Entrevista | Denise Fraga: “Arte não nos livra dos dramas, mas nos ajuda a caminhar sobre eles”

(foto: João Caldas)

(foto: João Caldas)

Carlos Garcia

Denise Fraga é uma atriz que circula entre o cinema, a televisão e o teatro. Seu trabalho é mercado principalmente pelo humor. Ficou conhecida por interpretar a empregada doméstica Olímpia, na peça Trair e coçar é só começar, e, depois, por fazer o quadro Retrato falado, no Fantástico. No cinema, obteve diversos prêmios com a atuação no filme Por trás do pano e estrelou recentemente a comédia romântica De onde eu te vejo.

No último fim de semana, Denise esteve em Porto Alegre para apresentar a peça Galileu Galileu. Recebeu a reportagem do Culturíssima, no foyer do Teatro São Pedro, para uma conversa exclusiva sobre sua carreira de mais de 30 anos. Na ocasião, a atriz também falou sobre a peça que está em turnê, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht e a delicada situação do país.

Culturíssima: O que te motivou a fazer a peça Galileu Galileu, de Brecht?

Denise Faga: Eu estava fazendo A alma boa de Setsuan, também do Brecht, em 2008, e a gente fez um grupo de leitura, onde lemos várias outras peças do Brecht. Quando eu li o Galileu, isso foi em 2009, 2010, eu pirei, fiquei com muita vontade de viver aquilo. Já tinha acontecido comigo com o A alma boa de Setsuan essa coisa de ‘eu preciso montar essa peça’ e com o Galileu isso talvez tenha sido mais forte, a ponto de querer fazer o personagem que, a princípio, não seria para mim. Achava que era um pouco de loucura eu querer fazer o Galileu. Mas aí quando convidei a Cibele [Forjaz, diretora da peça] e ela topou, isso me fez ver que não estava tão maluca assim. Eu queria muito falar dessa questão. Acho que o Brecht pega uma história que muita gente conhece, a história desse homem que negou a verdade, não só a verdade, mas ele poderia provar, com o telescópio na mão ele conseguia provar a teoria do [Nicolau] Copérnico que a Terra girava em torno do Sol. E aí ele achou que isso bastaria, que a igreja, mesmo os cardeais da inquisição, olhariam pelo telescópio e não duvidariam. Mas ele esqueceu que a verdade não existe. A verdade é a verdade que interessa ao poder vigente. Eu acho que isso será atual em qualquer época. Mas é incrível a atualidade da peça. Já era, quando eu quis montar, cinco anos atrás, imagina agora! Falo que a peça sempre será atual, mas agora ela parece quase uma encomenda.

O Galileu viveu há mais de trezentos anos, o Brecht escreveu a peça há mais de cinquenta anos e ainda e ainda permanece com toda essa atualidade…

É que fala de uma coisa intrinsecamente humana. A gente foi construindo essa sociedade em que a gente inventou viver, que ela é pautada pelo que rende, comoo dinheiro sendo o grande senhor e mandando em todos nós. Nós fazemos tantas concessões por conta do dinheiro que a gente está acostumado a se vender. Minimamente que seja, todos nós nos vendemos. A gente se acostumou a viver em concessão. O Brecht pega isso, ele teve que fazer muitas concessões na vida, creio eu, ele se identificava muito com esse personagem e acho que ele pensou que talvez ele não precisasse fazer concessões e as fez, então ele era tão obcecado que às vezes fico achando que essa peça foi quase terapêutica. O cara nunca escreveu uma biografia, a única que ele resolve escrever é a do Galileu Galilei. Eu tenho a impressão que ele era aficionado por esse personagem. E, não satisfeito, ele escreveu três versões da peça e sempre atualizando o que ele queria dizer. Isso, sem dúvida nenhuma, diz respeito a sua própria existência. Ele vê que todos nós, não tendo saída, temos que fazer concessões. Só que aí ele abre essa reflexão de um jeito incrível. Acho que a peça não é só sobre uma coisa, ela vai abrindo o pensamento para várias outras coisas e você fala: até onde eu vou conceder? Até onde eu me distancio de mim, eu me perco de mim ao conceder? Essa concepção todos nós vamos fazer, quando que eu me nego e deixo de existir? Como que você consegue olhar para você, tem lá sessenta anos e olha no espelho e fala; não eu ainda estou aí, ainda há um pedaço de mim.

Qual é a relação da peça com o momento em que o país está enfrentando?

Quando quis montar a peça, como eu disse, ela sempre será atual, mas os últimos acontecimentos do nosso país, que me deixam, particularmente, muito triste. De alguma maneira eu estou triste e feliz. Fico triste pelo que está acontecendo e feliz por, nesse momento, ainda estar conseguindo fazer essa peça. E aí, às vezes, as pessoas me perguntam ‘como você explica o sucesso dessa peça em tempos de crise?’, me fizeram essa pergunta, porque todos os teatros que a gente vai lota. Acho que justamente pela crise. O Brecht vira quase providencial, ele é fundamental na crise. Ele faz, de alguma maneira, você entender que a história está nas suas mãos. O Brecht chama a gente para o coletivo, chama a gente a participar da história, a por a mão na massa da construção da história. Então eu acho que a peça tem uma coisa que ela fala disso de você resgatar, minimamente que seja, pensar no que te move, quais são os seus mais puros ideais, se eles ainda, minimamente, algum ingrediente em você, para, mesmo servindo as estruturas de poder que a gente segue, trabalhando ás vezes em empresas que tem estrutura muito dura de poder, sórdidas, às vezes, onde você tem que baixar a cabeça para um monte de coisas, fazer cara de paisagem para um monte de absurdos, minimamente que seja, onde ali dentro você consegue alguma brecha para estar em dia com você mesmo, garantir o leite das crianças, garantir seu plano de saúde, o aluguel e conseguir ainda recuperar, tirar aquele projeto da gaveta que você deixou armazenado achando que não tem jeito, que você jogou a toalha, sabe? Imagina quantos projetos que estão dentro da gaveta que seriam muito melhores para a humanidade, dando lugar a outros que são mais rentáveis. A gente vive todo dia isso. A gente gostaria de recuperar várias coisas que a gente queria ver acontecer. E a peça de dá um pouco esse fogo, esse fogo de ir atrás do que você acredita.

No momento atual, quando você vê diariamente tudo que está no jornal, quando você vê os nossos governantes venderem a alma, as articulações políticas escancaradas na nossa cara, a gente viu acontecer agora uma coisa que chamou todos nós de tontos, abusa da nossa inteligência, uma articulação política do jeito que aconteceu, como não chamar isso de golpe? É que também as pessoas ficam com essas frases emblemáticas na cabeça e virou um Fla-Flu muito chato, que só dá dois lados da moeda para você torcer e eu acho que são muitos. É uma situação muito complexa, que merecia um prisma e não dois lados.

Nas suas crônicas, você fala bastante desse Fla-Flu e da intolerância exacerbada. De que forma a cultura poderia contribuir para dissolver ou suavizar isso?

A gente não é treinado a acreditar o quanto que a arte e a cultura são fundamentais para um país. Temos uma efervescência cultural intrínseca ao nosso povo. O nosso povo é muito talentoso, tudo se faz muito naturalmente. Em qualquer país do mundo a cultura é fomentada. Um país que quer ter uma sociedade melhor, ele fomenta sua cultura porque a cultura é a única maneira que o homem tem… não, não é a única maneira, é A maneria que o homem tem, desde que ele se entende por homem, de se entender, desde que o homem desenhava nas cavernas. É o espelho. É onde a gente compreende a imperfeição humana. Uma pessoa que está em contato com arte e cultura é uma pessoa que tem mais condições de perceber a existência, de entender seus próprios problemas. Eu sempre digo assim ‘a arte não nos livra dos dramas, mas nos ajuda a caminhar sobre eles’. Quem lê Dostoiévski e Fernando Pessoa, no mínimo vai sofrer mais bonito. Então você indo ao teatro, o teatro tem uma coisa que nessa peça, foi onde eu mais senti isso, que é essa coisa de você ver o público falar ‘obrigado por dar palavras àquilo que eu sinto e não sei dizer’. Isso é uma grande função do teatro e, nessa peça, eu sinto isso quase que sonoramente. O espetáculo é muito divertido. Uma das coisas que eu amo no Brecht é que ele usa o humor e a ironia para fazer você caminhar por uma reflexão. Ele sempre escreve com o timing cômico. É incrível como ele queria ser engraçado, como ele cofiava no humor como um grande e poderoso agente para a reflexão. Através do humor você garante a compreensão da plateia.

O humor, então, pode ser um atalho para chegar a reflexão?

Eu acho que o humor não é só isso. Muita gente acha que a reflexão com o humor, é como se o humor fosse um alívio. Não é um alívio. Ele é um poderoso foguete na informação. Você pode falar qualquer coisa de forma bem humorada. De forma irônica e bem humorada, você vai ter uma garantia de que aquilo foi comunicado. Porque o humor recruta a inteligência, você não ri daquilo que você não compreende. O cara que não entende a piada, não ri. A comédia é uma coisa que aciona o cérebro, aciona a sua compreensão. E o expectador quer rir, quer entender, quer chegar. O Brecht faz uma coisa genial, ele pega na mão do expectador e, através do humor, da ironia, consegue fazê-lo caminhar pela reflexão. E aí é um prazer imenso. É um deleite o espetáculo. Porque ele conta com o entretenimento, ele usa grandes ingredientes do entretenimento, música, histórias que ele monta quase folhetinescamente. Na história do Galileu, ele faz a filha terminar o noivado, ele briga com o noivo, desmancha o noivado da filha, quer dizer, ele usa ingredientes na trama quase como cenas de novela. Porque ele quer capturar a atenção da plateia com uma história potente, uma história boa. É gênio, né. Acho o Brecht muito popular, ele é engraçado, ele escreve para ser engraçado e eu fico feliz porque estou comprovando isso. Já é a segunda peça que eu vejo isso acontecer de uma forma potente, como ele é engraçado.

Engraçado, mas também reflexivo…

Agora, acho engraçado esse ‘mas também’, porque, para mim, agora não vem nem ‘mas também’. A graça não te tira… a gente tem uma ideia do humor porque talvez a gente tenha uma escola do humor de ‘mais a graça pela graça’. Mas quando você vê vários gênios como Chaplin, Bernand Shaw, Grouxo Marx, o humor é muito aliado à reflexão.

E a sua carreira é marcada pelo humor. Em que momento você descobriu esse seu lado?

Foi uma surpresa. Eu nunca fui muito engraçada [risos]. Meu irmão fala ‘eu que faço graça e você que ganha dinheiro com isso’. Mas é porque sempre fui muito tímida, pelo menos até  começar a fazer teatro. Falar que sou tímida hoje é meio ridículo [risos]. Mas eu tinha uma timidez muito grande quando era menina e mocinha. Entrei na escola de teatro com vontade mesmo de sofrer, onde me escorresse pelas paredes [mais risos], onde eu chorasse no palco contorcida. E a comédia foi aparecendo nos exercícios da escola. Mas a comédia sempre foi para mim uma coisa matemática. Eu não sou uma pessoa que eu sou engraçada por natureza. Nunca fui aquela que chegava na mesa e já fazia um monte de piadas. Eu sempre precisei de um texto e esse texto eu procuro fazer de forma engraçada. Gosto muito quando, na dramaturgia, eu encontro o timing cômico. Brecht escreve em timing cômico. Antes do último discurso do Galileu na peça, quando ele está em prisão domiciliar, ele introduz o discurso, que é o discurso mais profundo talvez da peça inteira, ele diz para o André, que é o discípulo que vai visitá-lo depois de anos: ‘em minhas horas de lazer, que são muitas’, piada. O cara está preso, em prisão domiciliar e velho e fala ‘em minhas horas de lazer, que são muitas’, é uma ironia. O tempo inteiro ele escreve em graça e ironia. É muito bonito de ver como é fino, sofisticado, mas é um timing cômico perfeito.

No Trair e coçar, você viveu o mesmo personagem durante seis anos. Mesmo no Galileu, que é recente, o personagem está bem vivo em ti. No Retrato Falado, você trabalhava de forma inversa, fazia um personagem diferente a cada episódio. Qual foi o tamanho desse desafio?

No Retrato Falado tinha um negócio em que você fazia alguém real, né. No início, eu ficava louca. Eu ficava vendo aquela pessoa a semana inteira. [Nesse trecho da entrevista, fomos surpreendidos pela agradável presença da dona Eva Sopher, que passou rapidamente por ali, para fazer um elogio à Denise, ao lembrar da encenação da peça Trair e coçar. “Naquela vez tu não roubaste a cena, roubaste o espetáculo inteiro”.] Então, eu ficava lá, escutando a fita, tentando absorver o ritmo daquela pessoa. E depois o Retrato Falado me fez entender uma coisa tão boa a respeito da profissão que é essa terceira personagem. A terceira pessoa que surge. É a inspiração, a intérprete e essa pessoa que não é mais Inês, não é mais Denise, é uma terceira pessoa que é um misto de nós duas. Antes quando eu aparecia do lado dela eu dizia ‘que ridículo, isso é um arremedo da realidade’. Diante da realidade o que é um ator tentando fazer a personagem. Era tosco. Mas aí eu saquei o que era essa leitura que você faz de alguém, o que é ser intérprete.

Você fez Trair e coçar durante seis anos. Não só foi um dos teus primeiros trabalhos, como foi uma das primeiras atrizes a fazer a personagem Olímpia. Depois que você saiu, a peça continuou em cartaz e foram feitas adaptações para o cinema e tevê. Você acompanha? E como é ver um personagem que você se apropriou tanto sendo feito por outra atriz?

Na verdade, não vi o filme e não vi a série. Mas fui ver a peça, quando o Trair e coçar fez 25 anos e a Anastácia [Custódio] faz muito bem. É bom de ver, né. Eu era muito feliz fazendo, gostava de fazer. Saí porque eu vi que precisava sair, porque, se não, só ia fazer aquilo. Era fácil ficar ali. Ainda mais gostando. Eu gostava. Era incrível o poder que tinha a peça, o teatro lotado. Era enlouquecedor e surpreendente. Mas eu vi que precisava sair porque, se não, só me chamariam para fazer coisas parecidas.

E depois de Trair e coçar você ficou um tempo longo sem fazer teatro…

Depois eu ainda fiz A quarta estação aí, sim, fiquei sete anos sem fazer teatro. Porque engravidei, praticamente duas vezes seguida, meus filhos são pertinhos um do outro e foi quando comecei a fazer Retrato Falado. E aí como fazia televisão e tinha os filhos pequenos, não tinha coragem de fazer teatro. Falava ‘mamãe gravou o dia inteiro e agora vai para o teatro?, não mamãe, vai ficar em casa’. Eu levava eles, dei de mamar no set com eles ainda pequeninhos, mas aí quando eles estavam maiores, em 2003, voltei com Três versões da vida.

Cinema. Como foi o trabalho no filme De onde eu te vejo, que há pouco tempo está em cartaz?

Muito legal. O filme é muito bonito. Eu fiquei muito feliz com o resultado do filme, porque o filme cresceu. A ideia foi vindo, ele era uma comédia romântica, só que na mão do Luiz [Villaça, diretor, esposo de Denise] essa comédia romântica ganhou outras profundezas. Então o filme é uma coisa que fala muito da cidade de São Paulo, o casamento, a separação, essa coisa de que você constrói e toda hora se destrói numa metrópole, essa rapidez das construções e das demolições e tudo que você vê que vai nascendo no lugar e o casamento está terminando. Um paralelo lindo, ele criou, desse casal que passa a se olhar pela janela. O Luiz fez um filme que tem uma poesia, um símbolo em nome dessa vida louca que as gente vive na cidade.

Denise contracenando com Domingos Montagner no filme "De Onde Eu Te Vejo".

Denise contracenando com Domingos Montagner no filme “De Onde Eu Te Vejo”.

Como surgiu a Denise cronista?

Comecei a escrever na revista Crescer. Antes eu não escrevia. Então já escrevia há uns dez anos na Crescer e veio o convite da Folha [de S.Paulo] e eu falei ‘sei lá’, mas quando foi dito que poderia escrever sobre o que eu quisesse, sobre o cotidiano, pensei que não podia perder essa oportunidade. E é uma coisa que eu estou gostando muito de fazer. Sempre escrevo com a arma na cabeça, não me sinto uma escritora. Eu não sento e ‘ah vou escrever sobre isso’ e vou ver onde vai ser publicado. Eu sou uma pessoa que escreve porque tem um prazo de entrega, e escrevo sempre no deadline. Mas é uma coisa que tenho feito com muito gosto. Eu custo a sentar na frente do computador, sempre com medo, mas depois que eu sento, eu não quero mais sair.

Você lançou o livro com as crônicas da Crescer. Tem planos para lançar outro livro?

Estou tentando organizar um com as minhas outras crônicas, uma compilação.

Atriz, atriz que faz humor, humorista. Como você se define?

Eu não me defino. Cada vez mais odeio rótulos. Acho muito chato. Acho muito chato no jornal ter que botar se é drama ou comédia. Sempre faço histórias entre o drama e a comédia. Desde que eu me entendo por gente, mesmo nas comédias mais explícitas eu fazia nesse meio. Porque nunca veio escrita a comédia para mim. A comédia faz parte da própria vida. Eu fazia o Trair e coçar, que é uma comédia vaudeville, uma dramaturgia muito boa do [Marcos] Caruso, com um miolo muito bem constituído de abre porta, fecha porta, encontra quem não pode encontrar… comédia explícita. Mas ali dentro tem a dor da pessoa de ser mandada embora, a hora que o patrão se separa da mulher, tudo isso você precisa fazer de verdade. Então, é engraçado, nunca teve essa divisão para mim. Nunca me incomodou ser chamada de comediante, eu sempre falei ‘sou uma atriz que faz comédia’, fiz muitas comédias, mas hoje eu prefiro dizer que eu sou uma atriz que confia no humor. Eu acredito no humor. Não é que eu não vá fazer nada que não tenha humor. Eu posso fazer papéis, e já fiz vários papéis, totalmente dramáticos, sem qualquer traço de humor. Mas, quando faço as minhas escolhas, é aquilo que eu falei, o humor é um agente tão potente para a reflexão, que acabo escolhendo meus trabalhos, mesmo sem sentir, são aqueles que esbarram no humor.

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