Entrevista | Tati Portella em versos simples

Tati Portella_foto Aline Stoffel

(foto Aline Stoffel)

Luiz Paulo Teló

O reggae nacional teve sorte. Foi por uma cantarolada no banheiro do cursinho pré-vestibular, na virada do século, em Porto Alegre, que Tati Portella foi descoberta e convidada pelo flautista Plauto Cruz a ingressar no coro que fazia as aulas musicadas de literatura. Ela nem pensava em ser cantora, queria cursar jornalismo na UFRGS. Veio de Santo Ângelo para isso, mas nem chegou prestar vestibular. Quando se deu conta, estava entrando em uma banda de reggae. A Chimarruts nascia na metade do ano 2000.

Mas não foi só o reggae que teve sorte. Tati canta e compõe de tudo. “As pessoas tem mania de taxar, porque é cantora de reggae só vai cantar reggae a vinda inteira, e esse projeto veio para mostrar que faço do blues ao samba”, nos contou. O projeto, é o EP que está preparando, com as músicas que compõe há tempos, e que vem tocando nos show que tem feito sem a Chimarruts, acompanhado por uma banda só de meninas, que tem Bibiana Petek, Dejeane Arrue e Alexsandra Amaral.

Contudo, a banda segue na ativa. Embora tenha lançado seu último trabalho em 2010, a Chima nunca parou com os shows, pelo Brasil inteiro. Tati nos falou, em primeira mão, sobre o novo trabalho do grupo, que vai ter nove faixas e deve ser lançado em julho, de forma independente, com a ajuda dos fãs, através de uma campanha de financiamento coletivo que está sendo preparada.

Culturíssima: Você é de Porto Alegre?

Tati Portella: Não, sou de Santo Ângelo. Lá das Missões. Vim para estudar, fazer pré-vestibular, mas no fim, na época do cursinho, comecei a cantar e virei cantora! Não era meu intuito, que era fazer Comunicação Social, na UFRGS. Nem cheguei a fazer a prova! Tinha show, aí tive que optar, em ir fazer o show com a Chima ou fazer o vestibular.

Já cantava desde sempre?

Não, foi bem estranho. Na verdade, minha família inteira é musical. A minha mãe canta muito bem. O pai da minha avó era maestro, e ela tem o ouvido absoluto, violão em casa ela sempre afinou de ouvido. Então não era uma coisa assim “ah, que lindo, que talento saber cantar”. Todo mundo sabia cantar, daí não me via assim, desde pequena, fazendo covers na frente do espelho. Aí quando vim estudar, ficava cantarolando pelas ruas. E como tinha que ficar o dia inteiro no “cara-e-crachá” para pagar o cursinho, no Mauá, o Plauto Cruz me escutou cantando Elis Regina no banheiro. O Plauto é flautista de chorinho. Tinha umas aulas musicadas de literatura, com um coral acompanhado de flauta e do Mário Barros no violão. Era a parte que eu mais amava! Daí ele me ouviu, e quando sai do banheiro, já virei cantora. O Plauto me chamou pra cantar com eles, aí deixei de ser “cara-e-crachá” e pagava meus estudos cantando nesse grupo musical. O Sander e o Nê já tinham feito esse cursinho, e sabiam que tinha essas meninas que cantavam. Só que nenhuma quis fazer o teste, só eu que peguei o ônibus e fui até a Cruzeiro, onde era o ensaio da banda, e passei! Nunca mais parei. É bom que não criei aquela expectativa de querer virar cantora e viver de música. Foi tudo muito ao natural, não teve muita pressão de ninguém. Só no começo, quando liguei pra família para dizer que entrei em uma banda de reggae, não gostaram muito [risos]. E nesse primeiro ano da Chima a gente investiu todo o dinheiro de show para pagar o primeiro disco. Era uma banda empreendedora, a gente tinha 19, 18 anos, e como não tinha pai rico para sustentar, decidimos fazer caixinha para pagar o disco.

Quando vocês surgiram ali no ano 2000, estavam meio que sozinhos na cena reggae daqui, né?

Já havia acontecido bastante festivais. E fizeram uma coletânea com bandas daqui, e tinha Motivos Óbvios, Produto Nacional, um monte de gente que começou o movimento. Então nós não fomos os primeiros. Da nossa geração, quem surgiu junto foi o Armandinho. Teve também as bandas de Brasília, que moraram um tempo aqui, a Maskavo. Uma época em que tinha o RS inteiro para excursionar, e a galera aceitou o reggae. Parece que foi a gente, mas o movimento começou antes.

Agora você está trabalhando também a tua carreira solo. Como isso começou?

O que me impulsionou a colocar as minhas músicas autorais foi o projeto Autoral Social Clube, que na época em que fiz parte, era no bar Silêncio. Cada um tinha que cantar três canções, voz e violão, para apresentar mesmo e fazer um movimento autoral em Porto Alegre, e começou a dar muito certo. Foi ali que conheci a Bibiana, conheci uma galera que fiz uma banda chamada Quintal, com o Pramit Almeida, que veio do Belém do Pará, o Tiago Rubens, que é um dos que inventou o Autoral Social Clube. Eram músicas que eu já tinha feito há muito tempo e estavam na gaveta, e como não era reggae – uma era blues, outra MPB e tál -, achava que não tinha onde colocar esses sons. Então esse projeto foi o primeiro pontapé para tirar essas músicas da gaveta e pegar o violão, que morro de vergonha, e tocar ali. Aí comecei a ver que tinha alguma coisa, porque as pessoas gostaram daquelas músicas, e era completamente diferente da Chimarruts. A pegada, e até a forma de cantar, surpreenderam a galera. Pensei “ah, quer saber, vou montar uma banda só de mulheres, já que estou há 15 anos com uma banda com 20 homens, e só eu de mulher”. A banda então tem a Bibiana Petek na guitarra, a Dejeane Arrue, que é trombonista, e a Alexsandra Amaral na percussão. Agora vou entrar em estúdio e gravar essas músicas, fazer um EP com essas canções. Em paralelo a Chima está lançando disco novo também, tudo na correria.

Meu projeto autoral não tem muito essa coisa imediatista. Vou deixando as coisas fluírem ao natural, sem pressão de gravadora, ou para lançar o disco e fazer um super sucesso. É uma coisa mais underground mesmo, mas bem planejadinho, porque acho que tem bastante coisa boa para mostrar. As pessoas tem mania de taxar, porque é cantora de reggae só vai cantar reggae a vinda inteira, e esse projeto veio para mostrar que faço do blues ao samba, literalmente.

E a banda de mulheres é também pelo fato de querer levantar essa bandeira do empoderamento feminino. Não é uma coisa de militância, não gosto de coisas extremistas, mas pelo fato de ser uma mulher, que não faz um padrão de super gatinha, que não entrou no mercado porque é um produto vendável. No Brasil tem muito disso, da mulher linda, que vão colocar ali para cantar um “tchu-tchu-tchu” e dar certo. Gosto de estar no palco com mulheres pra dar esse empoderamento para as meninas que estão na plateia, de que a gente pode ser diferente e não precisa ir como um rebanho, acreditar no que tu quer fazer e ir em frente mesmo que não seja o padrão que as pessoas estão querendo.

Essas composições você nunca colocou para a banda?

Na Chima tem músicas minhas, mas são muito undergounds, tipo seis minutos, nem um pouco radiofônicas [risos]. Mãe Terra foi a primeira que compus na vida, um tema bem hippie. Na época nem cheguei a tocar em shows, só gravei, foi pro disco, os guris me incentivaram para mostrar que eu também sabia compor. E tinha algumas músicas que a gente compunha todos juntos, quando se reunia para tocar na Redenção. As minhas músicas, não tentei colocar na banda porque não vinham com uma linguagem de reggae, e aí forçar um arranjo acho que ia descaracterizar, ia ficar até caricato. Apesar da Chima flertar com outros estilos, a gente não é o reggae ortodoxo jamaicano, temos também essa pitada, essa batida da MPB, que o Sander tem muito. Então pensei que não precisava colocar essas músicas na Chimarruts.

O que você acha dessa cena atual de Porto Alegre, repleta de cantoras e compositoras surgindo?

Sempre conheci bastante gente talentosa, como cantora. É interessante elas aparecerem interpretando as suas canções. Acho bacana, e ao mesmo tempo ruim. Às vezes são composições fracas, mas são todas cantoras boas. A gente é acostumado com o Brasil, um país de super cantoras, somos conhecidos fora por causa disso. Agora na necessidade de colocar música autoral, acabam gravando coisas sem sentido. Vejo que não precisa ser um super trabalho autoral, de escrever um disco inteiro, se tem tanta gente que vive da composição. Um exemplo que acho bacana, de uma menina que me chamou a atenção, é a Duda Brack, que é gaúcha, foi morar há muito tempo no Rio, e é uma excelente interprete. Fez um disco inteiro com canções de amigos dela, como a Dani Black e Filipe Catto. Achei bacana porque ela veio com um disco muito bom, com uma baita interpretação, e sem aquela necessidade de ser um produto todo autoral.

Mas acho legal, tem que crescer. No RS tem até menos do que em outros lugares. Curitiba tem muita banda com mulher na frente, São Paulo, Rio, e aqui está surgindo mais. Tenho algumas prediletas: a Carmen Corrêa compõe muito bem e interpreta muito bem. Só acho que temos que ter esse cuidado. Temos espaço na música, então não precisa ter letras banais, dá pra dar um recado bacana. Já que está com o microfone na mão, aproveitar isso e deixar um legado.

Tati Portella_foto Filipe Conde

(foto Filipe Conde)

Que artistas você gosta de interpretar e que te influenciaram desde a infância?

Me lembro dos meus quatro anos de idade, no interiorzão, em Santo Ângelo, a minha mãe tinha um aparelho de vinil e só tinha os discos de MPB. Os vizinhos achavam até estranho eu, uma criança, cantando Olhos nos Olhos, na maior fossa de Chico Buarque. Isso fez parte da minha formação. Elis Regina, muito. Esses vinis estão em uma memória afetiva. Foram eles os maiores influenciadores, mesmo sendo do reggae, trago na bagagem essa coisa da interpretação da MPB mesmo. Flerto com isso em meu repertório, desde Ray Charles a Elis Regina.

O reggae vem desde sempre também ou é algo que aconteceu junto com a banda?

Eu não conhecia muito. Lá no interior não chegava muita coisa. Então passei a conhecer porque gosto de pesquisar música. Quando íamos para o Paraná, por exemplo, tentava ouvir as bandas locais, ver o que estava acontecendo no cenário. Sempre gostei de fazer essas pesquisas. Acabei tendo um acervo gigantesco em casa de discos de reggae. Mas, com certeza, comecei a pesquisar mais por estar em uma banda de reggae.

Faz seis anos já o último trabalho inédito da Chimarruts. Vocês estão trabalhando em um álbum novo?

Está saindo coisa nova. É muito engraçado isso, porque a banda sempre foi assim, de ficar seis, sete anos sem lançar nada. A gente foi demorando a entrar nesse lance de tecnologia, porque a gente era muito hippie, então ter celular para mandar as coisas? Imagina! Fazíamos as reuniões no parque e deu, aquela coisa bem riponga. E a gente viu que a nossa música começou a ir para outros lugares: São Paulo, Belém do Pará, daí vimos que pro reggae também tem essa galera pesquisadora. Claro que a internet facilitou. Mas nunca paramos de fazer show.

Agora a gente teve a necessidade de mostrar um disco diferente da Chimarruts, que vai completar em julho 16 nos. Então fizemos uma coisa bem calma, porque o Nê conseguiu montar seu estúdio, e a gente sempre vai pra lá, ensaiar, sem ter essa coisa de time is money. A gente pode ficar tranquilo lá, fazendo pré-produção. Brincamos que vai ser um disco com três tipos de linguagem. Chamamos o Duani, que fez todos os discos da Mariana Aydar, fez aquele Nivea Musical com o Criolo e a Ivete cantando Tim Maia, produziu o Marcelo D2. Então a gente achou que podia chamar alguém de fora para trazer uma coisa nova. Gravamos três músicas com ele aqui, flertando com batidas mais eletrônicas, bastante vozes, muita guitarra. Também fizemos três músicas com o James McWhinney, vocalista da Big Mountain. Ficamos sabendo que ele conhecia nosso som porque ele casou com uma brasileira, e quando vieram para o Brasil fizemos esse intercâmbio. Ele trouxe algumas canções, a gente fazia a parte em português e ele em inglês. Então tem três faixas com esse menino. E três que a gente mesmo produziu. São nove músicas com três direções diferentes, é a primeira vez que a Chimarruts vai fazer isso, e com essa coisa de que quase não existe mais o disco físico, achamos que ia ser legal a galera ver que tem essas três vertentes dentro da banda. Como somos muitos, e cada um traz suas influências, acho que isso tinha que estar bem claro ali. Estou feliz com o resultado, porque mostra um amadurecimento musical de todo mundo, e essa mudança, de ter vários estilos dentro de um disco.

O nome do disco vai ser A diferença que nos faz igual. Isso é em primeira mão! Não tínhamos ainda falado sobre esse disco. Acho que a gente vai lançar em junho. E como estamos fazendo sozinhos, vamos fazer aqueles financiamentos coletivos, pro nosso público mesmo, e não tem gravadora, então não tem aquela coisa de tempo, data e hora para entregar. Por isso também que passou seis anos e não lançamos nada [risos], porque ficamos tranquilos com essa coisa de não ter data. Vamos fazer alguns clipes também. Éramos muito bicho-do-mato, nunca tivemos muitos clipes. Agora que a gente viu essa necessidade, desse público que também quer ver a nossa cara. Os hippies do reggae estão indo bem devagar, mas pensando bem antes de lançar alguma coisa.

Por que o DVD que gravaram em 2007 foi em Curitiba? Teve algum motivo especial?

Teve. A gente fez tudo bem pensadinho. Isso acho bacana na Chima, fomos construindo devagarzinho. Começamos fazendo aqui, nosso interior, subimos para Santa Catarina, e fomos subindo aos poucos. E quando chegamos no Paraná, decidimos tocar nos bares perto das faculdades. Começamos a fazer uns bares bem pequenos lá, com nome tipo Churrasquito, sei lá, bem pequeno mesmo. Nós somos 11 músicos no palco, e às vezes ficava gente tocando ao lado do palco, porque não tinha espaço. Mas ali começamos a fazer esse trabalho de formiguinha, e começou a se expandir. Aí a gente descobriu que tinha muito público lá, mais que no RS. Então foi mais pelo público mesmo, tanto que quando anunciamos que o DVD seria gravado lá, na primeira semana se esgotaram os ingressos. A gente já tem um nome bem bairrista, então para não ficar tão bairrista, também pensamos nisso, de gravar no Paraná.  E claro, se exibir um pouco, mostrar que tínhamos público [risos].

Quando vocês começaram a aparecer mais para o Brasil todo, você ganhou um maior protagonismo à frente da banda. Isso foi natural ou planejado?

Na verdade isso aconteceu por causa do DVD de Curitiba. Eu tinha uma música só, que era a Versos Simples, que eu cantava de violão e voz, porque a gente não encontrou arranjo. Com o Nilo Romero produzindo, ele veio pra cá, e fez a pré-produção com a gente. Eu estava brincando, cantarolando no violão a música Aquarela, do Toquinho. E ele falou: “Pô, Tati, maneiro! Vamos colocar no DVD”, com aquele jeito carioca. Então no DVD já foi uma surpresa pra mim ganhar mais uma música. Quando as pessoas do resto do Brasil descobriram esse DVD, gostaram muito de Versos Simples, e absorveram mais essa música, não foi uma coisa pensada por nós. Aí começamos a fazer os shows fora e vimos que as pessoas cantavam mais Versos Simples, e Aquarela. Foi uma coisa natural pra mim como cantora. Eu adorava ficar no backing, as pessoas menosprezam, mas é mais difícil que voz principal. Tem que saber abrir voz, e terça, quinta, oitava… é bem bom ter tido essa escola. Então o público comprou primeiro, comecei a me sentir mais cantora, me apropriar desse público. As mulheres são o público que mais veste a camisa da banda, que vai pra frente do palco e é fã mesmo, e eu via que elas tinham essa empatia comigo e sentiam-se representadas. Aí o Sander começou a compor canções pensando em mim. Comecei a pedir para amigos meus compor. Do Lado de Cá foi uma amiga minha, Gisele De Santi, que compôs pra mim. Foi o primeiro reggae dela. Não foi uma coisa da banda pensar em investir na menina, porque deu certo e tál. Pelo contrário, foi mais pelo público mesmo. Fico feliz, tenho bastante espaço na banda. E a partir dali foi uma porta para eu mostrar que sei fazer outras coisas, recebi convites e fiz participações no trabalho de um monte de gente, de Nei Van Soria a Jeito Moleque. As pessoas já conhecem meu timbre de voz, já tem essa identidade de vocal. Acho isso primordial, até mais do que estar em super evidência, saber que o público vai escutar a primeira frase e saber que é tu.

Adicionar a favoritos link permanente.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *