2013 e depois, em 2014, comentei o programa aqui para o Jornal do Almoço. Estava chegando o Dia Internacional da Mulher e estava pensando no que fazer, em como utilizar essa visibilidade para esse assunto. Então surgiu a ideia de uma foto, estilo editorial de moda, que seria com várias mulheres posando. A gente é muito vista pelo nosso físico, um pedaço de carne que tu pode fazer o que tu quiser, e isso sempre me agrediu muito.

Desde a idéia do calendário já tinha uma lista de artistas, com nomes que escolhi por afinidade, mas não só musical, porque tem muitos estilos diferentes, e sim de pessoas que admiro como colegas, que honram a camiseta. São pessoas que fizeram parte da minha vida em algum momento e que admiro. Então liguei para uma amiga fotógrafa, que já fez várias fotos minhas, que é a Dani Bacellos, e convidei para fazer o projeto assim, meio free, pela causa. Ela topou. Bem, aí vai juntar essa mulherada toda! E se fizéssemos um making off? Vamos registrar esse momento! Então falei com o Tiago Trindade, que é o diretor do filme, junto comigo. Pensei que não podia fazer só imagem sem fazer essa mulherada falar. Aí surgiu a ideia de fazer esse mini documentário, e todo mundo começou a se engajar. Comecei a ligar para maquiadora, cabeleireira, amigos, e aconteceu, em três dias tudo isso se organizou. Filmamos tudo em um domingo, no Café Fon Fon, que é o clube de jazz no qual a dona é a Bethy [Krieger, pianista e compositora]. E desde o início o plano era lançar no Canal Brasil.

Chama a atenção o ponto de interrogação no título. Qual o motivo?

Musa é um termo que objetifica. A gente pensa musa e pensa em uma modelo, ou em uma pessoa que está ali a serviço de um olhar que consome. E o termo música veio da mitologia grega, das nove musas que eram filhas de dois deuses:  Zeus, expressão máxima do poder, e Mnemonise, a deusa da memória. Cada uma dessas nove musas trabalhavam, tinham uma função, e elas faziam música, tocavam instrumentos. Então a música seria a arte das musas. Só que com o tempo a gente simplificou esse termo, “musa”. Ao invés de lembrar da mitologia, em que eram pessoas ativas, a gente pensa como objeto de desejo. A música nos traz entretenimento, mas também é um espelho da nossa alma, para as nossas ideologias, nossos sentimentos. É um instrumento de autoconhecimento, de socialização, um instrumento cultural de memória. Então a música é formadora de uma sociedade, e pensar que é só entretenimento, que não é profissão, é uma coisa ridícula. Só que é o que as pessoas pensam. E a mesma coisa em relação às mulheres. Nesse sentido, no filme, a mulher e a música são uma personagem só. E a interrogação é no sentido de questionar: será que é a arte das musas mesmo? Que musas são essas? Será que sou uma cantora, com seu glamour, que está sempre na cadeira do cabeleireiro e vive maquiada como na foto, e cantando como um rouxinol, ou será que sou uma pessoa que trabalha pra caramba, que retocava a maquiagem das gurias no set, porque não tinha uma equipe grande e porque banquei do meu bolso? A Simone Raslan, que as pessoas vêem lá no palco do Theatro São Pedro, mas não sabem que ela está há 30 anos dando aula para crianças. Ela me formou, foi minha primeira professora, ela dá aula na Lomba do Pinheiro para crianças carentes, no projeto Villa-Lobos. Ela faz um monte de coisas que ninguém vê. Então a interrogação é nesse sentido.

A intenção já era que o filme passasse no Canal Brasil. Como isso se concretizou?

A minha experiência com cinema já tinha acontecido. Protagonizei o filme Nervos de Aço, que foi co-produzido pelo Canal Brasil. O diretor carioca Maurice Capovilla veio fazer esse filme, com a obra do Lupicinio Rodrigues, em que o protagonista era o Arrigo Barnabé, e ele precisava de uma protagonista feminina. Tinha que ser uma cantora nova. Fiz o teste com ele e fui escolhida. E só vivendo o cinema para entender como ele também é um instrumento formador. Era um musical, então as músicas serviam a uma história de amor que acontecia dentro da banda. Vivenciei aquilo de maneira muito visceral. Então já tinha uma relação muito boa com os diretores do Canal Brasil, já tinha ido a festivais de cinema com eles, conversado bastante pessoalmente. Eles adoraram Arte das Musas?. O tamanho do filme não cabe na grade, porque ele não é nem longo o bastante para uma grade de uma hora nem pequeno para uma de meia. Mas eles decidiram colocar mesmo assim porque gostaram, gostaram da temática, da sensibilidade.

Quando a gente foi filmar, pesquisei na internet, em inglês e português, e não achei nada sobre mulheres na música. Tinha alguns vídeos e tal, mas aí apareciam as mais sexys, mais charmosas. Fiquei chocada! É tão tabu que as mulheres sejam da categoria de base da cultura popular, que não tem. As pessoas só sabem que existem cantoras, mas estamos falando de base ali no filme. Tem baixistas, tem roadis, engenheira de som, produtora musical, pianista, violonista, oboísta e saxofonista, só que não são lançadas à luz. E elas não têm incentivo desde pequenas como os homens têm, e isso é muito sério. Não há um incentivo para criar futuras gerações de musicistas. As pessoas pensam que instrumento de mulher é piano ou violino. Não, não é. E essa questão de gênero limita todo mundo.

Você canta profissionalmente há cerca de 10 anos. Hoje, com esse alcance que tem tido as campanhas de empoderamento feminino e igualdade de gêneros, você sente alguma mudança no comportamento machista dentro do universo artístico?

Não gosto da palavra machismo. Acho que não se trata dos homens, mas sim de todo mundo. Então prefiro misoginia, e essa questão sempre esteve muito presente, tanto em homens como em mulheres. É considerado inferior ser mulher. A gente considera um absurdo um homem se vestir de mulher. Aí fazem com que esse homem possa apenas se prostituir, afinal ele é um animal e não poderia estar em um balcão, por exemplo, atendendo as pessoas. Acho que isso representa muito bem o que é.

No meio musical, no início, senti bastante. Quanto mais ignorante as pessoas são, mais elas são violentas nesse sentido. Hoje tenho a benção de conviver com músicos nada ignorantes, muito evoluídos nesse sentido. Mas no início, lembro que tinha aquela coisa do canário, e isso é falado também em relação aos homens. O canário tem a cabeça bem pequena e só sabe cantar. Só que rola mais com as mulheres. Eles acham que mulher não entende nada de música. Aí se tu demonstra que canta bem e tem um ouvido bom, eles começam a tentar de agredir em relação a outras coisas. Tenho ouvido absoluto, se tocar alguma coisa, eu sei que nota que é. Então dizer para um cara que se acha, que aquele não é o acorde certo, é fazer com que ele te desafie. “Então qual é o acorde? Tu não sabe o que está dizendo. Não venha me contestar”. E tem várias outras coisas, como a hipersexualização da mulher. No começo, e não só comigo, os homens se autorizavam a dar em cima. Nada de violento, comigo nunca aconteceu, mas se autorizavam a tratar a gente de um jeito diferente. Então sempre tive que assumir uma postura específica para trabalhar, para não dar margem a esse tipo de coisa, que é uma coisa que eles não precisam fazer.

A misoginia está muito presente também nessa questão do não encorajar o estudo. Acho que é a coisa mais grave que acontece. Como, por exemplo, não encorajar uma menina que quer aprender um “instrumento de menino”, assim como não encorajar um menino a ser cantor. Eles pensam que cantar é inferior, que é coisa do canário. Quando vejo um músico, baixista, como o Edu Martins, que gosta de cantar, fico maravilhada. E com o tempo a gente vai desbravar esse matagal que são os nomes masculino e feminino.

E atualmente, tem a coisa da composição também. Tem muitas artistas que tocam, cantam e que estão compondo, sobretudo aqui em Porto Alegre.

Eu componho, e já recebi comentários misóginos tanto de homens quanto de mulheres. Quando compus a música Chocolate, fiz a melodia e passei para o Mário Falcão, pedi para ele fazer a letra. Aí ele fez uma, eu fiz outra e depois a gente mesclou e saiu a música. Um dia fui mostrar para uma colega cantora. “Nossa, que linda. De quem é essa música?”, respondi que era minha, com o Mário Falcão. “Sério? Mas quem fez a melodia?”. Disse que eu que tinha feito. “Ah, mas tem um monte de notas”, como quem queria dizer: como assim uma guria fez isso? E até hoje isso acontece. Tenho três parceiros de composição, o Allan Dias Castro, o Eduardo Pitta e o Rodrigo Allende. Aí eu, uma mulher no meio desses três homens, as pessoas pensam que é obvio que quase não participei da música. Obvio que eles compuseram e como eu estava ali cantando junto, botaram o meu nome na composição. Não, sabe? Muito pelo contrário. É horrível porque a gente tem que estar sempre se defendendo, sempre se provando.

Você pensa em fazer outros projetos como o documentário?

Me apaixonei muito. Isso é propósito da minha vida, que é lançar luz sobre aspectos que acho importantes do ser humano. Então já tenho idéia para três documentários. Não tenho dinheiro para fazer, mas um quero fazer, quero muito. Não vou revelar o que é, mas envolve um artista especificamente e envolve questão racial, que é uma ferida muito grande aqui do Rio Grande do Sul, e ninguém fala sobre isso. Existe um ódio velado que aparece em coisas que ninguém enxerga. Conseguir lançar luz sobre isso vai ser muito importante, da maneira como é em Arte das Musas?, em que a gente não levanta bandeira em nenhum momento, mas é mais para trazer as mulheres e mostrar. Olha aqui, tem mulheres musicistas! Olha, meninas, se inspirem nessas aqui. Ou então: colegas, se reconheçam nessas aqui! Sempre amei documentário, e o bichinho do audiovisual me mordeu.

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Todo o elenco do documentário “Arte das Musas?”

Agora queria que você comentasse um pouco do antes e do depois da tua carreira, após ter participado do programa The Voice.

O antes e o depois é diferente, no olhar das pessoas. Claro, é diferente pra mim também. Sempre falo que entrei menina e sai quase uma mulher. Hoje me considero uma mulher, mas quando entrei era muito, muito insegura. Tem um lado meu muito inseguro. Aí é uma guerra, consigo mesmo. Porque a gente está sendo julgado, tem cadeiras viradas de costas, e isso já é uma coisa ofensiva. Não que o programa seja ofensivo, mas é que soa ofensivo para que está se apresentando. Mas tive muito mais visibilidade, no ano seguinte tive muito mais convites, conheci muito gente, vi a realidade do show business e isso foi muito transformador. Descobri que quero sempre fazer um trabalho relevante, muito mais do que ser famosa, muito mais conseguir movimentar massas que eu sei que não vou movimentar. Então minhas músicas, minhas composições, meus filmes, tudo tem que ser voltado a uma causa. Não me sentiria verdadeira se eu não fosse útil.

Artisticamente, a noção de sucesso e muito ampla. Você não acha que esse tipo de programa de competição musical promete um status de mainstrean para o público e para o artista que na verdade é falso?

Não sei se é errada. Acho que está tudo certo, há males que vem para o bem. Ok, também não vamos chamar de males, mas acho que é isso. Se tu faz um programa como esse, que pode deixar um artista depressivo aqui, outro feliz ali, quando na verdade tu está fazendo uma população de 35 milhões de pessoas assistir música na TV, em horário nobre. E sempre tem vários gêneros musicais, mesmo que esteja voltado para a música americana, para a música pop, sempre tem MPB, sempre tem samba, e faz com toda uma geração tenha esse contato que, daqui a pouco, não iriam ter. E ali dentro tem produtores musicais comprometidos com isso. Mas com certeza, as pessoas na rua pensam que a gente tomou chá com a Claudia Leitte na casa dela. Não, na verdade a gente tem um contato bem restrito com eles. As pessoas acham que a gente entra para um mainstrean que a gente não entra. O programa cria essa expectativa, mas são poucos que entram. Mas acho que está tudo certo.

Estou longe de ter um profundo conhecimento de técnica vocal ou coisa parecida, mas a impressão que fica é que, às vezes, parece que se torna uma competição de quem grita mais alto. Você enxerga assim também?

Totalmente. É muito contraditório, até na visão dos técnicos. Minha visão é a da técnica vocal e a da música brasileira, então tem muita coisa ali da qual eu não concordo, mas é o estilo de cada um. Vejo que os técnicos ora dizem que está cantando muito americano, ora eles dizem que adoraram, e o cara cantou super americano. Quanto menos conhecimento musical a pessoa tem, mais é distorcida a percepção que ela tem, aí o público acha que cantar bem é cantar mais alto. Se é um programa voltado para a audiência, eles vão querer colocar o que o público gosta. Não gosto de falar do público dessa maneira, mas muitas pessoas realmente acham que cantar é gritar. E arte não é só técnica, arte também é estética. Então, a Beyoncé não canta melhor que o João Gilberto, que não canta melhor que a Leila Pinheiro, que não canta melhor que o Seu Jorge. São estéticas diferentes.

Você tem formação em psicologia. Baseado nisso, que impacto você acha que teria na Ana de 10 ou 12 anos participar de um The Voice Kids?

Não sei! Por um lado, acho muito perigoso. Se um adulto vai lá, e ele não sabe quem ele é, ele está ferrado, porque ele vai deixar que aquilo defina ele. É grave tu deixar que uma cultura de objetificação do artista te defina, mas se tu sabem quem tu é, tu luta contra aquilo. Foi o que eu e muitos colegas fizeram. Mas com a criança, ao mesmo tempo que acho que pode ser muito perigoso, por outro lado, vejo que elas não têm o medo que a gente tem. Elas não têm noção do que é uma carreira, do que é ter algo a perder. Eu pensava que se eu não passasse, tudo que conquistei em anos iria por água abaixo. Acho que elas não têm isso a perder. Assisti poucos, alguns momentos, mas elas parecem muito felizes de estarem ali. E tem outra coisa, eu sou de outra geração, não nasci nessa geração que tem celular, tablet, que assiste desde cedo vídeos de outras crianças se encorajando, se empoderando, e cantando pra caramba. Eu tinha vergonha de cantar, morria de medo. Então não sei, espero só que não prejudique muito elas, que não crie aquela coisa da ideia de que o valor delas está na quantidade de seguidores que elas têm, ou no quão famosas elas são ou  não. Isso sempre foi perigoso e sempre vai continuar sendo.

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