Entrevista | Negra Jaque: “Tem meninas que estão me olhando, então não posso parar, entende?”

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Luiz Paulo Teló

Tudo que a rapper gaúcha Negra Jaque queria, há 10 anos, quando iniciou sua carreira no grupo Pesadelo do Sistema, era que houvesse outra mulher no Hip Hop em que ela pudesse se espelhar. Hoje, ela é referência para muitas meninas das periferias do RS que sonham em fazer rima e cantar o seu cotidiano. “Cara, às vezes me dá um pouco de medo [risos]. Porque, na verdade, é bancar a louca e ir. Nisso, eu sei que tem outras meninas vendo eu bancar a louca e ir. Isso dá uma responsa desgraçada, e me cobro muito. Tem meninas que estão me olhando, então não posso parar, entende?”, nos contou.

Negra Jaque cresceu no Morro da Cruz, em Porto Alegre, lugar onde ainda mora. Além de MC, é mãe, ativista social, educadora popular e professora. Jaque vem militando em prol dos direitos das mulheres negras e da cultura do Hip Hop desde que deixou sua comunidade para cursar o ensino médio em uma escola no centro da capital gaúcha e se deparou com as dificuldades e preconceitos por ser jovem de periferia, mulher e negra.

Conversamos com ela poucos dias antes do Dia Internacional da Mulher, 8 de março, após sua performance na abertura da programação especial para a data que ocorreu no Teatro de Arena, uma casa em Porto Alegre conhecida por ser um lugar de arte e resistência contra o conservadorismo e autoritarismo, desde os tempos da ditadura. Negra Jaque falou sobre sua carreira, sobre apropriação cultural, feminismo e “racismo reverso”.

Culturíssima: Quando e como aconteceu de se apropriar de um discurso engajado, de militância, e de aliar isso ao hip hop?

Negra Jaque: Até o ano 2000, 2001, sempre estudei no bairro. Sou do Morro da Cruz, no [bairro] Partenon. Ali não tem escolas de ensino médio, então todos os jovens que terminam o fundamental saem para estudar fora. Então era esse o processo. Eu era uma menina da comunidade e fui para o Instituto de Educação, onde me tornei uma menina negra. Em uma turma de 40, tinham apenas cinco negros. Então tu começa a te questionar: por que as coisas só aconteciam com a gente? Por que as nossas dificuldades eram maiores? Por que só a gente trabalhava? Em uma turma de 40 alunos, só as cinco meninas negras precisavam trabalhar para pagar passagem e o seu sustento para ir pra escola. Então esse questionamento vinha. Sempre fui muito questionadora. Aí passou uns dois ano e fiz um outro curso, o de Educação Popular, que foi onde conheci o Hip Hop e daí não parei mais. Isso já faz 12 anos.

O Hip Hop entrou na minha vida nesta questão, de querer escrever de alguma forma aquilo que eu estava sentindo, e se aliou aos problemas que tive na escola, no centro, porque o Instituto de Educação atinge um outro bairro, diferente do meu, e os problemas enquanto mulher negra da periferia, e várias outras questões, como auto-estima e tal.

Tu começou tua carreira em 2007, no grupo Pesadelo do Sistema. Que tipo de barra tu enfrentou há 10 anos por ser mulher e MC?

O grupo surgiu junto com a minha gravidez. O pai do meu filho era desse mesmo grupo. Eu tinha 20 anos, já não era uma adolescente, mas mesmo assim, se tornar mãe, ter que trabalhar e manter uma criança junto com o pai. Dividir esse tempo foi muito complicado. Até o grupo, enfim, passou dois ou três anos, terminou. As dificuldades eram tantas. Tinha a casa, tinha que levar e buscar ele da escola, e sempre fui professora. Então essa rotina triplicada influencia diretamente na nossa produção, na nossa criatividade. Hoje meu filho está com nove anos e, sim, de dois anos pra cá comecei a produzir de uma forma que nunca pensei. Tenho 12 anos de Hip Hop, e agora que resolvi fazer carreira solo? Não! Isso foi pelos empecilhos, dificuldade financeira e tal. A gente tem uma galera, principalmente homens e não negros no estado que produzem cultura. Isso no Brasil também. Aí tu vai ver, o pai tem grana, e o cara não precisa trabalhar em outra coisa pra manter a casa ou o Hip Hop. Ou simplesmente ele é homem, e não tem filhos, e se tem, não tem a responsabilidade de ser como a mãe, porque a sociedade sempre joga pra gente. Então todas as problemáticas de que os caras são isentos, eu e outras mulheres do Hip Hop tivemos que dar conta. O que deixei de fazer por ser mulher? Nada, mas assim, a gente põe uma capa, né. Coloca a capa e vai, com dificuldade, com sofrimento, várias vezes quase cai em depressão, mas não deixa as coisas caírem de maneira total. Mas é uma barra foda.

Nos últimos anos a tua carreira solo ganhou uma projeção interessante na cena gaúcha. Tu percebe que isso já tenha impactado de alguma forma outras meninas mais novas que também querem seguir esse caminho?

Cara, às vezes me dá um pouco de medo [risos]. Porque, na verdade, é bancar a louca e ir. Nisso, eu sei que tem outras meninas vendo eu bancar a louca e ir. Isso dá uma responsa desgraçada, e me cobro muito. Tem meninas que estão me olhando, então não posso parar, entende? Cada MC que se coloca no palco e canta, está levando uma geração de gente junto, e isso é muita responsabilidade. Às vezes piro também. As meninas vêm e perguntam do cabelo, como faz pra rimar como eu… Que bom se há 10 anos eu tivesse alguém em quem pudesse me espelhar. Me espelhei em homens, mas enfim. Sou de uma família só de mulheres, em que elas chefiavam suas casas, então esse perfil vem delas.

E a cena do rap nacional, em termos de MCs mulheres, como tu enxerga atualmente?

Acho que a gente está em um debate muito grande de diversidade. Hoje tem várias. Tem Karol Conka, tem Glória Groove, que é trans. A Karol é uma mulher preta, que fala de diversidade, fala de sexo e se veste como ela quer. A Tássia Reis, que amo de paixão. Ela é completa. Essas mulheres são importantíssimas, que são femininas. Porque a gente passou por uma geração de mulheres que precisavam se vestir de homens para serem aceitas pelos homens, então era uma coisa bem confusa na cabeça da gente. Se o rap é a linguagem, é tu relatar o teu dia, por quê vou me vestir de homem se isso não é do meu dia? Então elas relatam, falam de sexo, falam do corpo delas, dos problemas que elas têm. O rap é isso, e elas representam. Vamos ouvir uma outra história dessa vez. O rap nasceu disso, de relatar a violência, praticada e sofrida pelos caras. Então vamos ouvir a versão das mulheres, da galera LGBT, é o que está acontecendo.

“Aí vai pra rua, lutar pelo feminismo
na manifestação, mas maltrata a empregada em casa, saca?
Que feminismo seletivo é esse?”

Dia 8 de março é mundialmente reconhecido como o Dia Internacional da Mulher. O que essa data significa pra ti e para a lutas das mulheres negras de uma maneira geral?

Na verdade esse dia é celebrado a partir de uma tragédia que aconteceu, das meninas serem queimadas. Não que todas lá me representassem, mas por serem mulheres, toda luta feminina é válida. Porém, enquanto estavam lá na fábrica, havia mulheres negras cuidando dos filhos delas. E hoje, que se diz que as mulheres estão alcançando altos postos, mas quem cuida da casa e faz os serviços domésticos? Quem, nas escolhinhas, cuida dos filhos de quem está lá chefiando? Então, as coisas não mudaram tanto: elas ganharam uniformes e um nome na carteira de trabalho. Estamos falando de coisas muito mais embaixo. Falamos de racismo, da luta da mulher negra, da luta da mulher negra feminista, de estrutura da sociedade, da gente admitir que há privilegiados. Quem são os privilegiados e quem sempre sofre? Então esse é um dia de refletir, das mulheres negras e das mulheres não negras. Não é dia de celebração, é dia de reflexão para a sociedade como um todo. A sociedade pequenininha, que está nascendo agora, então: que geração é essa que estamos criando? Quem são as mulheres ao meu entorno? Aí vai pra rua, lutar pelo feminismo na manifestação, mas maltrata a empregada em casa, saca? Que feminismo seletivo é esse? É preciso fazer essa reflexão. É 8 de março e está bom, mas bom pra quem?

Vi em outra entrevista, tu falando que é primeira pessoa da família a se formar na faculdade. Como foi essa jornada e como o acesso à universidade é encarado pelos jovens da periferia?

No meu bairro, não tem escola de ensino médio, como já tinha dito. Então a galera estuda até o nono ano, e depois se vira, arruma um trampo, sei lá, no supermercado, e já era. Mas a gente teve uma geração de políticas públicas que deram acesso a essa galera preta e periférica. Isso foi importante, e foi onde ingressei também, pelo Prouni. Isso já mudou a cara da faculdade, 10 anos já deu um impacto tremendo. Hoje a gente tem doutores, uma galera se colocando e defendendo outra galera, porque isso já coloca uma responsabilidade na galera que se forma. Qual a contrapartida social? Tu sabe da responsabilidade, tu sabe o que tu representa, tu enquanto médico, negro, entende? Então foi uma renovação, um choque grande pra sociedade. E tem de se acostumar, com pessoas diferentes, com diferentes formações étnicas, ocupando diferentes espaços. Esse é o mundo livre e ideal que a gente quer. Mas ainda está pouco, essa questão das cotas, é só uma migalha. A maioria ainda não tem acesso à universidade. Na minha família, só a minha avó teve oito filhos, cada filho teve em média mais quatro. Então, faz os cálculos, de quantas pessoas são pra só eu ter um diploma universitário.

Em 2015 tu lançou o EP “SOU”, e vem lançando alguns clipes no teu canal do Youtube. O que tu planeja pra tua carreira nos próximos anos?

Por enquanto, quero fazer mais um EP, para, quem sabe, no ano que vem, a gente fechar um disco. Quero sair do estado. Quero trocar o meu trabalho com outras pessoas, trocar informações e conhecimentos sobre a cultura Hip Hop. Porque a cultura Hip Hop no RS é uma, em São Paulo é outra. Já tive oportunidade de ir para outros lugares, mas não fazendo show, mas sim pelo meu ativismo. Mas quero ir sendo artista. E também ajudar na gestão da Casa do Hip Hop, que estamos montando lá no Morro da Cruz.

Então, como está essa história da Casa do Hip Hop?

Se tudo der certo, inaugura na metade de abril. Nós somos em cinco, educadores populares e moradores da comunidade. Tínhamos um projeto chamado Sábado Cultural, que é um circuito de cultura e arte. Só que, a gente que é do Hip Hop, estamos cansados de estar no meio da rua. Essa é a questão. Todas as culturas tem casa, o teatro, o balé, por que o Hip Hop não tem? A gente sabe de outras experiências. Tem uma escola do Hip Hop na Venezuela, com currículo e tudo. Em São Paulo tem várias, em Belo Horizonte também tem. Aí a gente está com duas lutas paralelas: a de Esteio, que a galera conseguiu a casa e agora está reformando; e a do Morro da Cruz, que estamos fazendo um galpão, que é a nossa cara [risos]! É de costoneira mesmo, com material todo doado. Tem um projeto de gestão em que vai se concentrar uma oficina de Hip Hop, mas que vai dialogar com todas as culturas. Vai ser um polo de cultura no morro, isso que a gente quer.

“Pra mim, a Carolina Maria de Jesus
é a mulher brasileira. Uma mulher da favela,
que criava cultura, que pensava sobre o seu entorno.
Ela era genial, relatava o que acontecia.
E a gente não tem acesso a ela.”

Tu está sempre envolvida com vários projetos culturais e de fomento da cultura afro. Um dos mais legais é o Sarau da Carolina. O que você pode falar dessa iniciativa e da escritora Carolina Maria de Jesus?

O projeto aconteceu em quatro edições no ano passado, dentro das periferias, e aconteceu um na Azenha, que foi num espaço de cultura negra, o Brechó Casinha Preta. A ideia era a gente trocar poesia e apresentar a Carolina para as mulheres. Pra mim, a Carolina Maria de Jesus é a mulher brasileira. Uma mulher da favela, que criava cultura, que pensava sobre o seu entorno. Ela era genial, relatava o que acontecia. E a gente não tem acesso a ela. Como pode, uma escritora tão brilhante, tão vendida fora do país, e nós, enquanto mulheres negras, brasileiras, não termos acesso a ela? O sarau esse ano não teve edições ainda, tivemos que dar uma parada por causa de questão financeira mesmo. E como a gente se colocava dentro da periferia, tem lugares que não conseguimos chegar, porque a gente é de uma periferia e, além de respeitar o espaço, a gente se coloca em uma situação de violência. No último que a gente fez, criamos problemas com homens da comunidade, porque é um projeto, um sarau, gestado todo por mulheres negras. Então isso desafia, pros entendidos e para os não entendidos, que acham que estamos invadindo o espaço e tomando o poder. A gente está, entendeu [risos]? É isso que queremos, mas não de uma maneira violenta. O sarau é isto, ele tinha uma proposta de trabalhar auto-estima, identidade, e apresentar a Carolina para as mulheres da periferia, trocar cultura e colocar elas também, os seus contos, as suas poesias. Era um espaço de socialização, na verdade.

O debate sobre apropriação cultural movimentou as redes sociais nas últimas semanas depois que uma menina postou um texto dizendo que “vai ter branca de turbante, sim”. O que você achou disso?

A gente tem uma cultura extremamente diversa no continente africano, de gente que foi sequestrada e veio pra América. Então, antes da galera sair vestindo qualquer coisa, e usando qualquer coisa, como se fosse adereço de carnaval, tem que pesquisar de onde veio. A mesmas pessoas que dizem que “vai ter branca de turbante, sim”, são as mesmas que riem quando a gente usa. O que acontece então? Qual o problema? Será que o problema está na gente usar? Aí se fala de racismo reverso, como se nós, negros, estivéssemos sendo racistas com os brancos. As pessoas também precisam estudar um pouquinho, entender que o racismo é um processo histórico, de quase 500 anos, não é só não gostar da cor da pele do outro. É um processo histórico, econômico, cultural, em que tu explorava o outro e dava como justificativa a cor da pele. Então só tem como um negro ser racista com um branco se voltar 500 anos, e fazer tudo aquilo que foi feito com os negros. Isso aí é só questão da pessoa buscar informação. E apropriação cultural é uma coisa muito séria. No Hip Hop, por exemplo, tu vê marcas multimilionárias usarem nossa cultura e ganharem milhões, e agente que produz, não ganha nada. Então a gente produz a cultura, faz ela florescer e quem ganha é quem não gosta da gente. Essa é a questão da apropriação cultural e da violência que ela vem carregada, é o uso daquilo do outro sem respeito, sem entender. E não só sobre a cultura negra, mas a cultura indígena também, e outras culturas, enfim. Acho que temos que ter respeito, cultura não é fantasia. ‘Ah, é carnaval, vou usar’, mas não usou o ano todo! A gente usa o tempo todo, a gente é negro 365 dias no ano. Esse é o problema da apropriação cultural, é a falta de respeito com o outro e com a cultura do outro.

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