Entrevista: Cida Pimentel e o Rock Gaúcho

Dilvulgação

Foto: divulgação

Luiz Paulo Teló

No final de fevereiro, a produtora Cida Pimentel foi indicada pelo Governo do Estado a integrar a equipe do Setor de Programação e Projetos Especiais da Casa de Cultura Mario Quintana. Atuando na área musical há mais de três décadas, Cida participou do boom do rock gaúcho em meados dos anos 80. Viu nascer e ajudou a impulsionar bandas como TNT, Garotos da Rua, Cascavelletes e Cachorro Grande.

Há poucos dias, recebeu a reportagem de Culturíssima em sua sala, no segundo andar do clássico prédio rosa da Rua dos Andradas, 736, no centro histórico de Porto Alegre. Mesmo não se dizendo saudosista, Cida não balbuciou ao afirmar que o mundo moderno lhe dá preguiça. “Acho meio chatinho”, disse.

A produtora falou sobre sua nova função na CCMQ, mas também relembrou os velhos tempos. E diagnosticou o porquê das bandas gaúchas não fazerem sucesso fora do estado: “O rock gaúcho é classe media. Todo mundo tem pai, mãe e endereço. Muito difícil deixarem a mordomia pra passar fome”.

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Luiz Paulo: Como surgiu a oportunidade de trabalhar na Casa de Cultura Mário Quintana e qual a tua função aqui?

Cida: Fui convidada pelo atual secretário de cultura do estado [Víctor Hugo] a integrar essa equipe porque sou produtora há 40 anos. Acredito que o secretário pensou em colocar técnicos nos lugares. Aqui, coordeno a equipe de projetos especiais. A gente é uma usina de produção, dando suporte para as equipes, oficineiros, pros artistas que vêm para os nossos teatros. Para todos os eventos, dou o suporte de produção.

LP: Nesse pouco tempo aqui, o que já deu pra notar?

Cida: Contamos com pouco dinheiro. Mas contamos com pessoas sensacionais, que estão dedicadas. Vou te dar um exemplo: temos quatro pianos, e tem um que está muito feio, cheio de cupim. O conserto dele ia custar uma fortuna. O restaurador de móveis disse pra mim: “Compra o material que faço a restauração gratuita pra Casa”. Então, é isso que notei. Existe um respeito da população da cidade e do estado por essa casa. Esse amor se transforma em gestos de carinho, como este. Na verdade estamos passando por tempos bicudos, mas esse governo tem grande preocupação com a cultura, e mesmo sem dinheiro, a gente tem boa vontade e criatividade.

LP: Tua área sempre foi a música. E não está agora trabalhando especificamente com música, né?

Cida: Não. Mas lá no século passado, no início da minha carreira, fiz até cenário de teatro pro Gilmar Messias. E show é show. Tanto faz montar um balé, um teatro, um show de rock’n’roll: tu precisa que a luz esteja funcionando, precisa que o alvará esteja em dia, precisa dar suporte para essas pessoas, precisa de assessoria de imprensa. Tudo é igual, o que muda é o artista. Como optei na minha vida em ser graxa, em viver atrás, acho que todos são iguais. O importante é que a luz caia sobre eles.

LP: Como ingressou no mundo artístico?

Cida: Ah… Não sei! Quando vi eu estava lá. Estava trabalhando, estava vendendo ingresso, arrumando equipamento de som, conseguindo lugar para os caras tocarem, estava fazendo show. Quando eu vi, foi…

LP: Qual tu acha foi teu primeiro trabalho?

Cida: O meu primeiro trabalho bacana tem 30 anos, mais ou menos. Eu fazia relações públicas na PUC, e fiz assessoria de imprensa para o Rock Unificado I, e depois para o Rock Unificado II. O primeiro trabalho que saiu o nome lá em coordenação de imprensa. Depois foi no programa do Taranatiriça. Foram os primeiros trabalhos creditados a mim. Antes disso era semi-amador. Isso faz uns 34 anos. Sou uma pessoas do século passado mesmo.

LP: Continua trabalhando com o Conjunto Bluegrass Porto-alegrense ainda?

Cida: Sim. A gente é músico de rua, toca aos domingos do brique [da Redenção] e não interfere em nada no meu trabalho aqui. Aqui estou de segunda à sexta. Chego às 8h30, bem faceira, cheia de ilusão… Nunca fiquei tão ansiosa assim, aqui é um lugar muito lindo. Eu chorei quando passei pela Casa, e tive um sonho nesse final de semana em que caminhava pela casa e chorava. Chorava emocionada de ver um espaço tão lindo à disposição de todos. É lindo isso aqui. Eu deveria pagar pra trabalhar aqui!

LP: Li em outra entrevista tua sobre a opção de BlueGrass em tocar na rua e criticando os bares.

Cida: Vou te dizer uma coisa. Não tem nada a ver aqui com a Casa. Eu acho que, quando as pessoas se levantam pra brigar com a SMIC, SMOV, pra defender dono de bar, as pessoas estão loucas! Dono de bar quer vender bebida, estão pouco se lixando para o cachê do artista. Já trabalhei em bar. Agora, também não se preocupam com alvará de bombeiro, não te dão segurança, tu não sabe como está a fiação elétrica de onde tu está tocando. Aí fecha um bar porque ele está perigoso, e todo o público jovem diz “ah, coxinha, fechou o bar”. Não! As coisas precisam de alvará. O cara para ser músico, ser ator, ele tem que estudar, se preparar, ter o seu equipamento de trabalho. Por que um dono de bar não tem o seu equipamento? Por que fica com 40% do cachê do artista? Pra manter equipamento? Mentira. O equipamento é podre sempre. Claro que tem exceções. Deve ter um, ou dois, ou três, no máximo. Mas na verdade é a exploração da arte, que sempre foi tratado como cidadão de segunda, sempre entrou pela porta de trás. O artista sempre entrou pela porta dos fundos, e isso é um conceito medieval. Mas isso não é uma opinião do Conjunto Bluegrass. O que os guris pensam, e eu também penso assim, é que a cidade precisa ser ocupada. Cidade ocupada é cidade segura, porque não é se fechando em casa que tu consegue ter segurança. As grandes cidades, como Buenos Aires, tem assalto, mas o povo está nas ruas. Se tu tiver gente na rua, ocupando o espaço público, tem menos espaço para o bandido. É isso que a gente prega, a ocupação do espaço urbano.

LP: Há poucos anos, vocês chegaram a vender 15 mil discos na rua. Como está esse conta?

Cida: Sim, deve ter aumentado bastante. Porque em cada evento que a gente toca a média de venda é de 80 ou 100 discos. Nós somos uma empresa, temos nota, pagamos impostos. A SMIC [Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio] tinha um secretário antigamente, o Valter Nagestein, e fui lá e perguntei pra ele o que deveria fazer. “Vai no SEBRAE e te legaliza. Se tu quiser ter voz e vez, tem que ser legalizado”. Então fui no SEBRAE, aprendi a montar uma empresa, pagamos um impostos ridículo de trinta e poucos reais, temos alvará e toda a segurança para tocar na rua. Ninguém pode nos abordar porque estamos dentro da lei. O decibéis, o volume de som dos nossos equipamentos é o permitido. Os guris limpam e catam todo a sujeira que fica na volta. Então, a gente ocupa uma área, não polui o ambiente, paga imposto. Acho que o Conjunto Bluegrass é um lindo exemplo de cidadania. Formamos um grupo muito diferente, temos gremista, colorado, de direita, de esquerda, de centro, de meio. Entre nós cinco, cada um sabe de si. Mas nós em conjunto somos cidadãos, e pensamos no bem da comunidade.

LP: Acha que o público de Porto Alegre abraça as questões da cultura?

Cida: Claro! Eu peguei, no chapéu, moeda de mendigo. E não foi uma nem duas. Inclusive o próprio chapéu foi o mendigo que me deu, pois esqueci o chapéu em casa e disse pros guris que tinha esquecido e o mendigo tirou o chapéu com etiqueta italiana e me deu. É muito legal. Todo mundo: o velhinho gaudério, a tiazinha da vila,o advogado, o desembargador, o engenheiro, a patricinha, o coxinha, o ‘pode crê’. Todos gostam de música, de arte, e são super receptivos, generosos, acolhedores. Tipo, passa uma pessoa, a gente está tocando e o Márcio [Petracco] fala “ah, o café da manhã”. Quando vê, vem uma pessoa com um saco de pão de queijo, água… Gente do povo, não são pessoas ricas. E tem pessoas ricas também, que deixam ali 50 pila, que é um monte pra nós que vivemos de moeda.

LP: O que tu viu mudar dos anos 80 pra cá, no mercado e na produção?

Cida: Bah, eu vi o mundo mudar. Não entendo mais nada. É ruim agora. É bom e ruim. Bom porque o guri de Cacequi, Antônio Prado, tem a mesma informação que o guri de Liverpool e Londres. Mas o ruim é que é muito fácil, então a gente é entupido na internet de tudo quanto é clipe, de som bom e ruim. Às vezes você perde de ouvir a melhor banda do mundo pra ouvir uma porcaria, de tanta coisa que é oferecida. É ruim que as pessoas não têm mais paciência de ler mais do que quatro frases. É muito rápido, acho que tem de prestar mais atenção. Mas são os dias atuais, temos que pensar pra frente, é o que a gente tem que viver. Não sou saudosista, só me dá um pouco de preguiça o mundo atual. Acho meio chatinho. Não vou a tudo quanto é show mais, acho ruim. Primeiro que não tem onde sentar, é desconfortável, antigamente era mais confortável, e também se tinha mais vergonha na cara, não tinha tanto picareta.

LP: Como assim?

Cida: Antigamente as coisas eram mais sérias. A lei da selva, como era muito mais difícil, as pessoas ficam mais exigentes. Então, antigamente não era de brincadeira. As brigas eram sérias, era tudo mais pesado, talvez mais denso. Até agora pode ser que seja melhor.

LP: Quem tu viu surgir?

Cida: Todo mundo. [Risos] Todo mundo que tu acha que é famoso eu vi surgir nas fraldas. Hoje almocei com o Júpiter [Maçã]. Conheço desde criança. Almocei com ele e com a mãe dele. Ele é um amor comigo, completamente diferente.

LP: Como ele está?

Cida: Ótimo, maravilhoso. Um querido, cheio de planos. Ele mente um pouquinho pra mim, mas ele está super bem. Achei mais gordinho, parou de beber e tal. Está escrevendo a biografia, compondo. Mas assim… só não vi nascer o Bixo da Seda, mas era amiga do Pecos, do Fughetti e dos guris.

LP: Por que tu acha que surgiu todo aquele pessoal meio junto?

Cida: Por causa do fenômeno do disco, por causa do mercado, era uma boa época, em que as gravadoras tinham dinheiro. As rádios não tinham aprendido ainda a fazer jabá. Ainda bem que agora rádio já era! Fico bem feliz que agora ninguém está nem aí pra rádio. Mas foi um momento, um momento financeiro bom. Não debito na conta do ‘ah, o movimento’… foi tudo meio por acaso, por coincidência. Olha só, eu fui para o Rio de Janeiro, no Circo Voador e vi um show coletivo com Kid Abelha, Blitz, Paralamas e Ultraje a Rigor. Vim encantada, era uma piá, e consegui que o dono da [casa noturna] Crocodilos tirasse quatro mesas do fundo, fiz um palco e comecei a fazer show de rock nos domingos. Não é um lugar mítico como o Porto de Elis, nem o Ocidente. Era simplesmente uma discoteca falida e foi a primeira a fazer show de rock em Porto Alegre. Ele estava falido mesmo e deixou eu fazer aos domingos e lotava: Garotos da Rua, TNT, Prize, Prisão de Ventre… O Prisão de Ventre era mais famoso que o TNT, que abria o show pra eles.

LP: O Prisão era do Gordo Miranda?

Cida: Não, o Prisão de Ventre era do Frank Jorge, do Felipão, do Marcelo Birck e de um baterista que esqueci o nome. Depois vai me vir o nome, mas ele largou o rock. Era uma banda que fazia músicas engraçadas e tinha como ídolo o Premeditando o Breque… Aquelas letras engraçadas do Frank e do Birck. Ali foi o bercinho deles. Vi também o TNT nascer, vi todos nascerem! Juntei a Cachorro Grande da lata do lixo, e disse “essa vai ser a última banda de rock”. E acho que é mesmo. Ninguém mais acredita nessa mentira de sexo, drogas e rock’n’rol. O mundo está muito chato, politicamente correto, nada pode, fumar não pode! Em um mundo que fumar maconha vai ser liberado e fumar cigarro proibido, o que tu acha que aconteceu? Eu, como sou transgressora, fumo Marlboro até morrer.

LP: Por que a Cachorro Grande saiu do estado e se deu bem?

Cida: O rock gaúcho é um rock classe media. Vão me matar quando eu disser isso! Todo mundo tem pai, mãe e endereço. Muito difícil deixarem a mordomia pra passar fome. Como os guris da Cachorro já eram bicho solto, já estavam vindo de Passo Fundo, pra eles foi muito fácil se desgarrar. Acho que é isso. Eles passaram muito perrengue em Porto Alegre, e quem passa fome e necessidade em um lugar, passa em qualquer lugar do mundo. Eles precisavam muito fazer sucesso, tinham muita vontade, muita capacidade, muita gana, muita fome de rock. As outras bandas são mais ou menos, vão lá e ficam três dias em São Paulo, passam qualquer dificuldadezinha e voltam chorando. Eu mesma, nunca sai de Porto Alegre. Fiquei trabalhando aqui.

LP: Já tentou?

Cida: Não. Se eu tivesse tentado, era rainha! Estava rica em São Paulo. Aqui nunca ganhei dinheiro. Assim, dá pra viver, mas na real, quem fica aqui, fica porque ama.

LP: O termo rock gaúcho mais ajuda ou mais atrapalha?

Cida: A gente é xenófobo. Acho que atrapalha. Rock é rock.

LP: Então não existe um rock gaúcho?

Cida: Ah, existe. Tenho uma tese que ninguém acredita e todo mundo ri da minha cara. Em RJ e SP eles tem escola de samba. Os bateristas são suingados. O nosso baterista aqui é como rock inglês [imita o som do bumbo]: ‘bom… bom’. É o bumbo leguero, sabe? Eu acho isso. É outro tipo de batera, mais pra The Who.

LP: Tu ainda escuta coisa nova?

Cida: Escuto, mas não muita coisa. Meio que me entupi, confesso. Mas também não escuto coisa velha. Na minha casa praticamente não escuto música, virei uma ranzinza. Escuto só quando tem que trabalhar. Pouca coisa me chama atenção. Não canso de ouvir três discos: Curto Circuito, do Bebeco Garcia, Led II e qualquer coisa do ZZ Top. Mas eu sou incapaz de levantar e ligar a vitrola, porque lá em casa é vinil – que meu marido inventou isso porque tenho preguiça também. Eu disse que o último show que iria na minha vida seria o ZZ Top e fui. Vi no mesmo mês Johnny Winter e ZZ Top e pendurei a chuteira. Me arrependo, gostaria de ver o Motorhead, que sou fã, mas é muito difícil eu ver show. Nem o Júpiter, que é meu amigo, eu vim ver. Não tenho paciência mais… a pessoa fica velha. Show, pra mim, é pra trabalhar. Ficar assistindo show não tenho mais saco. Morro de pena das pessoas que acreditam demais no rock. Acredito em outras coisas hoje em dia. Acho que as pessoas ficam brincando, e é muito sério, é uma brincadeira perigosa. Se tu não for ser profissional, nem entra. Por isso que os Cachorro Grande foram os últimos. Eu sei que vou apanhar de quem ler isso daqui. Na minha casa vou ouvir mijada, que não deveria ter dito isso. Mas quem não estuda, não pega seu instrumento oito horas por dia, pra ouvir, pra estudar, querendo ser músico, nem se estabeleça, porque é só pra encher o saco dos outros. Não tenho mais paciência pra malandro. É isso! Se é pra brincar, vai brincar de panelinha, em casa.

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