Gilmar Fraga fala sobre ‘Carnet Pornographico’ e outras coisas

Cartunista Gilmar Fraga, por Júlio Cordeiro

Foto: Julio Cordeiro

Luiz Paulo Teló;

O ilustrador, artista plástico e caricaturista Gilmar Fraga acaba de lançar seu primeiro livro autoral: Carnet Pornographico, pela Bebel Books. O nome diz tudo, sobre o formato e sobre o conteúdo. A obra, com desenhos não só picantes, mas também explícitos, é grande parte inspirada nos carnês eróticos produzidos em um tempo que nem a fotografia havia sido inventada.

Fraga está prestes a completar 20 anos de Zero Hora. No jornal, é um dos responsáveis pela criação de capas para cadernos, projetos gráficos, logomarcas, ilustrações, charges e caricaturas.

Premiado em salões de humor nacionais e internacionais, apaixonado por HQs, com diversos trabalhos de ilustração para livros, capas de discos e campanhas publicitárias, Fraga conversou conosco esta semana. Em seu estúdio, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, falou sobre o Carnet Pornographico e também sobre outras questões envolvendo sua trajetória.

Culturíssima: Carnet Pornographico é o seu primeiro livro autoral. Por que esse trabalho só depois de tantos anos de carreira e por quê essa temática?

Gilmar Fraga: Era um daqueles trabalhos que estava fadado a ir pra gaveta. Há um ano e meio me ligou um editor, de uma grande editora do centro do país, disse que a editora estava criando um selo erótico e queria publicar material pornográfico. Ele pediu para eu pensar uma tira. Eles queriam publicar um grupo de tiras, com vários autores, ou um álbum solo. Eu tinha 20 tiras prontas lá pelo meio de 2014, e o cara me liga e diz “olha, os ventos editoriais mudaram, a editora resolveu não investir nesse selo, então vamos cancelar o projeto”. Como eu não tinha contrato com a editora – tinha para outras coisas, mas não especificamente para isso -, era uma coisa que estava curtindo fazer, desenhar pornografia e temas eróticos, porque sempre me interessou a obra do Zéfiro. Então resolvi tocar o projeto adiante. Na Europa se consome muito pornografia em quadrinho. Aqui no Brasil parece que a coisa não deslancha, não se tem uma cultura pra isso.

O meu interesse pela pornografia é o interesse de todo mundo, de saber, de visualizar. Tem a questão do erotismo, da excitação, tem uma questão de gostar de desenhar isso. Sempre gostei muito mais de desenhar figura humana do que paisagem. Então é um conjunto de coisas que acabou confluindo para esse processo. O Carnet é a primeira coisa autoral que publico. Já ilustrei mais de 30 livros, mas é a primeira vez que faço isso sozinho. Fiz os textos e os desenhos. Encontrei a editora Bebel Book, que é super corajosa, que já tinha uma publicação que era um sucesso, o Suruba para Colorir. Então sai de férias no início do ano e mandei para uma série de pessoas as tiras que eu tinha prontas, para ver se algum editor se interessava. Tomei um monte de não, e a Bebel não respondeu. Em julho eles mandaram um email dizendo “vamos fazer o Carnet Pornographico”. Aí a gente fez em uma semana, em um processo muito bacana, tudo online. Eles lá em São Paulo e eu aqui.Sempre achei que o formato de publicação deveria ser um carnê mesmo, mais horizontalizado, no formato da tira. A princípio ela queria fazer duas tiras por página, mas eu achei que isso deixaria o formato mais quadrado. Tem todo um histórico da minha pesquisa anterior ao material, que é dos Clubes de Gravura, de caras que colecionavam gravuras eróticas na França, Inglaterra, na Espanha. A gente está falando de uma época que é anterior a fotografia, então tinha muita coisa de desenho. O cara chegava lá, nesses clubes, e dizia: “Vim comprar uma litografia”. Aí o dono do estabelecimentos mostrava, e ele: “Não, quero daquelas outras”. Então ele levava o sujeito para um lugar mais reservado e mostrava uma série de pastas, que eles chamavam de carnês, com obras eróticas. Tinha pinturas, gravuras, poemas, textos do Marquês de Sade ilustrados, tudo com um teor de profundo erotismo e bastante pornográfico. A minha pesquisa foi uma junção disso, eu queria emular essas brincadeiras do Carlos Zéfiro, que tem um texto absolutamente ingênuo, e aí fui juntando tudo, os clubes de pornografia, me lembrei da minha época de adolescente, que tu ficava vendo uma pornochanchada na tv e esperava meia hora para ver um peitinho. Sob o ponto de vista do humor, o negócio foi muito pescado também de brincadeiras de colegas, muita coisa de mulheres que falavam de outras mulheres. Coisas que eu ia anotando e depois transformei no texto final.

Carnet Pornographico por Fraga - capa

Carnet Pornographico por Fraga

Culturíssima: Hoje é absurdamente fácil acessar material erótico e pornográfico. Como era isso durante a tua adolescência, até em relação a quadrinhos?

Fraga: Naquela fase em que tu é adolescente, que os hormônios estão saindo pelas orelhas, era difícil. As coisas que tinham era vídeo pornô, nas locadoras, e as revistas. Claro, aí tem também aquela coisa da pornografia elitizada. Me lembro muito de um cara que eu gostava demais, que é o Robert  Mapplethorpe, um fotógrafo que foi além da história da fotografia erótica, ele fazia coisas bárbaras. Ele era homossexual, morreu de AIDS, foi casado com a  Patti Smith, e eu seguia muito o que esse cara fazia. Era além do erótico, muitas vezes negociava com o grotesco, tinha uma coisa que era muito baixo pra época. Então, tu via essas coisas na arte em alguns pontos, tinha alguns fotógrafos que lidavam com a pornografia e o erotismo de uma forma que eu achava interessante. Essas eram as maneiras que se buscava essas coisas.

Culturíssima: Você pretende lançar mais trabalhos dentro dessa temática?

Fraga: Nós temos uns projetos aí que, se tudo der certo, vamos fazer. Um dos projetos acho interessantíssimo, que é sobre sexo na terceira idade. É uma coisa que ninguém fala, como se velho não trepasse. Um amigo roteirista já me mandou alguns pré-roteiros, algumas ideias organizadas. Tem também uma ideia de trabalhar com a Dommenique Luxor, que é uma dominadrix aqui de Porto Alegre, tem um programa na rádio Mínima, e por ser historiadora tem um viés muito interessante da coisa do erotismo e da putaria em si. Ela tem uma coisa de resgate histórico que acho bacana, e se posiciona muito bem com isso. Estamos pensando em fazer alguma coisa juntos. Ela tem um personagem que é muito maluco. Eu fui no programa dela e achei muito interessante, ela chama prostitutas e esse pessoal que luta pela profissão, pra ter reconhecimento social. Então, esses projetos estão vindo. Paralelo a isso, vou começar agora um trabalho que é meu primeiro para uma editora fora do Brasil, que ainda está em fase de conclusão dos roteiros, mas já está com os contratos assinados.

Culturíssima: Mesmo após tantos avanços e conquistas no campo dos direitos individuais,  fica a impressão que a sociedade ficou mais careta nos últimos anos. Você sente isso?

Fraga: Acho que a gente vive um fenômeno estranho. Temos a cultura pensante de uma geração que nasceu no tempo de bonança. Uma geração que não enfrentou e não sabia o que era inflação. Eu vi meu pai e minha mãe chorando quando o Collor capturou a poupança. Imagina, todo o dinheiro que tu guardou a vida inteira, está bloqueado e tu não sabe o que vai acontecer. Eu vi meus pais, pequenos comerciantes, sofrendo com isso. Os jovens jornalistas que chegam ao jornal hoje em dia, têm um apego, ou uma visão, mais à direita do que à esquerda. Minha geração se acostumou a ter esse apego, por querer mudanças sociais. Essa guinada à direita é de uma gente que não faz a menor ideia do que é viver em uma época de ditadura, por exemplo. Eu peguei o final da ditadura, e quando comecei a trabalhar, já em um jornal maior, foi em pleno impeachment do Collor, então a gente viveu aquela tensão de estar saindo da ditadura, indo para um governo democrático e ver tanta sacanagem, tanta corrupção, meio como hoje. Só que hoje tem um panorama diferente, que não tem lado, naquela época tinha um lado bem específico.

Culturissima: Passado alguns meses do atentado ao Charlie Hebdo, que reflexão se pode fazer daquele episódio?

Fraga: Foi um modismo. Acima de tudo, foi um modismo. Muitos desenhistas que estavam na minha timeline, comovidíssimos com Charlie Hebdo na época, muita gente que, acho, não conhecia tanto o humor do Charlie, mas entrou na onda. Passou o modismo, os caras descolaram da história do Charlie Hebdo e depois vi até alguns cartuns contra, dizendo “Eu não sou Charlie Hebdo”. Surge uma onda, neguinho vai lá e cola em cima, pra tentar surfar junto, ganhar likes, e aí aquela coisa de rede social. O sujeito quer é ser compartilhado. Esses dias, em uma conversa de bar, o cara disse: “Ah, esses caras do Charlie Hebdo, não é bem assim…”. Como não é bem assim, cara? Entraram lá, perfilaram as pessoas, mataram as pessoas, mataram um cartunista que era genial. Nada justifica tu matar as pessoas por causa das ideias, por causa de desenhos. Fiquei muito chateado com isso. Achei que aconteceu isso agora também com o menino turco que foi recolhido no mar. Teve muita gente fazendo desenhos “felizes”, retratando a criança morta, criando uma outra realidade, que é uma negação do que aconteceu. E isso pra ser compartilhado, para aparecer no twitter, para ser bombado. Ninguém fez isso para o indiozinho que acabou de morrer no ataque de fazendeiros lá na Amazônia. A gente elege, muitas vezes, uma coisa que está distante, que é mais fácil de moldar o teu pensamento. Eu teria dificuldade enorme para fazer um cartum sobre isso, tanto que não fiz e me pronunciei para algumas pessoas, dizendo que isso era só para promover o ilustrador e não a causa. Não vai mudar a vida do menino turco, que se foi, se perdeu. É a ferramenta do desenho usada de uma forma que eu não acho muito ético. É mais para se autopromover do que para se engajar em uma causa.

Culturíssima: Pensando em uma realidade mais brasileira, ainda parece muito distante esse tipo de atentado por aqui. Você já recebeu alguma ameaça ou crítica mais pesada em relação ao teu trabalho?

Fraga:  Sei que uma vez eu desagradei o governador Antônio Britto [risos]. Um assessor comprou uma caricatura dele para presenteá-lo, e o Britto detestava a caricatura. Ele não é, estéticamente, um cara agradável de se olhar. Sempre achei que ele tinha uma cara meio de esquilo do Zaffari do mau. Aí o assessor me ligou, dizendo que o governador estava de aniversário, e queria comprar a caricatura. Eu sei que ele deu o desenho e o Britto não gostou. Ele olhou, abriu a gaveta, botou o desenho e fechou. Agora, crítica ou ameaça, nunca recebi. O que aconteceu foi de um cara uma vez, que não entendeu uma charge de futebol, conseguiu o meu e-mail e me chamou de um monte de coisa. Mas isso a gente releva, é da profissão.

Culturíssima: Pois é, você não fazia charge na ZH. Como surgiu essa oportunidade?

Fraga: Já tinha feito algumas charges antes, mas não como um espaço fixo. Ai surgiu uma ideia no jornal, que estava com falta de charges sobre futebol. Criamos então Os Flautistas, comigo e mais três colegas de jornal. Acabou que, com a rotina do jornal, e a intensidade com que se trabalha, as pessoas foram se desengajando, porque tinham outros projetos pra tocar, outras coisas pra puxar. Era impossível organizar o tempo para fazer uma charge diária. As pessoas olham um desenho e acham que não demora tempo para fazer. Tem um tempo, tu tem que ter a ideia e depois juntar a ideia com uma metáfora visual. Muitas vezes, para juntar essas duas coisas, é preciso três horas. Me convidaram também para fazer charge de humor sobre economia, no antigo caderno Dinheiro. Fiz por seis ou sete meses, aí no final do ano ganhei um prêmio ARI com uma charge, que era sobre o leilão do pré-sal nas praias do Rio de Janeiro, no qual eu fiz um tracadalho infame. Logo depois o jornal mudou o projeto gráfico, e resolveram acabar com a charge, então fiquei sem charge de novo. Mas há três semanas, a colunista Marta Sfredo me convidou para fazer uma semanal, sobre economia. Acho um assunto bacana, porque a economia capilariza várias coisas.

Caricatura de Eduardo Cunha, publicado no Jornal Zero Hora.

Caricatura de Eduardo Cunha, publicado no Jornal Zero Hora.

Culturíssima: Você é um apaixonado por HQs. O que você lia quando era mais jovem e o que lê atualmente?

Fraga: Comecei como todo mundo, com Marvel e DC, Batman, Homem-Aranha e essas coisas todas. Mas aí chegou um ponto que comecei a me interessar por um quadrinho mais psicológico, com histórias mais complexas, como os quadrinhos europeus. Eles estão muito mais próximos da arte dos que esses de super-herois, que são mais para diversão. Comecei a me interessar também pelos argentinos, que são excelentes produtores de quadrinhos, excelentes desenhistas. Sempre me interessei mais por desenhistas do que pelas histórias em si, tipo os europeus como Moebius, Guido Crepax, aí tem o Max, que é um espanhol excelente, que fez o Peter Pank, que é um personagem maravilhoso. Paralelo a isso tu vai abrindo teu leque, vai conhecendo desenhistas americanos do underground, que são os caras não fazem esse quadrinho massivo, mas têm seu espaço. A Revista Fierro foi muito importante pra mim nos anos 80, aí comecei a ter uma noção de que tipo de desenho eu acho interessante, que é um desenho mais trabalhado, e não esse de herói de cueca em cima da calça. Esse é o tipo de quadrinho que me atrai, até hoje, mas claro, tento ler de tudo. Até hoje com a questão de ter online, leio várias coisas. Tenho lido também mangá, que era uma coisa que não me atraia, achava uma linguagem meio ingênua. Tinha muito preconceito. Aí vem o  Katsuhiro Otomo e faz Akira e, putz, tem uma coisa ali! De novo, é mais o autor do que o gênero em si. Sempre fui assim, mais voltado para autores do que para títulos. Eu era fã do Canini, foi um grande cara daqui, que mudou o Zé Carioca, tem toda uma história e foi uma pessoa muito amável quando eu fui procurá-lo. O Laerte é um cara que eu sempre respeitei, acho que é o grande cara do desenho de imprensa, de tira. Tem o Angeli, que hoje é um cara mais soturno que o Laerte, que é um cara mais solar, até pela opção que ele tomou na vida. O Angeli faz uma charge mais pesada, que eu acho bacana. São chargistas, ou tiristas, que mesclam as linguagens. Gosto muito também dessa geração nova, tipo o Rafael Albuquerque, Santolouco, João Azeitona, que são caras que estão conseguindo fazer coisas bacanas. O mercado está bacana, tem espaço para todo mundo. Tem as meninas também, que desenham muito bem, como a Ana Luiza Kohler, que é uma baita desenhista.

Culturíssima: Além de desenhar, você faz pinturas também. Que tipo de material tu prefere usar?

Fraga: Sempre fui um cara multiplataforma. Minha geração pegou uma coisa assim: era o início dos caras que começaram a trabalhar com computador, e teve gente que se descambou pra isso e só trabalha com computador, bons desenhistas que se perderam porque tinham um traço maravilhoso na mão e homogeneizaram isso no digital. É uma das coisas que eu sempre tento não fazer, que é homogeneizar o traço. Sempre tive essa coisa do orgânico, gostar de desenhar na mão, de produzir, de pintar. Ganhei alguns prêmios de artes plásticas também. Tenho uma carreira paralela de artista plástico que, ela não é o principal, mas é um plano de vida, porque daqui a pouco quando me aposentar, parar de desenhar, eu vou pintar. Gosto de usar várias coisas. Desenho basicamente no computador, mas sempre desenho na mão quando possível. O esboço é muito mais forte que a arte final, o maior sofrimento é esse: “putz, mas esse esboço ficou tão legal”. Aí tu faz a arte final cuidando para não ser burocrático.

Culturíssima: Qual o caminho mais racional para quem quer seguir a carreira como desenhista? Há um mercado possível?

Fraga: Tem um mercado sim, um mercado para criação. A gente está vendo fluorescer coisas que tinham que existir há muito tempo, que é uma espécie de serviço pré-pago de quadrinhos online, como um Netflix de quadrinho. É uma coisa que movimento o mercado. Para quem está começado, hoje tem oficinas de ilustradores, de desenhistas. Em Porto Alegre tem a Galeria Hipotética, que é um espaço voltado para as artes plásticas e ilustração, e páginas de quadrinhos e tál. Acho maravilhoso que tenha isso em Porto Alegre, uma galeria onde tu vai vender um original de quadrinho. Mas o meu conselho para quem estiver começando é: faça cursos, desenhe, desenhe e desenhe.

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