Juremir Machado e o mito Farroupilha

juremir machado -- revolução farroupilha

Luiz Paulo Teló

Foi o 20 de setembro o precursor da liberdade, diz o hino do Rio Grande do Sul, cantado sempre a plenos pulmões pelos gaúchos, sobretudo em época de Semana Farroupilha, quando se aproxima o feriado estadual. Porém, para Juemir Machado da Silva, que em 2010 lançou o livro A História Regional da Infâmia, o mito em torno da guerra civil separatista é muito mais glorioso que a verdade revelada pelos documentos.

Juremir Machado é professor, jornalista, historiador e doutor em sociologia pela Université Paris 5 René Descartes. Colunista do Jornal Correio do Povo e apresentador da Rádio Gauíba, além do estudo sobre a história da Revolução Farroupilha, Juremir possui uma lista extensa de livros-reportagem e romances de não ficção lançados.

Nesta entrevista exclusiva, o escritor fala sobre o polêmico A História Regional da Infâmia e explica como foi a traição aos negros que lutaram ao lado dos proprietário rurais que lideraram a revolta contra o Império. Juremir Machado também nos fala de seus dois próximos livros: o primeiro, a ser lançado em outubro, sobre a primeira semana do Correio do Povo; o outro, ainda em fase de pesquisa, sobre o dia seguinte à abolição da escravatura no Brasil.

Culturíssima: Em 2010 você lançou História Regional da Infâmia. O que te motivou a escrever e como foi o processo de pesquisa para concluir o livro?

Juremir Machado: Sou um historiador de formação. Sou um profissional das Ciências Humanas, e sempre tenho interesse pelos temas importantes e polêmicos. Meu método de trabalho é a descontrução. O que eu quero: ver o que se esconde atrás daquilo que geralmente é mostrado. As coisas são mostradas, existem narrativas, e o que me interessa saber é o que está por trás dessas narrativas. Processos como a Revolução Farroupilha, tão controvertidos, aguçam o interesse e meu processo de trabalho é o da investigação profunda, levantar todas as camadas que vão recobrindo o passado, para tentar chegar o mais próximo possível daquilo que pode ter acontecido. O passado só pode ser acessível através de documentos, e estes podem ser incompletos, e de toda maneira, não representam a verdade nua e crua. Representam situações, olhares e circunstâncias do passado.

Fiz um trabalho sobre a Revolução Farroupilha que julgo ser o mais completo. E digo isso sem falsa modéstia. Trabalhei com muitas pessoas, com bolsistas de iniciação científica, com profissionais que fizeram transcrição de documentos e, com apoio de colegas, nós debulhamos 15 mil documentos. Por uma dessas circunstâncias da vida, o diretor do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, na época, era um grande amigo meu – Luis Carlos Carneiro, já falecido -, e me permitiu levar a documentação para casa. Então levei muitos arquivos pra casa. Devolvi todos, mas levei. Aí pude trabalhar com toda a tranquilidade e fiz uma pesquisa em profundidade. O foco da minha pesquisa era o destino dos negros que lutaram com os farroupilhas. Isso me faz passar por vários elementos, como o que aconteceu em Porongos em 14 novembro de 1844. E faz passar também por outros tópicos não abordados pela historiografia tradicional gaúcha e nem mesmo, curiosamente, na historiografia mais crítica. Por exemplo o fato de que parte da guerra civil foi financiada pela venda de negros no Uruguai, por parte do Domingos José de Almeida. Isso tem em documentos. Por que esse documento não era focalizado, colocado em destaque, e para dizer em linguagem jornalística, por quê isso, que a meu ver é o aspecto mais importante, nunca virou manchete? Até me espanta que muita gente tente ignorar o meu livro. É a pesquisa recente mais completa sobre a Revolução Farroupilha. Tem grandes historiadores que eu respeito muito, que fizeram trabalhos espetaculares sobre certos aspectos da Revolução Farropilha, o mais importante certamente o Moacyr Flores. Também o Tau Golim, que fez sobre um outro aspecto. São historiadores importantíssimos, que abordaram aspectos fundamentais. Agora, esse aspecto do financiamento da revolução pela venda de escravos, e a abordagem mais completa do que aconteceu em Porongos, eu que fiz.

HISTORIA REGIONAL TENTATIVA - jremir machado da silva

Culturíssima: Você sentiu muita resistência dos movimentos tradicionalistas referente aos temas que abordou no livro?

Juremir Machado: Não tenho tanto contato com eles para saber o que eles pensam, mas imagino a rejeição continue existindo. Apesar do meu livro ser sobre temas polêmicos, é um livro de tal forma embasado em pesquisa documental que, as críticas que possam ser feitas, não me impressionam. Tudo o que digo no livro está baseado em documentos. Faço ele em uma linguagem bem atual, provocativa, não tenho nenhum temor em fazer isso, mas tudo baseado em documentos. A questão, por exemplo, da corrupção na Revolução Farroupilha, que foi forte. A questão das indenizações que foram pagas pelo imprério ao final da guerra civil. Se tentou dizer que era um livro requentado. Não, teve muita documentação nova e também uma focalização mais adequada de coisas que tinham sido secundarizadas. Foi um trabalho intenso, de fazer uma narrativa crítica e completa sobre a Revolução Farroupilha.

Culturíssima: A causa Farroupilha tinha algo de progressista?

Juremir: Sim, tinha aspectos progressistas, mas não aqueles que eram mais destacados. Por exemplo, a Revolução Farroupilha não foi abolicionista, e este era, por assim dizer, o aspecto mais progressista que poderia se ter na época. Os farroupilhas eram liberais, no sentido econômico e político, e isso representava um certo avanço. Nesse sentido, eles se opunham ao status quo. Por outro lado eles eram proprietários. A Revolução Farroupilha foi a revolução dos proprietários rurais cansados de pagar tantos impostos, querendo mais atenção do Império, do poder central. Razões que não deixavam de ser justas. Agora, eram proprietários defendendo os seu interesses que, se atendido, trariam benefícios para a província, mas que não eram os interesses principais de todo mundo e, muito menos, não eram os interesses dos estados.

Culturíssima: Por que a questão envolvendo os negros e a traição de Porongos não é discutida?

Juremir: Por várias razões. Primeiro, nós somos ainda um país racista, um estado racista. Segundo, os negros ainda continuam um tanto marginalizados, sem poder de escrever a história, que continua sendo escrita pelos homens brancos, e continua sendo escrita pela classe dominante. Por outro lado, o mais importante é o seguinte: isso põe em xeque o mito estruturante da sociedade gaúcha. O mito fundador, aquilo que foi resgatado para constituir um mito, capaz de dar cimento para uma identidade gaúcha. E porque passa por elementos que são difíceis de aceitar, que são os da traição em Porongos.

Em Porongos, houve mais de uma traição. Houve traição aos Lanceiros Negros, mas ela é diferente. Eu diria que é a traição número dois. Existe uma traição maior, que é aos da infantaria. Os infantes eram soldados negros, que lutavam a pé, com armas de fogo. Na véspera ao ataque de Porongos, o David Canabarro, que era o chefe, tirou o cartuchame desses homens. Então, quando aconteceu o ataque, eles estavam desarmados. Mas esses aí, que foram atacados desarmados, não eram lanceiros, eram infantes, e são os principais traídos, porque foram atacados de surpresa, mas possivelmente combinado. Os lanceiros também foram vítimas desse ataque combinado, mas eles puderam lutar com suas lanças, bravamente. Aí tem um paradoxo, pois os tradicionalistas destacam os lanceiros. Se tu pegar os principais tradicionalistas, eles vão te dizer que os lanceiros lutaram bravamente. Por que que eles dizem isso? Porque se eles lutaram com suas armas, eles não estavam desarmados, então não foram traídos. Aos destacar isso, eles querem esconder o fato de que, documentalmente se sabe, Canabarro desarmou a infantaria.  Ali, uma coisa é certa: os negros foram traídos.

Quadro de Juan Manuel Blanes

Quadro de Juan Manuel Blanes

Culturíssima: O que significa pra você, atualmente, o evento Semana Farroupilha e o feriado de 20 de setembro?

Juremir: Eu divido isso em três partes. Existe um eixo ideológico, um histórico e um que eu chamo de função de socialidade, tomando uma expressão do sociólogo francês Michel Maffesoli. O que é o eixo da socialidade? É esse prazer de estar junto, de vibrar em comum, de comungar, compartilhar um sentimento, de se unir em torno de alguma coisa. Isso é muito importante, todo mundo precisa. A Revolução Farroupilha serve de totem, um objeto em torno do qual as pessoas se organizam, se sentem felizes, dançam, fazem a festa e vivem socialmente. Esse eixo é muito bom. Esse eu não discuto, eu elogio. Tudo o que faz laço social, acho bom.

Agora, o eixo ideológico é mais complicado. Aqui se faz laço social, mas o elemento ideológico muitas vezes é conservador, homofóbico, machista. Então, esse aspecto ideológico é criticável. E o aspecto histórico, que é o que mais me interessa. O fundamento histórico não me parece sustentável, verídico. Um sociólogo como Michel Maffesoli diria o seguinte: azar da história. O mito é mais interessante que a história. O mito reúne, faz vibrar em comum, dá razões para existir? Ficamos com o mito. A verdade, no caso, estraga o mito. Mas o historiador se interessa pela verdade. Então o meu lado sociólogo, vibra com o mito, e o meu lado historiador, busca a verdade.

Culturíssima: Qual a importância da literatura para recontar a história do Brasil? Ela cumpre bem esse papel?

Juremir: Olha, já cumpriu melhor. Atualmente não cumpre tanto. Já cumpriu melhor na época de Guimarães Rosa, antes com os romances policiais dos anos 30. Hoje acho que é uma literatura mais tímida, mais umbilical, tem muitos bons escritores, mas não tem nenhum extraordinário. Quem é o Guimarães Rosa de hoje? Quem é o Graciliano Ramos de hoje? Quem é o Mário de Andrade, o Machado de Assis de hoje? Essa função narrativa, de inventariar o que está acontecendo na sociedade, como a França tem no Michel Houellebecq, por exemplo, nós não temos aqui no Brasil.

Culturíssima: E fazendo um paralelo com a mídia, ela cumpre bem o seu papel de contar a história através das notícias?

Juremir: A mídia continua a mesma de 54, de 64. É uma mídia golpista e conservadora. O editorial da Folha de S. Paulo de domingo [13/09], intitulado Última Chance, defende que, ou a Dilma faz as reformas ou precisa renunciar. É um editorial golpista, como os que a gente teve em 1964. A mídia de hoje não aprendeu com os erros.

Culturíssima: 2014 marcou os 50 anos do Golpe. Você lançou um livro sobre a atuação a mídia naquele episódio. Ainda é um período obscuro da história do Brasil, com muito a ser desvendado?

Juremir: Tem bastante a ser desvendado. Principalmente ao que se refere ao papel do empresariado no financiamento do golpe militar e, depois, no apoio à ditadura. Em tudo, desde a construção de uma infraestrutura para a repressão, em muitas formas de delação dos chamados subversivos. Tem muito espaço de pesquisa em relação a como a sociedade civil se comportou, apoiando o golpe e a ditadura.

Culturíssima: Quais os projetos literário que você está trabalhando atualmente?

Juremir: Vou lançar no dia 1° de outubro um livro chamado Correio do Povo – A primeira Semana de um Jornal Centenário. O CP está fazendo 120 anos e eu escrevi um livro sobre como foi a primeira semana, do ponto de vista do que saiu no jornal, o que se publicava, como fazia a publicidade, como era o humor, o noticiário, que tipo de polêmica tinha. Estudei essa primeira semana, fiz esse recorte, pegando aquela ideia da célula, que diz que na célula está o organismo todo. É um leitura da sociedade de 1895, à beira do século XXI, a meros seis anos da proclamação da república, sete anos da abolição da escravatura e no ano do fima da Revolução Federalista. Só ebulição.

Também trabalho há muito tempo em um projeto de longo curso que é para resultar em livro no final de 2017, que é sobre segunda-feira, 14 de maio de 1888, um dia depois da abolição da escravatura. Como o Brasil amanheceu naquela segunda? Como a imprensa cobriu? Como as pessoas viveram aquilo? Como é acordar e pensar “não sou mais escravo”? Estou trabalhando nele há dois anos já. Vão ser quase cinco anos de pesquisa.

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9 Comments

  1. O Juremir é muito bom. Mal posso esperar pelos seus próximos livros.

  2. li quase tudo…parei no midia golpista e defesa de Dilma

    • Não foi tu que parou ‘midia golpista’. Foi teu pre conceito que te parou, sem tu perceber, te freou, te censurou de continuar o que estavas gostando.
      O preconceito tem esse poder descomunal, que a gente mal percebe.

  3. Teu trabalho é inestimável, caro Juremir. Nunca houve guerra limpa, e a “nossa” deixou a mancha indelével de Porongos.

  4. “o diretor do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, na época, era um grande amigo meu – Luis Carlos Carneiro, já falecido -, e me permitiu levar a documentação para casa. Então levei muitos arquivos pra casa. Devolvi todos, mas levei.”
    É o jeitinho brasileiro imperando. Juremir usando a Lei de Gérson. Se não fosse amigo não ia ter exceção. Depois escreve no seu livro sobre o Correio do Povo que você ajudou a dar audiência ao jornal do Edir Macedo, pois a Igreja Universal é dona do jornal. Muito dos podres que você critica são perpetuados pelo conservadorismo da bancada evangélica no Congresso. Lamentável.

    • E qual a responsabilidade de um jornalista progressista, que diz o que pensa, sem freios, em um jornal conservador ligado a uma igreja conservadora? Na minha visão, só tem méritos. Nada a lamentar, mas sim a comemorar.

  5. Rainer Der Schlagzeuger

    Admiro e tenho vários livros do Juremir. O trabalho de garimpo que ele e seu grupo de pesquisadores fazem é impressionante! Tudo documentado, baseado em fatos. E escreve muito bem, de um modo fluido, fácil de ler. Continua assim, Juremir!!!

  6. Os Negros lutavam dos dois lados, imperiais e farroupilhas. Não podiam andar a cavalo, pois podiam fugir, então quadros deles andando a cavalo eram inverídicos. Só usavam lanças de madeiras e facas, não podiam usar mosquetões. Eram escravos e se se revoltassem com a promessa de liberdade, não iam adiantar muito, iam voltar a ser escravos e reclamar para quem?. E valiam muito dinheiro para serem mortos como fala no livro. A verdade talvez não seja bem essa…. quem gosta de polêmica para se promover talvez não tenha compromisso com a verdade.

  7. Já tive o privilégio de ouvir palestra do Juremir. Sou fã dos seus escritos, mesmo aqueles com os quais tenho pouca concordância.
    O Brasil precisa de mais historiadores, que levem à serio a produção da narrativa histórica, e não apenas repliquem o senso comum dos livros escritos desde sempre para calar (e não contar) a história.

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