Entrevista com o cineasta Boca Migotto

boca migotto

Luiz Paulo Teló

Depois de uma temporada percorrendo festivais, Filme Sobre um Bom Fim, documentário do cineasta Boca Migotto, fica em cartaz entre os dias 20 de agosto e 2 de setembro no Cine Santander Cultural, em Porto Alegre. O filme, que versa sobre um momento de efervescência cultural em um dos bairros mais simbólicos da capital gaúcha, deve estrear também em outras cidades, até mesmo fora do Rio Grande do Sul.

Essa semana, conversamos com o diretor para entender, entre outras coisas, que tipo de aceitação o documentário tem tido junto ao público não porto-alegrense. Boca Migotto, publicitário por formação, professor do Curso de Realização Audiovisual (CRAV) da Unisinos, dono da Epifania Filmes e de uma carreira segura no cinema, também nos contou suas impressões sobre o mercado de trabalho e o nível das produções nacionais.

Culturíssima: Nesse mês de agosto, Filme sobre um Bom Fim chega aos cinemas. Como vai ser essa circulação?

Boca Migotto: A gente vai fazer um lançamento conta-gotas. Ele vai passar agora em Gramado, na Mostra Gaúcha de longa-metragem, aí logo depois a gente faz o lançamento dele no Ocidente, no dia seguinte já entra no Cine Santander, que tem duas exibições com debate. No dia 20 estréia no Rio de Janeiro, no Cine Joia e em Setembro em Caxias do Sul. Estamos negociando pra Florianópolis, São Paulo, Recife.

Culturíssima: No primeiro semestre ele circulou em festivais. Como você sentiu a aceitação por um público não porto-alegrense?

Boca Migotto: A maioria das pessoas entendeu que o filme tenta falar de um período histórico do Brasil, os anos 80, sob o ponto de vista da cultura produzida pelos jovens que estavam descobrindo o que era viver em uma democracia. E que falava disso a partir de uma experiência  ocorrida aqui no Sul do Brasil. O cenário é o Bom Fim, mas a história aconteceu em Brasília, Rio de Janeiro, Recife, em Salvador, Belo Horizonte, enfim. É uma história que aconteceu nas principais cidades brasileiras, obviamente, cada uma com suas peculiaridades. A gente viveu um momento em que essas questões de globalização ainda não eram tão fortes, então tinha peculiaridades muito mais perceptíveis em cada um desses lugares. Porto Alegre era Porto Alegre naquela época. Hoje tu está em Porto Alegre e tem coisas de Londres, tem coisas de Paris, de São Paulo – pelo bem e pelo mal. Então, a maioria das pessoas percebeu isso. Agora, sempre tem os que já olham o filme com certo preconceito, vêm com aquele papo de “ah, história que gaúcho está contando pra gaúcho”, e bairrismo, e não sei o quê. Mas foram muito poucos. Dos críticos, teve um, que nem lembro o nome, e nem vale guardar o nome do cara, que disse algo do tipo: esse filme deve ser assistido por quem tem interesse em cultura, gaúchos e gaúchas. Mas aí tu vai ver e a crítica dele tinha três parágrafos, sendo que nos dois primeiros ele copiou inteiramente o nosso release. Como tu vai dar crédito para um crítico que, mais da metade da crítica dele, é a cópia do teu release? Então nem dei muita bola. Agora, tiveram outras críticas muito boas, de gente que realmente percebeu a relação. O fato dele ter entrado no [festival] É Tudo Verdade já demonstra um pouco isso, porque esse ano, especificamente, eram seis filmes, e o único que não era de Rio e SP era o meu. A curadoria do festival percebeu no filme algo que vai além de uma história regional, e que tem aspectos universais dentro do filme.

Culturíssima: Sobre aquele tempo que você documenta, o que te surpreendeu ou o que você só percebeu após os relatos e do filme pronto?

Migotto: Eu sabia quase tudo [risos]. Esse projeto levou 12 anos pra acontecer, a gente foi inscrevendo ele em vários editais. Foi o primeiro projeto que escrevi quando decidi que queria trabalhar com cinema, antes de ter a minha primeira produtora. A gente achou que ia ganhar muito fácil esse edital e não ganhou. Foi se arrastando durante 10 anos com a gente sempre sendo reprovado, pelos mais inexplicáveis motivos. Tanto que o projeto que ganhou é basicamente o mesmo que eu vinha inscrevendo ao longo desse tempo. Tem uma questão política aí que eu me negava a fazer: ir lá, conversar com a pessoa, pedir pra dar uma olhada com carinho no projeto. Isso eu me nego a fazer, nunca fiz e nem vou fazer. Mas, ao longo desses 10 anos, não fiquei parado, fiquei pesquisando. Fiz o meu mestrado, e a minha dissertação era sobre a história da Casa de Cinema, por exemplo, que está completamente dentro dessa história do Bom Fim, dos anos 80. O Giba [Assis Brasil] é personagem importante, o Werner Schünemann também. Então, quando fui entrevistar essas pessoas, muito pouco eu não sabia daquelas coisas que entraram no filme. A gente entrevistou 60 pessoas, eu acho, ou um pouco mais que isso, e nessas entrevistas acabei aprofundando alguns aspectos que nas pesquisas, nas minhas leituras, enfim, não tinha prestado tanta atenção. A música e o cinema era muito forte. A música por ser, talvez, o principal gênero cultural que surgiu nesse período, com a trilha sonora de toda essa geração, e isso veio pra minha geração e ainda vem pras gerações de hoje. Não tem como não saber muito sobre a música, até saíram alguns livros, como Gauleses Irredutíveis, alguns documentários falaram sobre isso, então tinha já bastante coisa. O cinema também, por ser a área que eu trabalho. Talvez sobre o que eu menos soubesse era sobre essas expressões culturais mais singelas, e até o teatro, que não é muito a área que domino. Algumas coisas descobri conversando com o Marcos Breda. Descobri também algumas coisas sobre literatura, alguns fanzines que marcaram época, por exemplo um que era tipo uma toalha de mesa, que os caras colocavam nas mesas dos bares. Aí as pessoas iam comer e beber, e ao redor da toalha tinham essas coisas pra ler, pra comunicar que ia ter tal show, em tal lugar. Isso eu fiquei sabendo fazendo o documentário. Mas a contextualização toda, eu já sabia. Tinha minhas dúvidas é se as pessoas iam encarar aquilo como movimento cultural, pois desde o início eu defendia que o que tinha acontecido ali chegava ao ponto de poder ser considerado um movimento, mas tinha dúvida se todas as pessoas tinham esse olhar. A maioria tinha, e isso foi bom de comprovar ao longo das entrevistas.

Culturíssima: Como o filme trata da ditadura militar?

Migotto: Está presente, não tem como fugir disso. Embora o documentário tente focar a expressão cultural, essa expressão cultural surge também por causa dessa transição da ditadura para a democracia. Tudo surge desse movimento que começa na esquina maldita, na Sarmento Leite, ali onde os estudantes da UFRGS, da Arquitetura, das Letras, da Filosofia e do Direito, iam se encontrar. Em alguns daqueles bares, como o Copa 70, o Estudantil, o Alaska, eram lugares que as pessoas se encontravam para ficar falando de política. Embrionariamente surgiram ali alguns líderes do PT, que viria a ser fundado depois. Então tinha uma coisa meio conspiração de esquerda naqueles bares. Talvez fosse, como alguns depoimentos disseram, que o que se falava era maior do quê realmente acontecia. Mas o que se fazia era suficiente para a polícia fazer batida lá, invadir lugar, volta e meia tinha algumas pessoas infiltradas. Realmente, essas pessoas tinham medo, pois alguém desconhecido que começava a frequentar o lugar, podia ser quem ia te prender e te torturar. As pessoas sumiam, desapareciam da noite pro dia. Não tanto quando na Argentina, ou São Paulo e Rio, mas acontecia também em Porto Alegre. Então esse aspecto da política está presente ali. Quando acontece a abertura, primeiramente ela permite que as pessoas se reúnam,  coisa que era difícil até então, pois encontros de quatro pessoas era considerado formação de quadrilha. Segundo, tinha uma questão conceitual, das pessoas pensarem: bem, não estamos vivendo mais uma ditadura, a gente está vivendo uma democracia. E, três, é a primeira vez que essa geração começa a ter contato com o que era produzido lá fora, tanto do ponto de vista de equipamento – equipamento de cinema um pouco melhor, uma guitarra um pouco melhor -, como também contato com o que estava sendo produzido lá fora em termos de cultura. O próprio movimento punk, chega ao Brasil 10 anos depois de ser iniciado na Inglaterra. Mas a chegada disso permitiu que essa geração tivesse contato com novas referências.

Aqui no RS acontecia uma fenômeno interessante, que não acontecia em São Paulo, Rio e Brasília por causa da posição geográfica: se de uma certa forma tu estava no extremo sul do Brasil, e não estava participando das decisões que aconteciam naquele triangulo Salvador, São Paulo e Rio, como acontecia desde a época da Bossa Nova, por outro lado, quem estava aqui tinha condições de ir para Uruguai e Argentina, para consumir filmes, ouvir discos e ter acesso a livros que eram proibidos no Brasil. Então a geração daqui tinha acesso a novidades, embora vivesse em uma cidade totalmente provinciana, que no centro do país ainda não tinham tido essa oportunidade. Enfim, isso é política de certa forma. E uma política nem tão direta, mas que também está presente no documentário, é a política municipal, urbana, de saber o que tu vai priorizar dentro da cidade. Um discussão que é super contemporânea, que a gente está discutindo o fechamento de bares na Cidade Baixa, construção de prédios não sei aonde, o Cais Mauá, que está sendo entregue de mãos beijadas para a iniciativa privada, sem consultar direito a população, corta uma árvore aqui porque acha que tem de abrir uma rua… todas essas discussões que a gente está presenciando hoje, também aconteceram ali, ao longo dos anos 80, quando a cidade se transforma arquitetonicamente. O Bom Fim, no início dos anos 80 era um bairro baixo, basicamente feito de sobrados, existiam dois ou três edifícios ao longo da Osvaldo Aranha. E chega os anos 90 com esse casario destruído, dando lugar a prédios. É uma questão econômica, sim, mas é também uma questão política por trás disso. A briga na justiça para transformar o cinema Baltimore naquele prédio sem graça que está lá hoje é uma coisa que começa nos anos 90 e se alonga durante duas décadas. Não tem como falar da cultura sem falar desse ambiente, esse contexto político que essas pessoas estavam inseridas.

Filme sobre um Bom Fim

Culturíssima: Observando essa Porto Alegre do início do século XXI, o que pode virar documentário daqui a 20 ou 30 anos?

Migotto: Acho que esse movimento de preservação do Cais, esse movimento de tomar as ruas… Bom, daria para fazer um documentário só com registros do que sai na mídia. Esse momento que a gente está vivendo, de uma violência exacerbada, cada vez mais presos dentro das nossas casas, nos protegendo com grades, enquanto a galera está nas ruas, em função das drogas, do crak, que é muito foda. E a galera está ali, roubando, assaltando, matando por um tênis, pra trocar por uma pedra de crak, e a gente está muito assustado com isso, tentando resistir, tomando os lugares públicos, iluminando, fazendo shows e roda de violão, para tentar fazer parte desse ambiente urbano, e ao mesmo tempo o poder político e econômico de um lado, tentando fazer isso a partir do que eles acreditam que é interessante para a cidade, e geralmente é interessante só para o bolso deles. Aí nisso a gente está escutando o chefe da polícia dizendo que aconselha as pessoas a não saírem de casa, isso é um absurdo. Então esse momento que a gente está vivendo, espero muito que seja um momento, que seja uma transição, que a gente passe por isso e que, de certa forma, a gente consiga dar a volta por cima. Mas olhando isso com um olhar contextualizador, e tentar perceber que uma coisa está ligada a outra, daria um bom documentário para daqui a 20 anos.

Culturíssima: O cinema brasileiro produz documentários muito bons. Ao mesmo tempo que há essa boa produção, o espaço de circulação segue pequeno. Por quê?

Migotto: O espaço do documentário é pequeno em qualquer lugar do mundo. Sempre foi um gênero que teve mais espaço na televisão, aí depende da política de cada país sobre a sua produção audiovisual. Na Inglaterra tu assiste a documentário no horário nobre, aqui a gente assiste novela. Mas por outro lado, qual o tipo de documentário que tu assiste? É o clássico aquele, que tem ligação com a tradição do documentário britânico, que surge lá nos anos 30, com o John Grierson. Também não sei se isso não mudou, pois estou falando de quando morei lá, em 2001/2002. Até o History Channel, que era um canal que gostava muito de assistir, tinha bastante documentário, hoje é só reality show – que é um subproduto do documentário também, de certa forma. Mas existe esse espaço lá. Aqui no Brasil esse espaço começou a se ampliar com a nova lei da TV a cabo, com a popularização da TV a cabo, e as novas tecnologias. Tu vai no Netflix e consegue ver vários documentários. Bom, no cinema dá pra discutir porquê as pessoas não vão ver o cinema brasileiro. Mesmo o cinema argentino, iraniano, europeu. Nossos cinemas estão dominados pelo blockbuster americano, pelos filmes americanos e não adianta, não dá pra lutar contra isso. Quando tu vê que um filme como O Gorila (2011) fez 800 espectadores, tu fica assustado. O que sobra para o documentário? Não sei o porquê das pessoas não assistirem. Até acho que assistem mais do que já assistiram, até porque estão se produzindo mais documentários. Por causa de uma questão tecnológica, a gente tem mais acesso a tecnologia, e o documentário é, de certa forma, um gênero mais fácil de se realizar quando tu está começando a fazer cinema. Obviamente que não é um gênero que deve ser realizado apenas por quem está começando, não é isso. Tem muito ‘macaco velho’ fazendo documentários belíssimos. E também existe diferença entre fazer um bom documentário, aprofundado, com uma boa pesquisa, com uma boa concepção de linguagem narrativa, e simplesmente fazer um documentário. Mas, fazer um documentário, geralmente, é mais fácil que fazer uma ficção, e também mais barato, então isso faz com que mais pessoas produzam. E com mais pessoas produzindo documentários, a gente vai ter mais chances de ter bons filmes desse gênero.

A gente tem várias experiências que vêm surgindo nos últimos 20 anos, principalmente, que coincide também com o surgimento do festival É Tudo Verdade, que é um dos principais da América Latina. Tu analisando a história desse festival, tem uma ideia do aumento dessa produção. A gente teve carência de tecnologia no Brasil e na América Latina, teve também uma ditadura, da qual a gente saiu só há 30 anos, então temos um monte de história para contar e poucas dessas histórias foram contadas ao longo desse tempo todo. Temos um manancial enorme de histórias, temos agora o acesso a tecnologia de uma forma mais barata, o que também se permitiu que abrisse várias outras faculdades de cinema no Brasil, o que qualificou a produção. Basta pensar que, há 12 anos, quando o CRAV começou, existiam 10 faculdades de cinema no Brasil. Hoje tem mais de 30 ou 40. Em 2001, quando morei na Inglaterra, foi a época em que os EUA estavam invadindo o Iraque, e eu ia para as manifestações e me chamava a atenção a quantidade de gente fazendo documentários sobre aquele momento, com as suas VX-2000, que era a câmera fetiche, todo mundo queria ter, era uma das primeiras MiniDV com qualidade melhor e com preço acessível. Mas que aqui no Brasil custava 20 mil reais, e lá era 800 pounds. Lembro que quase comprei uma, só não comprei por causa do sistema, pois ia trazer pra cá e estaria em outro sistema, aí teria um problema técnico. Mas enfim, lá fora essas pessoas tinham acesso à tecnologia de uma forma muito mais rápida, muito mais fácil, o que permite que se produza mais e, experimentando mais, tu vai conseguir tirar de um universo de 100, 200 documentários, dois ou três muito bons. Como tu tira esses dois ou três de um universo de 15? É muito mais difícil. Cidade de Deus, Tropa de Elite, que são blockbusters brasileiros, são fenômenos, que poderiam ser muito mais se produzíssemos mais filmes brasileiros com orçamentos que permitissem essa qualidade.

Culturíssima: Pretende dirigir também longas de ficção ou tua ideia é seguir como documentarista?

Migotto: Tenho vários projetos de ficção em longa metragem. Mas eu faço ficção, já fiz vários curtas, séries de TV e tal, mas nunca vou deixar de fazer documentário, assim como nunca vou deixar de fazer curta. Não é uma questão de etapas: primeiro faz curta, depois faz longa; primeiro faz documentário, depois faz ficção. Meu primeiro curta é uma ficção, depois fui fazer documentário, aí tem outra ficção ali no meio, aí fui fazer série de TV, depois continuei fazendo curta de documentário. Já fiz dois longas de documentário mas não deixei de fazer curtas. Cada projeto é um projeto. Tem histórias que poderiam ser contadas sob a narrativa, a estética, a linguagem do documentário e também da ficção. Aí tu vê qual a forma mais apropriada de contar aquela história, assim como tem algumas que não vão render mais que um curta, e tem outras que tu olha e pensa que são muito boas e complexas para serem queimadas em um curta, aí tu espera alguns anos e segue trabalhando esse projeto para realizar um longa dele. Estou com três bons projetos de longa metragem de ficção, um deles nasceu quase junto com Bom Fim, ou seja, está há mais de 10 anos me acompanhando. Um outro nasceu dois anos atrás e tem outro que comecei há uns dois anos também. Mas antes disso tenho que encerrar meu ciclo de documentários sobre a Serra Gaúcha, e estou fechando agora um longa em que pretendo resumir toda essa minha preocupação com a memória da minha região, da minha história e tal. Estou caminhando para encerrar isso nos próximos dois anos. Tem que ter muita persistência no Brasil para trabalhar com cinema. Toda vez que tu senta para escrever, pensa em quando vai poder filmar aquilo. Pode levar dois, três, 10, 15 anos, aí tu fica meio desmotivado. Mas não adianta, tem que batalhar e tirar forças lá do fundo e seguir escrevendo, porque só depois de escrever bastante tu vai conseguir ter um roteiro adequado para filmar e até ganhar um edital.

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