Júlio Mariani não é apenas um jornalista

Julio Mariani_entrevista

Luiz Paulo Teló

Aos 74 anos de idade é natural que não tenhamos mais nada a provar para o mundo ou para quem quer que seja. Mas, muitas vezes, precisamos provar a nós mesmos que somos muito mais do que aquela profissão que exercemos durante uma vida. Talvez este seja o caso de Júlio Mariani, há quase duas décadas aposentado do jornalismo, mas de incontáveis anos dedicado ao desenho. Habilidade que só agora vem à tona.

Mariani foi repórter,  fotógrafo,  diagramador,   editor, articulista. Em sua longa carreira, passou por Zero Hora, Correio do Povo,  Folha da Tarde,  Folha da  Manhã,  Jornal do Brasil, Editora Abril, rádios Difusora e Farroupilha, TVs Piratini e Gaúcha. Como artista, não chegou a completar o curso de Artes Plásticas da UFRGS, mas tem longa trajetória no Atelier Livre de Porto Alegre e também pela Arena, fazendo parte do grupo  de  orientação  à  prática  artística da Ana  Flávia  Baldisserotto.

E foi justamente a Ana  Flávia  Baldisserotto, mais o professor da UFRGS Eduardo Veras (e também ex-colega de ZH), que o convenceram que estava na hora de mostrar seus desenhos. Os trabalhos de Mariani estão expostos no Museu do Trabalho, em Porto Alegre, até o dia 21 de junho. A visitação de terças a sábados pode ser feita das 13h30 às 18h30 e, nos domingos e feriados, das 14h às 18h30. A entrada é gratuita. A experiência é valorosa.

Culturíssima: Tu imaginou que teria essa experiência de uma exposição solo aos 74 anos? Como tem sido?

Júlio Mariani: Olha, por incrível que pareça as pessoas têm gostado bastante do trabalho, até mais do que eu esperava [risos]. Mas não tinha pensado nisso exatamente. Venho fazendo isso porque gosto muito de arte, aproveito aquele tempo livre da aposentadoria pra fazer isso. Então, de repente, surgiu a chance. Lá pelas tantas comecei a frequentar o curso da Ana Flávia Baldisserotto, em que a gente se reúne nos finais de semana, conversa e mostra o que está fazendo. E aquilo que a gente está fazendo é discutido por todos e avaliado. Lá pelas tantas a Ana Flávia achou que estava na hora de mostrar isso. Eu já tinha mostrado meu trabalho pro Eduardo Veras, lá na redação da Zero Hora. Não sei, uma vez me deu um ataque, peguei uns desenhos e fui na redação e mostrei pra todo mundo que eu ainda conhecia, porque desde quando me aposentei a redação mudou muito. O Veras foi um dos que viu, e gostou muito. Então o entendimento dele com a Ana Flávia permitiu que essa exposição aconteça.

Culturíssima: Geralmente o jornalista ingressa mais na produção literária. O que te fez ir para o desenho?

Mariani: Isso é uma coisa que vem desde a juventude. Gosto muito de literatura, leio bastante, mas na verdade, essa parte visual sempre foi mais forte, embora eu tenha trabalhado com texto por tanto tempo. Ainda sou da geração do gibi, as histórias em quadrinhos me marcaram muito. A questão de se expressar através da imagem.

Culturíssima: Nesse sentido, o que tu consumia quando mais jovem?

Mariani: Consumia tudo que era possível. Pato Donald, Mickey, aquele porquinho gaguinho… Consumia os super-heróis também, como o Capitão América, os cowboys, Fantasma, Mandrake. Na época, anos 40 e 50, ainda tinha o sabor da coisa iniciante. Os quadrinhos depois ficaram muito sofisticados, adquiriram uma super expressão gráfica. Tu vê uma história mais recente do Batman, por exemplo, e é uma coisa de louco o que tem. Antes era uma coisa muito simples, que eu gostava muito, e aquilo me marcou realmente, tanto que nos meus desenhos, de vez em quando, sempre está presente uma figura que lembra o Mikey.

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Culturíssima: Por algum tempo escreveu crítica de cinema. Acompanha, de alguma forma, essa onda de filmes de super-heróis no cinema?

Mariani: De forma geral, eu não gosto do super-herói no cinema. Essa onda de filmes é baseada em efeitos especiais. É claro que tem alguns muito bons, mas em princípio eles me parecem todos a mesma coisa. São filmes pensados a partir dos efeitos especiais e, realmente, os caras fazem qualquer coisa, criam a ilusão que quiserem. Sou mais do cinema do tempo antigo, ou algo mais simples, baseado no cotidiano.

Culturíssima: O que te motiva a desenhar? Quais tuas inspirações?

Mariani: Não penso muito na arte como um todo. Posso te dizer que tenho uma boa vivência de arte, no sentido em que viajei com uma frequência razoável para o exterior. Sempre indo a museus, sempre vendo coisas, estudando isso. E a arte contemporânea, no sentido bom da expressão, se tornou um “deus nos acuda”, vale tudo. Lá pelas tantas eu cheguei à conclusão que não tinha condições de acompanhar isso tudo, até por causa da minha idade. Há renovações que a gente faz na juventude, há revoluções que a gente faz na juventude. Ou faz na juventude ou não faz mais. Então me acomodei no desenho, no lápis, na tinta sobre o papel, e ali eu me expresso sem pensar muito no conjunto, que é uma coisa que está fora do meu alcance. É uma limitação voluntária.

Culturíssima: Que tipos de técnicas tu mais gosta de trabalhar?

Mariani: Gosto muito dos lápis de cor, eles estão muito bem feitos tecnicamente. Os lápis feitos na Europa e nos Estados Unidos são muito bons, tanto o aquarelado quanto o comum. Uso aquarela e os vários tipos de nanquim. E o acrílico, que é uma tinta muito maleável.

Culturíssima: Que comparação, em termos de artes, tu pode fazer com Porto Alegre e outras cidades do mundo que já esteve?

Mariani: Te diria que porto Alegre já tem muita coisa que se encontra em outras cidades, como em Paris ou em Nova York. Na verdade, a arte se globalizou. Tem coisas que tem uma cara de primeiro mundo, por exemplo o Damien Hirst, que colocou um tubarão dentro de um aquário, na Inglaterra. Aquilo é uma coisa que dificilmente vai acontecer no terceiro mundo. Não sei explicar o porquê, mas é difícil imaginar que alguém aqui vá colocar um tubarão em um aquário. Cito este exemplo porque o tubarão em um aquário é uma das obras de arte contemporânea das quais eu medito. Fico pensando: mas poxa vida, o que quer dizer isso? No entanto, já li de grandes autores que consideram aquilo arte e têm uma argumentação em favor desse tipo de coisa. Então, não tenho mais condição de discutir isso. É arte? É arte, então procuro entender o que tem ali.

Culturíssima: O teu processo criativo acontece todos os dias?

Mariani: Procuro desenhar todos os dias. Claro que nem sempre dá, porque mesmo aposentado tem sempre um milhão de coisinhas pra fazer. Mas nesses últimos anos desenhei muito, muito mesmo. A Ana Flávia e o Veras pegaram aquele monte de coisa, escolheram um determinado número e depois montamos ali no Museu do Trabalho. Não sei te dizer nem quantos tem, porque a seleção final foi feita por eles. Ficou muita coisa de fora. Depois que me aposentei eu produzi muito, era como se eu tivesse cheio e precisasse explodir.

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Culturíssima: Como tu ingressou no jornalismo?

Mariani: Tive uma juventude meio intelectual, então a partir daí acabei chegando no jornalismo. Não era raro que muita gente que gostava da literatura, gostava das artes e tinha uma vivência política, acabasse indo para o jornalismo.

Culturíssima: Conheço alguns jornalistas mais experientes que já se encheram um pouco da profissão. Como é tua relação com o jornalismo hoje?

Mariani: Me afastei um pouco, mas de certa forma continuo fiel ao jornalismo. Sou um leitor da Folha de São Paulo. Acho que a Folha, por estas circunstâncias todas, acabou se tornando o melhor jornal brasileiro, pelo fato de ser de São Paulo, ter mais recurso, ser bem administrada.

Culturíssima: Que pessoas te marcaram na vida profissional?

Mariani: Trabalhei com o Marcos Faerman, que depois foi para São Paulo, onde se destacou no Jornal da Tarde, do Estadão, e em outros veículos. O Marcão, já falecido, era um cara superativo e supercriativo, que me ajudou bastante no meu início de carreira, ainda na Zero Hora da 7 de Setembro. Ali também encontrei o Marco Aurélio Garcia, depois assessor do Lula e hoje da Dilma. Também trabalhei com o Luiz Carlos Merten, hoje crítico de cinema do Estadão. Santo Deus, estou virando um pedaço de História do jornalismo gaúcho ambulante! A Eunice Jacques e o Joseph Zukauskas, com quem trabalhei na sucursal do Jornal do Brasil. Com a Eunice também na Zero Hora e com o Zukauskas também na Folha da Tarde. Um colega que me ajudou bastante e sempre foi amigo, o diagramador Aníbal Bendatti, já falecido. Também me lembro com saudade do Jorge Ivan, ilustrador da ZH. [Após refrescar a memória, por e-mail, mandou a seguinte lista] Fui me lembrando aos poucos, sobretudo dos mais conhecidos (alguns já estão mortos): Lucídio Castelo Branco, Antônio Gonzalez, Valter Galvani, Eduardo “Peninha” Bueno, José Onofre, Ricardo “Kadão” Chaves, Eliane Brum, Assis Hoffmann, Paulo Totti, Roberto Manera, Luiz Fernando Verissimo, Santiago, Edgar Vasquez, José Antônio Severo, Carlos Alberto Carvalho, Juremir Machado da Silva, Ayrton Fagundes, Lauro Hagemann, Mario Quintana, Juarez Fonseca, Lemir Martins, Vitor Necchi, Enio Mello, Lauro Schirmer, Xico Reis, Carlos Fehlberg, Nilson Souza, Liberato Vieira da Cunha, Ruy Carlos Ostermann, Célia Ribeiro, João Souza, Carlos Bastos, Celestino Valenzuela, José Antônio Pinheiro Machado, Ivan Pinheiro Machado, Elmar Bones.

Culturíssima: O que tu gosta de ler?

Mariani: De um tempo pra cá eu não frequento a literatura. É basicamente livro de arte e coisas próximas. Como design, arquitetura, simbologia, estruturas, fotografia, imagens de plantas e animais, marcenaria, dobraduras, artesanato em geral, scripts, ilustração “y otras cositas más”. São livros que compro pela Amazon ou de outros lugares, porque os europeus e americanos têm uma riqueza informativa muito grande. Então é onde encontro os livros para me informar e orientar.

Culturíssima: E tu já experimentou essas outras técnicas?

Mariani: Já fiz algumas coisas, mas nunca mostrei. Para trabalhar com outras técnicas é preciso ter instrumentos adequados e um lugar adequado. Se não, é difícil. As três dimensões de campo me interessam. Uma vez fiz um curso de cerâmica no Atelier Livre, mas conseguir montar o esquema para produzir em três dimensões é complicado.

Culturíssima: Tu é de Porto Alegre, sempre morou aqui no centro. O que acha da cidade hoje em dia?

Mariani: A cidade está muito diferente daquela que conhecia na infância e na juventude. É uma cidade muito agressiva, a convivência urbana está muito agressiva. Essa coisa me assusta. Não só em Porto Alegre, mas nas outras cidades também, tem jovem morrendo demais. Os caras estão morrendo. Sempre de forma violenta. O jovem se expõem muito ao risco.

Culturíssima: Esse tipo de angustia aparece no teu desenho?

Mariani: Sim, aparece. Na verdade o meu desenho tem um pouco de agressividade. É uma resposta agressiva à agressividade do ambiente. Acho que o Brasil não era assim, tão agressivo, tão violento. Quando isso vai acabar eu não sei.

Foto: Reprodução Facebook / Mônica Mariani

Foto: Reprodução Facebook / Mônica Mariani

Culturíssima: Quais tuas vontades para depois da exposição?

Mariani: Continuo desenhando. Quero chegar a uma expressão mais contemporânea. Um tipo de desenho que expresse melhor a cabeça de hoje, inclusive considerando os avanços científicos. Eu queria refletir uma coisa mais global, contemporânea não no sentido da arte, mas  da ciência mesmo. Tenho pensado em muitas coisas a partir do Big Bang. Não sei se é coisa de velho, mas o acaso, ou aquilo que a gente chama de acaso, tem uma importância bem maior na história da humanidade do que a gente pensa. Queria que isto estivesse no meu desenho. Não sei se está, de repente até está, mas eu queria algo mais específico.

Culturíssima: Como tu gosta que as pessoas vejam o teu trabalho?

Mariani: Eu não penso muito nisso. Hoje o que eu faço, faço mais para mostrar para mim mesmo do que para os outros. Procuro entender a mim mesmo. Mas, é lógico que, quando os outros gostam, fico muito contente, mas isso não é essencial. Quem frequenta a história da arte sabe que muita coisa que não foi gostada, depois acaba se tornando o que é realmente importante. A vaidade de ser admirado não está presente em mim.

Culturíssima: Quando olha para o teu próprio trabalho, que tipo de avaliação faz?

Mariani: Estou sempre reavaliando aquilo que eu faço. Muitas vezes eu olho e digo: que merda. E até boto fora. E tem coisa que eu fiz, que não gostei tanto, aí deixo de lado e depois vejo de novo e começo a gostar. A prendi a não ser muito rápido na apreciação do que eu faço.

Culturíssima: Na ocasião do convite pra fazer a exposição, chegou a pensar em não fazer?

Mariani: A Ana Flávia me convenceu. E realmente acho que eu precisava mostrar. Eu sempre me coloquei como jornalista, mas não sou só isso. Agora chegou o momento de mostrar esse outro lado, venha o que vier em cima disso. O Veras entrou na jogada também, então cheguei à conclusão que era a hora de mostrar.

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