Entrevista | Paulo Rezzutti e os bastidores do Primeiro Reinado no Brasil

Paulo Rezzutti_entrevista_Leopoldina

Luiz Paulo Teló

Há 200 anos, em 1817, a jovem austríaca Maria Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena embarcava para o Brasil, após o matrimônio via procuração com D. Pedro I. A primeira princesa europeia a se casar no continente americano ficou conhecida no imaginário brasileiro como o vértice frágil do mais célebre triângulo amoroso da história, envolvendo ela, o primeiro imperador brasileiro e Domitila de Castro, a Marquesa de Santos. Estes três personagens são tema de quatro livros do escritor e pesquisador Paulo Rezzutti.

Na última semana, Rezzutti esteve em Porto Alegre, participando de uma série de eventos para o lançamento de seu trabalho mais recente, D. Leopoldina – A história não contada: a mulher que arquitetou a Independência do Brasil (editora LeYa). Na biografia da imperatriz, o autor revela muito mais do que a esposa traída à luz do dia. Leopoldina foi um elemento político importantíssimo para o Brasil e tornou-se uma das articuladoras do movimento que visava à permanência de D. Pedro no país. Mais do que isso, revelou-se uma estrategista do processo de Independência.

Nesta entrevista exclusiva, Paulo Rezzutti fala sobre esse novo trabalho e conta como, há alguns anos, chegou até um lote de cartas inéditas trocadas entre D. Pedro I e Domitila, que estavam intocadas no Hispanic Society of America, em Nova York. Essa pesquisa deu origem aos seus livros sobre o período do Primeiro Reinado: Titília e o Demonão: Cartas inéditas de D. Pedro à marquesa de Santos (2011); Domitila: A verdadeira história da marquesa de Santos (2012); D. Pedro – A história não contada: O homem revelado por cartas e documentos inéditos (2015, vencedor do Prêmio Jabuti 2016 na categoria Biografia); e o mais recente, sobre D. Leopoldina.

Culturíssima: Já no título do teu novo livro, tu mensura um tamanho para a D. Leopoldina na história da Independência do Brasil que até então, pelo menos o público médio em geral, não imaginava. O que o livro apresenta nesse sentido?

Paulo Rezzutti: São determinadas cartas dela para o seu secretário, que mostram o quão envolvida ela já estava com a questão da autonomia do Brasil. Falo em autonomia, porque é uma pré-independência, não no momento da independência do Brasil. Quando tem a revolução lá em Portugal, chamada a Revolução do Porto, é feita uma Assembléia Constituinte, e ela exige o retorno do rei D. João VI para Portugal, isso em 1821. Essa mesma Assembleia começa a limitar o Brasil. Então, o Brasil era um Reino Unido, e ela vai destituir esse estatuto do Brasil como reino, e vai querer que todas as províncias do Brasil respondam à Lisboa, acabando com qualquer centralização de poder aqui. Era uma insanidade, e ela [Leopoldina] percebe que lá em Portugal acabou o poder do rei. D. João sai daqui como um absolutista e chega lá tendo de se submeter à Constituinte. E aqui era uma tela em branco, então Leopoldina acha melhor que eles fiquem no Brasil. O ‘fico’ dela, brinco que é anterior ao ‘fico’ do D. Pedro. Você percebe nas cartas a esses secretários que ela já estava totalmente envolvida nesse processo, inclusive pelas costas do D. Pedro. Tem uma carta em que ela fala que ficou surpreendida com a conversa que ela teve com o marido e o quanto ele estava favorável a isto, de continuar no Brasil. Ela achava que ele não ia querer. Aí você percebe uma Leopoldina totalmente política, envolvida com grupos políticos, era uma época de muitos panfletos, e ela pedia para ver os originais antes de serem impressos. Quer dizer, ela estava mais ligada que ele. Então ela tem um papel importante nesse processo de pré-independência e depois, durante a independência, e isso não é falado.

E como era a relação dela com o D. Pedro, além dessa questão mais política?

Ela chega no Brasil apaixonada pelo D. Pedro. Essa paixão é fruto do movimento romântico alemão, ela está inserida nele. O movimento está nascendo nos países de língua germânica quando ela está na adolescência. Ela vai conhecer o Goethe, por exemplo, pessoalmente. Ela vai lê-lo, vai ouvir Beethoven, vai dançar as primeiras valsas vienenses. Então ela está dentro desse movimento romântico, e isso faz com que Leopoldina se apaixone pelo moço do retrato. Aí ela atravessa o atlântico, o que já era uma viagem absurda, três meses dentro de um navio para o Rio de Janeiro, para conhecer o cara que ela casou. Mas isso era um casamento dinástico, era um tratado celebrado entre dois países, que tinha vantagens para Alemanha e Portugal. Havia motivos políticos internacionais para esse casamento, assim como houve na época do D. João VI e da Carlota Joaquina, só que eles não se apaixonam. No casamento dinástico, ela tem que parir filhos e garantir herdeiros para o trono. Só que a Leopoldina acaba se apaixonando pelo Pedro, e esse é o grande problema. Não tinha que ter paixão, amor, nada disso [risos]! No início, há um grande envolvimento entre eles, só que ele não podia ver um ‘rabo de saia’, então ela vai ter várias decepções amorosas com ele, mas vai estar sempre apaixonada. O relacionamento degringola, principalmente na época da Marquesa de Santos [Domitila]. Leopoldina mora no Brasil por nove anos, chega em 1817 e morre em 26, e nos quatro últimos, ela tem de conviver com a amante do marido. Ela não contesta, não se impõe…

 Mas esse conviver, é em que grau?

Pois é, o D. Pedro vai conhecer a Domitila em São Paulo, em agosto de 1822. Poucos dias antes de proclamar a independência ele a conhece. Quem guia ele do Rio para São Paulo é o irmão da Domitila. Ela tinha sido esfaqueada pelo marido, estava brigando pela guarda dos filhos, então provavelmente esse cara contou para o príncipe regente a condição de sua irmã, e talvez na tentativa de ajuda para resolver esse imbróglio, acabou gerando uma paixão entre os dois. Em 23 ele escreve para ela, pedindo para que venha de SP com a família. Em 24, esse romance passa a ser público. Em 25, ela é nomeada Dama Camarista da Imperatriz, e passa a morar no Paço Imperial. A filha que ela tem com o D. Pedro, ele reconhece e coloca para ser educado com os outros filhos dele. A população do RJ sabia, todo mundo sabia, só que a Leopoldina finge não ver, e com isso ela vai guardando mágoas e mágoas e mágoas. Deve ter sido uma situação muito constrangedora. E por culpa da educação que Leopoldina teve, ela entendia que havia uma moralidade e uma imagem que ela precisava manter para o povo. Um escândalo público arranharia a monarquia, então ela estava amarrada em sua própria condição social. Era uma situação bem complicada.

D. LEOPOLDINA_a historia não contada

Esse é o quarto livro envolvendo estes três personagens. A grande motivação, creio, veio de um conjunto até então inédito de cartas trocadas entre D. Pedro e Domitila, que estavam em Nova York. Como chegou a elas?

Eu queria escrever a biografia da Domitila. Minha formação é arquitetura, e no final da faculdade, precisei fazer um trabalho sobre restauro de imóveis em São Paulo, e tinha que focar em algum prédio restaurado, que tivesse sido reinaugurado há pouco tempo. Aí estavam reinaugurando o Solar da Marquesa de Santos, que é a atual sede do Museu da Cidade de São Paulo. Foi quando tomei conhecimento da Marquesa, não conhecia a história dela em São Paulo. Então descobri que ela nasceu e morou em São Paulo, que ela está enterrada em São Paulo. Comecei a me questionar, porque só conhecia ela como amante do D. Pedro, mas ela tinha vivido por quase 70 anos, e tinha sido amante apenas por sete. O que aconteceu com os outros 90% da vida dela? Aí comecei a pesquisar, e vi que a história dela em São Paulo foi apagada. Eu não queria ler 10 livros e escrever o décimo primeiro. Por que escrever se não for para contar uma história nova? E nessas pesquisas cheguei até essas cartas, então parei a biografia dela e escrevi o primeiro livro, que é o  Titília e o Demonão.

Mas como tu chegou nas cartas?

Ah, é uma história tão complicada. Se sabia desse lote de cartas. Estava perdido. E eu achei uma nota de rodapé em um livro, que mencionava que existiam algumas cartas em NY, e que não deixaram essa pessoa ter acesso. Esse livro é da década de 1920. E na década de 1980, foi publicado um livro chamado Cartas de D. Pedro I a Marquesa de Santos, que tem cerca de 200 cartas. E falava, de novo, desse lote que estava em NY. Tinham algumas cartas lá. Só que foi um erro de edição. O cara que deixou o livro pronto morreu, e o editor saiu colocando algumas coisas aleatórias. Aí de repente uma dessas cartas que estaria em NY aparece em uma exposição em São Paulo. Então entrei em contato com o Hispanic Society of America, e o cara falou que as cartas continuavam lá, não foram vendidas nem nada. Ué, mas tinha uma aqui em São Paulo… E o cara não conseguia entender o que eu estava falando, e tudo isso por um erro de edição. Foi aí que descobri que as cartas que estavam em NY, na verdade, nunca tinham sido publicadas. Descobri também que esse cara que criou esse museu, o Archer Milton Huntington, começou a coletar coisas referentes à história dos países latinos, e tinha algumas coisas de Brasil. Esse cara foi amigo de D. Pedro II, e comprou esse lote de cartas quando foi à leilão na Europa pela família da Marquesa de Santos. Ele comprou e nunca deixou ninguém chegar perto enquanto era vivo, em respeito ao imperador, que era amigo dele. Porque era uma coisa escandalosa, que ia expor o pai do cara e tal. Ele morreu na década de 60, mas esqueceu-se destas cartas, até eu começar a minha pesquisa.

Cara, tua formação é em arquitetura. Quando tu te dá conta que, na verdade, tu passou a ser um escritor e historiador?

Costumo falar que sou um pesquisador. A própria arquitetura me levou para a história, mas a questão de história das cidades. Descobri que a história era mais forte em mim que a própria arquitetura, e a história do Brasil, especificamente, nunca liguei, achava uma droga, gostava da história dos outros países. Na real eles vendem melhor que a gente. E tento fazer isso com meus livros, mostrar com mais profundidade os personagens, e os personagens secundários, as tramas paralelas, as coisas que aconteciam. Agora, por exemplo, está fazendo 200 anos da chegada da Leopoldina no Brasil. Eu consegui a iconografia inédita dessa viagem, consegui as histórias de bastidores dessa viagem, através do diário da dama de companhia dela. Tinha muita força política por detrás, os ingleses querendo atrasar a viagem, porque tinha época para atravessar o atlântico, e se atrasasse, e começasse a época das tempestades, teriam que ir para Portugal, o que forçaria D. João a voltar antes para a Europa. Então quando você vai se aprofundando, vê que tem um enredo legal, e a gente aprende tudo muito superficialmente na escola. Então a arquitetura acabou me levando à Marquesa, que acabou me levando ao Primeiro Reinado, e é o momento que o Brasil nasce como Estado. Esses personagens foram muito menosprezados, ridicularizado, e vejo que não foi bem assim. Tento ser o mais justo possível com essas pessoas, claro, com todos os seus erros e acertos, mas deixo o julgamento moral para os moralistas.

A biografia da Leopoldina é o quarto livro. Já tem uma ideia ou um projeto em andamento para próximas publicações?

Sim, mas na verdade esse quarto livro é o segundo de uma série. Assim, publiquei Titilia e o Demonão e a biografia da Domitila por uma editora. E agora estou na editora Leya, que já publiquei D. Pedro – A História Não Contada e D. Leopoldina – A História Não Contada. E agora essa série, “A História Não Contada”, tem mais quatro títulos. E o próximo, que estou escrevendo é a história das mulheres no Brasil. É uma ideia que surgiu por conta da Domitila e da Leopoldina, porque o papel político delas é eliminado da nossa história.

Que nomes, por exemplo, estarão nesse próximo livro?

Às vezes o nome está… A própria Leopoldina, que está presente em nossa história, mas ela é a mártir, que o marido traiu, sabe? Nosso imaginário está ligado só a uma coisa, enquanto o papel político dela é muito importante. Tem também a carta do Caminha, ele contando como é o Brasil descoberto pelo Cabral. Ali você percebe que o que importa pro homem, é o homem. A mulher, na carta do Caminha para o rei de Portugal, aparece só porque ela está nua, enquanto que o homem é descrito, como ele caça, como ele luta, a sua indumentária. Então começo contando desde as índias, como a Catarina Paraguaçu, que se casou com o Caramuro, o que é o português Diogo Álvares, e ela é levada para a França, apresentada aos reis como princesa do Brasil. Imagina, uma índia que em 1500 e pouco, conhece os reis da França! Tem a história das negras, como por exemplo a Mãe Senhora, que foi uma mãe de santo baiana, que na década de 60, em plena ditadura militar, foi nomeada Mãe Preta do Brasil dentro do Maracanã. Sabe, como assim? Então são essas coisas que estou tentando levantar.

Ano passado, com o livro sobre D. Pedro, tu foi premiado com o 3° lugar na categoria biografia do Prêmio Jabuti. Tu imaginava que um dia seria lembrado em um prêmio tão importante?

Não esperava. Olho todo dia para o Jabuti em casa e penso: nossa, não acredito [risos]! Sabe quando você acha que é muito cedo? Tipo, como assim? O livro sobre a Domitila ficou em 4° lugar, e eles premiam só até o 3°. Quando lancei D. Pedro, a esperança aumentou um pouco. Se a Domitila bateu na trave, acho que agora com o D. Pedro entra [risos]! Mas foi uma surpresa, eu queria e não queria ao mesmo tempo. Imagina, eu estava do lado Lygia Fagundes Telles. Minha esposa e meu editor estavam juntos, e os três pararam de respirar quando ela passou. E, nossa, dá um responsabilidade, tipo “agora essa porra ficou séria” [risos]!

Tu fica agora uma semana praticamente em Porto Alegre, fazendo a divulgação do livro. Isso já é fruto do prêmio? Porque é um período considerável…

Na verdade eu quero sair do eixo Rio-São Paulo, então esse trabalho de divulgação aqui em Porto Alegre, está muito mais intenso. Quer dizer, em São Paulo é sempre grande, mas no Rio menos. Nesses lugares, você tem vários veículos que estão sempre divulgando. E pensei que o sul seria uma ideia de começar a escapar um pouco desse eixo. Foi uma decisão minha vir pra cá e ficar uma semana. Está sendo muito positivo, está tendo uma acolhida muito boa. Já falei na FM Cultura, na TVE, teve o Sarau Elétrico que, nossa, foi surreal, e hoje aqui na Quarta Cultural. À noite tem palestra com os alunos do São Judas, amanhã tem uma reunião na UFRGS, que já vai gerar um evento em outubro. Eu sei que existe vida inteligente fora de São Paulo e Rio, e quero acessar essa vida inteligente [risos].

Então, quero saber como foi a tua participação no Sarau Elétrico, que já é quase um patrimônio da cultura aqui da cidade.

Foi mágico, uma coisa meio “se vira nos 30”. Aí tinha acabado de fazer o lançamento na Saraiva, e fomos correndo pra lá [no Bar Ocidente]. Chegando, conversei com o professor Luís Augusto Fischer e com a Kátia Suman, aí vi que a pegada era mais leve. Pensei: “putz, fodeu…”. Já tinha preparado um monte de trechos, sabe? Aí não, não vou por esse caminho. Sorte que não começou comigo, e sim com o Fischer. Fiquei só no livro da Leopoldina, falando curiosidades sobre ela e sobre a colonização alemã no RS, que tem tudo a ver. Então comecei a procurar coisas mais leves, mais engraçadas. Quando soube que ia participar, fui atrás e ouvi o Sarau que tinha a Manuela D’Avila, gosto muito dela, mas era uma coisa bem temática, sobre mulheres. Mas nossa, foi muito bacana, uma noite muito especial, e eu tinha acabado de ver o documentário sobre o Bom Fim [ Filme sobre um Bom Fim, de Boca Migotto]. Fiquei muito emocionado de estar lá, e ver o dono ali, que estava no documentário! Nossa, muito bom.

Como tu conheceu o trabalho da Lítera, que lançou o disco Caso Real, todo inspirado no livro Titília e o Demonão?

Assim… não comecei como alguns autores, que lançam o primeiro, o segundo, o terceiro livro e aí sim começam a ser reconhecidos. Eu já entrei chutando o pau da barraca! A mídia que teve Titília e o Demonão foi uma coisa absurda. Fiz Jô Soares, falei aqui pra FM Cultura, e pra todos programas de rádio do sul ao norte do Brasil. Revista, até na Sexy. Então foi uma mídia absurda, e com isso, você se expõe, e quando isso acontece, a gente vira para-raio de maluco. E quando eles vieram, eu pensei: “nossa, mais um”. Dá para escrever um livro só com essas pessoas que aparecem na minha vida [risos]. Só que eles já chegaram com o material pronto, com clipe de Domitila, e aí eu me apaixonei por tudo, pelo visual, pela música, pelo clipe. A gente começou a conversar e aí pensei: “ah não, eles são sérios”. Só tenho que agradecer a eles, pois eles acham que me devem alguma coisa, mas não. Ano passado, consegui que o Museu da Cidade de São Paulo, que fica no Solar da Marquesa de Santos, levasse eles para tocar no aniversário da cidade. Eles tocaram o Caso Rel lá e foi mágico. Aí ano passado também, tinha uma ideia da prefeitura de transformar o Cemitério da Consolação, que é o mais antigo de São Paulo, onde está a Domitila, e outras pessoas importantes da história do Brasil, em um museu a céu aberto. Já tinham feito até teatro lá dentro, então por quê não ter um show da Lítera? Consegui e eles foram pra lá, tocaram lá dentro, ao lado do túmulo da Domitila! Acho que os meninos tem tudo para dar muito certo, eles têm uma arte muito verdadeira.

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