Entrevista | Um breve papo com o dramaturgo Júlio Conte

julio conte

foto: Marcelo Liotti

[atualizado 25/07, às 8h54] 

Já são mais de 20 peças montadas desde o início dos anos 80 até aqui. Duas delas estão entre os maiores sucessos de público e crítica do teatro moderno gaúcho. Com Bailei Na Curva Se Meu Ponto G Falasse, o dramaturgo, diretor e psicanalista Júlio Conte superou as fronteiras gaudérias e lotou teatros nas principais capitais brasileiras. Já perdeu de vista quantas vezes essas duas peças já foram reencenadas nas últimas décadas.

No próximo dia 29 de julho, no Teatro Renascença, em Porto Alegre, ele estreia sua nova peça (mais informações aqui). O espetáculo Mecânica do Amor é uma comédia dramática estrelada pelos atores Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio, que interpretam quatro personagens. No texto, dois mecânicos de beira de estrada se encontram com um político investigado e seu lobista. O encontro serve de mote para abrir uma debate sobre o universo masculino. “Sinto que esta peça tem um texto primoroso. Alcancei muitas sínteses no processo de criação do texto. Na verdade, foram mais de dez anos de trabalho, escrevendo e rescrevendo, cortando e adicionando”, explicou.

Nesta semana, batemos um breve papo com Júlio Conte. O dramaturgo nos falou bastante sobre seu novo espetáculo e como os dois atores que dão vida ao seu texto foram importantes para que o roteiro finalmente saísse da gaveta, já que, originalmente foi escrito para o ator Zé Victor Castiel. E, claro, Conte também lembrou um pouco do sucesso que até hoje fazem Bailei Na Curva Se Meu Ponto G Falasse.

Culturíssima: Júlio, chama atenção o título da peça, Mecânica do Amor, o que, em princípio, sugere um romance. Mas a trama parece passar longe disso. O que o público pode esperar dessa montagem e como o título se relaciona com o espetáculo?

Júlio Conte: O título é primeira piada da peça. Sugere uma trama de amor e seus mecanismos, e o publico entra direto em uma mecânica, uma oficina, onde Jambola e Caneta estão tentando fazer funcionar um protótipo de carro montado a partir de recortes de outros carros. Bugatti, Ford, Porsche, Maverich, Fuca e Corcel. Com este início entramos no mundo isolado e árido do universo masculino. O carro é a alegoria do funcionamento mental do homem, movido a testosterona, representa o poder, a virilidade e o impulso dominador que leva pelo caminho vicinal da corrupção. A oficina rudimentar e pobre, se encontra numa beira de estrada, e Caneta e Jambolão são duas referencias ao Wladmir e Estragon de Esperando Godot [peça escrita pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett]. Apesar da aridez masculina os dois tem ares chaplinianos, estão à margem do social, da vida, e longe das cidades, e timidamente conectados com os sonhos. Estão esperando um possível cliente enquanto tentam fazer funcionar o protótipo e tem que lidar com suas fantasias e frustrações. Dois outros personagens vão aparecer na trama conferindo um tom de suspense policial, noir, e fazem conexão com os dois mecânicos. Ricky e Anselmo que são os representantes do outro mundo masculino do poder. Humor e tensão, comedia e drama sempre foram as marcas dos meus trabalhos. Bailei na Curva, Se Meu Ponto G Falasse, Rei da Escória transitavam no limite do entre o cômico e o dramático.

A peça, diz a sinopse, propõe uma discussão sobre os dilemas do universo masculino. Ela chega em um momento em que se discute muito o papel da mulher e toda a questão do empoderamento feminino. Como você acha que o seu texto conversa com esse momento de protagonismo das mulheres?

Em A Mecânica do Amor, a discussão do universo masculino transcende a questão da rivalidade entre gêneros, embora a mulher e a lógica feminina estejam em questão, penso que o conflito maior do masculino é entre a ética e seus princípios e lógica da testosterona. Hormônio que alimenta o guerreiro, o conquistador, o caçador entra em conflito com os mundo sensível do homem e constitui o impasse: como ser homem sem perder as características masculinas e sem perder aquilo que o diferencia. Penso ser essencial uma crítica à desigualdade social, financeira e comportamental, mas não contra a diferença. E este homem em confronto consigo mesmo que me interessa. Não basta fazer piada. Penso que o homem atual encontra-se num profundo conflito entre exercer o poder além dos limites, ou seja, navegando na corrupção e na ética. Corrupção não apenas a social. Aqui me refiro a um núcleo corrupto mais além da corrupção sistêmica que nos defrontamos todos os dias. Há um amalgama corrupto que acompanha o homem como uma sombra que subjaz a testosterona e o dinheiro. E esta combinação põe o homem atual em absoluto isolamento do social, preso num universo auto-erótico, impossibilitado de uma saída ética. Resta ao homem uma nova reflexão sobre si mesmo para ver se este “protótipo” finalmente funcione.

Você já viveu a experiência de montar espetáculos de grande sucesso, e alguns longevos, com diversas montagens nas últimas décadas. Quando uma peça está para estrear, você já sente que ela vai ter uma vida longa ou isso não tem como prever?

Sinto que esta peça tem um texto primoroso. Alcancei muitas sínteses no processo de criação do texto. Na verdade, foram mais de dez anos de trabalho, escrevendo e rescrevendo, cortando e adicionando. Este texto era para seguir a trilha do Se Meu Ponto G Falasse, mas ganhou o destino da gaveta. Ficou encubando todos estes anos, ameaçando se realizar, mas voltando atrás. Como um embrião congelado, o texto foi libidinizado desde novembro do ano passado, quando decidi montar graças ao encontro com dois dos maiores atores desta geração, Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio. Sem eles o embrião estaria ainda perdido num arquivo do computador. As contribuições deles foram incríveis. Os dois tem talento de sobra para entrar no time dos melhores atores do Brasil. Então tivemos um processo que deu muitos sinais de que tínhamos uma pérola viva e rara. Não esperava muito quando estreei Bailei na Curva, não sabia o que seria o Se Ponto G Falasse. Mas como Jambola e Caneta, fico na beira da estrada dos meus sonhos e, na minha esperança-equilibrista, espero que o trem do sucesso passe e me dê carona.

Algum acontecimento em especial, ou uma certa leitura do momento do país, te motivaram a tirar esse projeto da gaveta?

Eu queria fazer esta peça há muito tempo, foi escrita originalmente para o Zé Victor Castiel, mas ele foi convidado para sua primeira novela e perdemos o momento. Depois que eu fiz Beckett-Bion: Gêmeo Imaginário sofri um forte impacto da obra de Beckett. Esperando Godot foi o primeiro texto de teatro que li no inicio da minha vida cultural. Isso contribuiu para o clima, beira de estrada, dois personagens que recebem outros dois e a questão da incerteza. A política entrou porque sempre entrou nos meus trabalhos. Bailei na Curva é o mais obvio, pois se relaciona com os efeitos do Golpe de 64, mas Não Pensa Muito Que Dói denunciava a estrutura da universidade, Ponto G tinha a política do corpo e a força da mulher, Rei da Escória o sistema familiar e manicomial.

Elenco original de "Bailei na Curva""

Elenco original de “Bailei na Curva””

Você elogia o Fabrizio e o Lucas, com potencial para se destacarem nacionalmente. Com Bailei na Curva e Se meu Ponto G Falasse você superou as fronteiras do estado, e a gente sabe que, sobretudo se tratando de teatro, isso é muito difícil. Como foram as tuas experiências com essas peças em outras aldeias que não a gaúcha?

Bailei na Curva e Se Meu Ponto G Falasse fizeram história pois abriram espaços inéditos. A primeira montagem de Bailei, em 83, viajou por sete ou oito capitais. Neste inicio o trabalho de produção da Opus foi fundamental. A Opus queria se firmar e nós queríamos nos apresentar. Mas o texto tinha vida própria. Foi durante mais de vinte anos a peça mais encenada no Brasil quando estava vinculada com a SBAT [Sociedade Brasileira de Autores Teatrais]. Depois perdi o controle. Foi encenada em todos os estados do Brasil, sendo que no RJ e SP, várias vezes. Hoje basta dar um Google e vemos dezenas de montagens. Ponto G ficou em cartaz dois anos ininterruptos no Rio de Janeiro e um ano em SP. A temporada carioca atrasou a venda do Teatro Ipanema (Rubens Correa), fato que veio a ocorrer depois. Sempre partilhei da ideia que o teatro é um evento local e universal. Fala com a aldeia e com o mundo. Fui atrás disso. Acho que Gorziza e Lucas estão neste caminho. Atores jovens e experientes, fazem TV, escrevem, dirigem.

Com tudo que avançamos em termos de globalização e encurtamento de distâncias, me parece que essa possibilidade de uma peça montada aqui ganhar o Brasil tem diminuído. Como você vê isso?

Não tenho certeza que a globalização tenha aumentado as chances de intercâmbio teatral. Teatro sempre foi uma arte nômade. Saltimbancos e mambembes cruzaram o mundo muito antes da internet e do Steve Jobs. A globalização foi antecipada pelo teatro quando os romanos começaram a copiar e reescrever os textos gregos e o helenismo se disseminou no Mediterrâneo. O que a rede facilitou foi encontrar textos de autores e monta-los, quanto colar e copiar peças dos outros. Isso eu não critico pois todo artista é um Prometeu que rouba o fogo dos Deuses para entregar aos homens. E por isso tem que pagar com sua vida.

Ao longo desses anos, quando volta a dirigir o Bailei e Ponto G, você costuma mexer no texto com o intuito de atualizar alguma coisa?

Sempre, o texto teatral é uma massa viva. Não para de se mover e se reinventar. Os atores com que trabalho muitas vezes reclamam de mim, que eu chego no camarim antes dos espetáculos mudando uma fala, uma movimentação ou intenção. Penso o teatro como uma matéria em evolução. No tempo da escola de teatro eu me surpreendi quando uma professora disse que Shakespeare terminava seus textos na sala de ensaio. A comunicação envolve a mensagem tanto como objeto estético como processo recepção. Teatro é aquilo que acontece entre o palco e a platéia, não no palco, nem na platéia, mas entre, no vinculo, no clima emocional despertado pelo espetáculo.

Após as eleições de 2014 no Brasil, a gente acompanha uma dicotomia muito grande no debate político, com dois lados engajados e, muitas vezes, transferindo sua posição política para o gosto cultural. Você consegue imaginar que tipo de reação o público de hoje poderia ter se tivéssemos um Bailei na Curva em seu auge de repercussão como nos anos 80?

Nos anos 80 eu tive uma peça infantil totalmente proibida pela censura: O Reino do Sol. Fizemos apresentações clandestina nos colégios. E a peça Não Pensa Muito Que Dói foi apresentada sem passar pela avaliação dos censores. Fui chamado e tive que prestar esclarecimentos no serviço de censura. Bailei na Curva ainda passou por este processo. Felizmente avançamos sobre este assunto. As pessoas podem apresentar suas ideias e quem não gosta pode manifestar-se. Sou contra o empastelamento de uma obra de arte por divergência estética ou política. O principio mais importante, maior legado da Revolução Francesa veio de Voltaire: “Não concordo com nenhuma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte teu direito de dizê-las”. Trata-se do princípio da tolerância. E o limite da tolerância seria o ataque contra humanidade. Não acho que a sociedade ficou careta. Ficou pior, ficou intolerante.

Como e quando a veia artística e a vocação pra área da medicina se cruzam na tua vida? O que vem primeiro e o que pesa mais na balança hoje em dia?

Tenho uma herança familiar. Meu pai fazia teatro em Forqueta, antigamente município de Caxias do Sul, hoje um bairro. Foi nestes espetáculos encenados no salão paroquial que meu pai casou com minha mãe. Era teatro amador, não foi a profissão dele. Mas eu passei toda a infância escutando as histórias daquele grupo inaugural. Depois quando estava na faculdade de medicina e resolvemos fazer um grupo de teatro. Durante a primeira greve da Medicina nos anos 70, fiz a primeira apresentação recitando uma poesia de minha autoria. Foi o inicio. Depois o teatro e a psicanálise fizeram o resto.

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Um Comentário

  1. ótima dica, obrigado por compartilhar!
    ganhou um visitante rs 😀

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