Nasi, os orixás, o rock e o Ira!

Foto: Marcelo Rossi

Foto: Marcelo Rossi

Luiz Paulo Teló

Nasi está magro. Não só pela cirurgia bariátrica por qual passou recentemente. Aos 53 anos, aparenta a leveza de espírito de quem já passou à limpo os erros e acertos da vida, entendeu que as coisas tinham que ter sido assim, e resolveu que agora tudo teria outro peso, ganharia outros ritmos. Lançado em pareceria com o Canal Brasil, seu novo CD e DVD chama-se EGBE [pronuncia-se êbé]. O nome é de um orixá africano, o senhor da alegria, do bem estar, das crianças e da pureza da vida. Remete a um conceito de comunidade e religiosidade.

Encontramos o vocalista do Ira! esta semana, quando ele esteve em Porto Alegre para uma apresentação no especial junto com a Orquestra de Câmara da Ulbra, cantando clássicos do rock nacional, no Auditório Araújo Vianna. Nasi fala com tranquildade sobre qualquer episódio polêmico de sua trajetória, e demonstra ter uma invejável memória.

Desde 2009, o músico vem aflorando um lado extremamente místico e voltado para a cultura religiosa afro-brasileira. Essa influência fica clara em toda a concepção estética do novo álbum. Na conversa de quase uma hora conosco, Nasi falou sobre essa questão, relembrou como acabou sendo um dos incentivadores do rap nacional e ainda revelou como se reaproximou de Edgard Scandurra após o final traumático do Ira! em 2007, cheio de brigas judiciais, até o reencontro e nova turnê da banda em 2014.

Culturíssima: Como é tocar com orquestra? O rock’n’roll fica diferente?

Nasi: No caso do Ira!, pelas influências da gente, é algo que gostamos muito. Rock inglês, Beatles, George Martin, The Jam… Agora, tive duas experiências apenas, e essa é a segunda. Na primeira fui pego de supetão, é até meio engraçado. Foi com a orquestra sinfônica de Limeira. Me procuraram para fazer um show com uma seleção de músicas do rock brasileiro, aí foi marcado uma data para esse evento, mas na sequência o show foi cancelado. Na verdade eles transferiram e não me avisaram, aí me ligaram um dia e falaram “olha, tem esse show em Limeira agora no final de semana, com orquestra”. Então fui pego meio de surpresa, não pude ter um diálogo musical. Dessa vez [com a Ulbra] foi mais organizado. Fui contactado com um mês de antecedência, pude escolher as músicas dentro de uma lista de 30, algumas que já canto há muito tempo como Envelheço na Cidade, Flores em Você e pude escolher uma que sempre quis cantar, que é Canalha do Walter Franco. Pude conversar com o maestro, ele me mandou os arranjos. Então foi algo mais organizado, cheguei para o ensaio já sabendo as entradas. Um projeto bacana, fico feliz que venha em um momento legal da minha vida, com essa volta do Ira!, também estou lançando um trabalho solo que está sendo muito bem recebido, e de novo no Araújo Vianna… quer dizer, tudo de bom. Já pensei em um projeto solo com orquestra, que acabou não vingando, já pensamos até para o Ira! nesse sentido. Infelizmente é difícil de fazer, é um projeto caro, que precisa de grandes espaços, de teatros, muita gente viajando. Mas é bacana, se uma hora a gente conseguir viabilizar, acho que o Ira! tem muito dessas referências, no estilo do Edgard compor caberiam muitas músicas dentro de um concerto. Nesse caso da Ulbra acho até mais legal, porque naquele outro caso foi uma orquestra sinfônica, que tem naipe de metais, tem tímpanos, percussão, que é bacana, mas acho que fica muito grandiloquente pro rock. Como aqui é uma orquestra de câmara, é centrada nas cordas apenas, então são violoncelos, violinos, violas, contra-baixo, e acho que isso é mais propício para o rock.

Culturíssima: Você acaba de lançar o disco EGBE. O que você pode falar das influências musicais e espirituais desse álbum?

Nasi: Não acho legal que meu trabalho seja visto agora como um trabalho religioso. Tem muito na música, essa coisa de “o fulano virou gospel”. Não é bem isso. Mas como nas coisas que escrevo falo de coisas que estou vivendo, e acho que sempre que puder falar de uma maneira universal usando alguma forma de pensamento, mesmo porque a religião de Orixá não é moralista, pregodora ou de conversão, então não tenho necessidade de ficar dizendo para os outros como é bom ser de Orixá. É uma coisa que simplesmente faz parte da minha vida e da forma como vejo as coisas.

Esse disco é a evolução de um conceito que comecei no meu DVD anterior, o Vivo na Cena, que eu trabalhei com o produtor Roy Cicala, americano que era um dos donos da Record Plant, produziu praticamente todo mundo da música popular americana, foi o produtor de todos os discos do John Lennon. Ele faleceu há questão de um ano e meio, e agora no final da vida chegou a ter um estúdio em São Paulo com o produtor Apolo 9, que trabalha comigo desde o início dos anos 2000. Ele era um cara especialista em gravações ao vivo. Gravou ao vivo o Frank Sinatra e praticamente todo o rock americano. Então esse meu disco tem o mesmo conceito de Vivo na Cena, ou seja, os músicos tocando ao vivo, sem overdubs, três takes em média cada música, para escolher o melhor, buscando o conceito de deixar a música viva. Gravar ao vivo sem público, de uma forma que a concentração vira uma adrenalina. A tecnologia avançou muito na música nos últimos tempos, isso é bacana, e hoje a pessoa pode gravar um disco dentro de casa, sozinha. Isso é bacana, mas tem que tomar cuidados para não esfriar a música. Por isso tem a expressão que se usa  muito hoje que é o da música orgânica. O que é orgânico? Ao meu ver, é algo que tem vida. Essa foi a maneira que encontrei nos meus dois últimos trabalhos de poder fazer um registro de imagem, mas sem que isso fosse um disco de gravações de overdubs. Normalmente os discos sempre foram gravados nesse formatos, grava-se primeiro a base de baixo e bateria, depois grava-se as guitarras, depois a voz solo. É um processo em que vocês se aproxima mais da perfeição, mas se distancia, geralmente, da emoção.

Acho que o EGBE evoluiu em relação ao Vivo na Cena porque encontrei um estúdio melhor. O anterior foi gravado no estúdio Na Cena, que é de sala ampla, bom para a parte de imagens, e dá até para gravar uma pequena orquestra lá, mas por outro lado não tinha os recursos de estúdio, as máquinas boas como tem o Audio Arena, um estúdio que fica no Estádio do Morumbi. Sou são-paulino e brinco que foi única coisa boa que saiu de lá nos últimos anos foi esse disco [risos]. Fiquei muito satisfeito com o resultado dele. A gente conseguiu fazer uma seleção de músicas mostrando um panorama do meu universo musical. Trouxe uma parte das músicas autorais do Perigoso, meu disco anterior, que saiu só em formato de CD, e não teve registro de imagens. Então achei que seria pertinente regravar, principalmente as músicas autorais. A única não autoral que entrou foi Dois Animais na Selva Suja da Rua, que é uma composição do Taiguara, que ele fez para o Erasmo Carlos gravar em 1971. A letra diz muito sobre o que eu vivo. Fora isso, tem algumas versões. Fiz uma versão para Sol e Chuva, do Alceu Valença, trocando as violas por três berimbais, liderados pelo Dinho Nascimento, um dos maiores nomes da percussão no Brasil. Ele é um cara que revolucionou o berimbau, eletrificou o berimbau, criou o berimbau barítono, que tem a cabaça do tamanho de uma mesa e com corda de piano! Fiz também uma versão para uma música chamada Monia, que é uma música francesa da década de 60, mas que descobri no arranjo e na voz do maestro Erlon Chaves. Resolvi fazer algo com ar de Gainsbourg, que também é algo que gosto mas não aparece muito no meu som. Assim como Johnny Cash, nesse disco tem também elementos de folk country, algo que gosto bastante e acho que nunca ficou tão claro. Sou mais conhecido como um cantor de rock e blues. Revisitei duas músicas da minha fase solo, que se chamava Nasi e Os Irmãos do Blues. E tem duas inéditas, uma chama Alma Noturna, um hard rock pesado, que tem uma frase influenciada por um afro-samba do Baden Powell chamado Lamento de Exú, um samba instrumental em que nós demos uma chupadinha na frase de um violão do Baden. É uma letra que foi composta pelo Kiko Dinucci e eu. E tem uma outra inédita que se chama Egbe Onire, que é uma adaptação pop, próxima do afrobeat criado pelo Fela Kuti, que na verdade é uma adaptação de um cântico de louvor ao orixá Egbe, um dos cânticos que a gente louva em nossos encontros mensais no Oduduwa Templo dos Orixás, do qual sou filho. Esse cântico foi trazido ao Brasil pelo sacerdote Baba King, sociólogo radicado aqui desde a década de 80.

Capa - Nasi - Egbe

Culturíssima: Fora a tua carreira solo, tem o retorno do Ira!. A intenção é também voltar a produzir material inédito com a banda?

Nasi: Acho que sim. Houve uma coincidência legal nesse momento que foi o seguinte: quando eu e o Edgard decidimos pela volta do Ira!, entre final de 2013 e começo de 2014, a gente já estava com os dois trabalhos solos engatilhados. Naquela época ele já estava começando a gravar o disco dele com a cantora Silvia Tape, e eu já tinha praticamente assinado um contrato com o Canal Brasil. É bom que estejam saindo quase ao mesmo tempo, porque acho que cria um foco nesse momento. Então é óbvio que isso está tirando uma certa atenção criativa da gente, mas por outro lado esse conflito entre carreira solo e Ira! sempre foi um problema. Ao mesmo tempo era bom para a banda as nossas carreiras solos porque elas desaguavam nossas vertentes musicais que às vezes não dá para colocar tudo em uma banda de rock, pois a banda é um conjunto de personalidades, mas por outro lado às vezes nos frustravam, até mais o Edgard, porque estava envolvido em trabalho solo e vinha pressão da gravadora, e uma pressão com razão. Hoje a gente não tem esse problema, somos independentes, sabemos que têm gravadoras interessadas em licenciar futuramente um trabalho da gente. O que acontece agora é que o Ira! continua nessa turnê, porque o palco é a nossa vida, nós adoramos tocar essas músicas, adoramos o nosso público, temos prazer em tocar juntos. Apesar de hoje não ter a pressão de uma gravadora, acho que isso [de gravar material novo] tem que acontecer quando a gente reunir boas músicas. Já surgiram temas, a gente já passou alguma coisa em um show ou outro, em um ensaio ou outro. Mas acho que nossa alma precisa estar livre de nosso trabalho solo, para aí a gente voltar os olhos pra isso, e tenho certeza que isso vai acontecer.

O que acontece agora é que o Ira! continua nessa turnê, porque o palco é a nossa vida, nós adoramos tocar essas músicas, adoramos o nosso público, temos prazer em tocar juntos

Fora isso, a gente teve uma participação agora no Rock in Rio em um show muito bacana junto com Tony Tornado e Rappin Hood, que foi gravado pelo canal Multishow. A gente tem interesse, e não depende só da gente, e estamos conversando com os donos dos direitos de imagem, acho que poderia ser um aperitivo legal para esse novo Ira!. Quem sabe sair um DVD com esse show, já dando um primeiro passo para um futuro disco.

Culturíssima: Pois então, você produziu o primeiro disco de hip hop do Brasil. Como se deu a tua aproximação com o movimento e se você acha que as manifestações culturais mais interessantes ainda vem da periferia?

Nasi: Olha, o que se chama de funk, é um filho bastardo do rap. Apesar de ser uma manifestação genuína, da periferia, também não tenho que concordar que tudo o que sai da periferia é bom. Acho que diferentemente do rap, o funk é uma musica de banalização de consumo, de pobreza poética, um fenômeno que tem como única coisa boa ser um canal de diversão da garotada. Mas o rap, apesar de ser tudo isso que falei agora, é também um canal de grandes poetas. Pô, você vê um Emicida, um Thaíde, um Racionais, ali tem conteúdo. São músicas para você dançar, escutar e pensar “nossa, é verdade”. É um canal para as insatisfações, angustias da periferia, não só uma música alienante, que prega o consumismo ostensivo. Então eu lamento, apesar de ser uma música que vem da rua, sinceramente não curto.

Eu sempre fui um colecionador de discos. No início da carreira do Ira! eu ganhava dinheiro como DJ, tocador de disco na noite. A primeira vez que ouvi rap foi em 84, quando trouxeram pra mim um single do Run-D.M.C, aí fiquei chapado com aquele jeito de cantar e no caso do Run-D.M.C já tinha uma liga, porque eles misturavam com rock. Aí fui mergulhando no rap, lá por 85/86 eu ouvia Kurtis Blow, Grandmaster Flash and the Furious Five, Run-D.M.C, Mantronix, e aquilo virou um negócio de louco. Nas viagens do Ira! eu só ouvia aquilo, foi um momento compulsivo. Aí comecei a fazer parte de uma confraria de músicos de outros gêneros que se reuniam para ouvir aquilo que era uma nova música, uma nova maneira de fazer música, com colagens, os scratches, o jeito de cantar. Nessa confraria, em que a gente se reunia para fumar maconha e ouvir rap, tinha eu, o Escova, Theo Werneck, Jai Mahal, etc., a gente começou a ouvir aquilo e resolveu fazer uma festa em São Paulo, uma noite chamada My Baby, porque era em espaço de teatro chamado Espaço Mambembe. A gente discotecava e tinha pequenos números musicais. Eu cheguei a cantar um rap com o André Jung. Teve algumas edições essa festa. Nós fomos até o centro de São Paulo, onde no metrô São Bento se encontravam as gangs de B-boys, e agente achava que aquilo tinha que fazer parte do show, então convidamos eles para fazer parte da festa. Nessa época o Thaíde era um b-boy. Ele chegou pra mim e disse: “Tenho um rap aí, e tem um amigo meu que é DJ, será que dá pra dar uma canja?”. Aí nós fizemos pra ele, em um estúdio portátil de quatro canais que a gente tinha, uma pequena base. Então surgiu essa relação, foi um puta sucesso a festa, o Thaíde se revelou um showman e MC de primeira. E aquilo começou a ganhar força, começaram a surgir documentários sobre o rap. Na época o Ira! estava no auge na Warner, e eu cheguei a levar uma demo do Thaíde. Lembro dos caras falando: “Que isso aí, me? Olha esse jeito de cantar! Não é assim que se canta! O que é esse ‘fique-fique’ riscando disco?”. Aí meses depois procurou a gente o pessoal da gravadora Eldorado, chamando a gente que estava ligado ao Thaíde. A gente tinha continuado a fazer base para ele, que estava fazendo seus shows por aí. O primeiro disco do rap nacional, que é o Cultura de Rua, é uma reunião de vários artistas, cada um com duas faixas, e cada produtor com um artista. Ali então tem produção do Akira S, do Escova, e outros mais. Apesar de ser um disco independente, ele estourou. A primeira faixa do Thaíde naquele disco chegou a tocar em rádios comerciais. O disco na época chegou a 30 mil cópias, e para um selo independente, isso era um fenômeno. A partir daí trabalhei também como produtor nos dois primeiros discos solo do Thaíde, que também foi pioneiro, porque antes só se tinha coletâneas.

Culturíssima: Há alguns meses entrevistamos o músico e produtor Ray-Z, que é paulista, mas mora há muito tempo aqui, e já produziu dezenas de bandas gaúchas. Perguntei sobre a identidade que as bandas tinham aqui lá nos anos 80 e 90, e ele citou o Ira! como banda que para ele remeteria diretamente a um rock com identidade paulistana, em comparação ao que se chamava rock gaúcho. Você sente isso também?

Nasi: Acho que existe uma coisa cosmopolitana, que não liga só o Ira! com São Paulo, mas liga o Ira! com Porto Alegre também. Da cena do rock brasileiro, para falar a verdade, as bandas que a gente sempre mais gostou foram as gaúchas. Por mais que tenhamos muita identificação com o rock de Brasília, que tinha muita influência do pós-punk inglês, diferente do rock do RJ, mas essa raiz clássica do Ira! não é à toa, a gente já gravou  Júpiter Maçã, Frank Jorge, Wander Wildner, não é à toa que quando a gente vem pra cá, sentimos que o público gosta da gente como se fossemos uma banda da cidade. Acho que existe essa identidade com São Paulo, que outras bandas também têm, mas que talvez o Ira!, por algumas músicas, têm um pouco mais. Cidades como São Paulo e Porto Alegre têm uma cultura urbana muito própria, que sempre ficou meio fechado em uma coisa de gueto. É diferente de Rio e Salvador, cidades que são cantadas pelo Brasil inteiro e festejadas. O porto-alegrense e o paulistano têm essa coisa de amar a urbanidade, já que não temos a natureza, temos as ruas, os botecos, as histórias, as marginalidades, as periferias. Acho que o Ira! tem isso, e tem a ver com essa nossa proximidade com Porto Alegre.

Acho que existe uma coisa cosmopolitana, que não liga só o Ira! com São Paulo, mas liga o Ira! com Porto Alegre também. Da cena do rock brasileiro, para falar a verdade, as bandas que a gente sempre mais gostou foram as gaúchas

 

Culturíssima: Como aconteceu a reaproximação tua com o Edgard, com o teu irmão, e a decisão de voltar com a banda?

Nasi: Eu já era iniciado, um discípulo de Orixá do Baba King desde 2009. E o King, nas orientações, sempre falou para me reaproximar do meu pai, não interessa que ela tenha dado um passo errado com a interdição, que realmente foi um passo errado, como tudo naquela briga foi precipitado. Até que um dia resolvi deixar meu orgulho de lado e fui procurar meu pai, que mora em um sítio no sul de Minas. Peguei ele de supetão. Disse que não tinha vindo para ouvir e nem dar sermão, o que aconteceu aconteceu, está feito, todo mundo errou, e que não queria falar sobre o que aconteceu, mas sobre o que a gente ia fazer. Encerramos essa história e deixei um recado para ele falar pro meu irmão que eu estava disposto a abrir mão dos processos. Aquilo tinha virado uma guerra judicial. Seis meses depois meu irmão me procurou, nos encontramos, tivemos um papo mais longo. Na época ele não trabalhava mais com música, e insistia para que eu voltasse a falar com o Edgard, mas eu tinha um pouco de receio de ser mal atendido e piorar a coisa. Aí passou um tempo, e um dia tomei uns vinhos a mais e resolvi ligar. Eu sabia que ele tinha pedido ajuda para o meu irmão para um evento beneficente. Com esse mesmo discurso, de não estar ligando pra dar e nem ouvir sermão, disse pra ele ficar tranquilo, que não ia mais falar nada de negativo sobre ele, e se alguém por aí dissesse que falei, era mentira. Às vezes é bom também pegar o outro e a si mesmo de surpresa, do que ficar racionalizando muito. Me coloquei a disposição dele. O show era em outubro e acho que liguei pra ele em abril. “Olha, aquele show teu, se te interessar contar comigo como artista, estou à disposição”. A confirmação desse show fez com que a gente se encontrasse algumas vezes pra tomar um café. A apresentação acabou acontecendo em outubro de 2013, e quando ele foi confirmado e divulgado, foi um fenômeno. Todo mundo começou a dizer que era a volta do Ira!, e não deixou de ser, porque, me desculpem os outros, mas quando se encontram Edgard e eu em cima do palco, é Ira!. Mesmo porque a banda tem uma história bacana com uma formação, e apesar do final, o Ira! teve formações anteriores que não chegaram ao disco, pois não estávamos na industria fonográfica ainda, que foram muito importantes, com a presença de Charles Gavan, do Vitor Leite, o Adilson, que foi o primeiro baixista, Dino, enfim… O show foi vendido com um ingresso caro, lotou com horas de divulgação! O mais importante foi quando a gente subiu no palco. Para falar a verdade, eu nem ensaiei. “Que música você quer tocar? Vamos fazer um repertório de Ira!? Beleza”. Quando a gente subiu no palco, aquela emoção toda do público e nossa também. A gente percebeu, sem que precisasse um falar nada para o outro. A gente percebeu que tudo tinha passado, a gente estava lá em cima e qualquer rancor, qualquer ofensa ou ciúmes do passado, acabou-se ali.

Me desculpem os outros, mas quando se encontram Edgard e eu emcima do palco, é Ira!

 

Após isso, a gente se encontrou algumas vezes e pensou nessa possibilidade. “Olha, vamos tirar férias, e na volta das férias a gente conversa”. Vamos ver se é só o calor do momento, ou se é a emoção desse show. Aí na volta do carnaval de 2014, dessa boataria de festivais que cotavam o Ira!, surgiu um convite concreto da virada cultural paulistana, para nós abrirmos a virada cultural em frente a Praça da Luz, que está pra São Paulo mais ou menos como o Big Bang está pra Londres! Então foi a hora da verdade. Se olhar e dizer: vamos voltar? Como vai ser? Chegamos então a conclusão de uma formação nova, porque àquela altura da vida, eu estava há sete anos tocando com o Johnny e com o Evaristo, o Edgard também, todo esse tempo tocando com o Dani. Não tinha como a gente se desvencilhar de pessoas que faziam parte da nossa família naquele momento. Então decidimos pela volta, mas com uma nova formação, algo que integrasse os nossos dois trabalhos solos.

Foto: Iasmin Daher

Foto: Iasmin Daher

Culturíssima: O último disco do Ira!, de 2007, é o Invisível DJ, que é bem bom. Ali já tinha resquício que a banda estava implodindo?

Nasi: Tinha. Pode ver no DVD do Invisível DJ, que é um show gravado ao vivo, nesse mesmo estilo, dentro do estúdio, sem retoque. O produtor Rick Bonadio deixou dois caras com câmera no estúdio em tempo integral, tipo um Big Brother. Se você prestar atenção no vídeo, você vai ver que o clima não está bom. Tinha hora que a gente até esquecia que estava sendo filmado [risos]. Eu até me sai bem, porque naquela época eu estava tão estressado que fui pra praia, no sul da Bahia, e falei: “Vocês gravem as bases, me mandem o CD, vou ficar aqui ouvindo e volto para gravar a voz”. Aí acho que fiquei até o mais bem humorado de todos! Acho que o disco tem coisas muito boas, muito bem gravado, muito bem tocado, mas falta um pouco de alma nele, que outros discos têm mais. O prazo de validade daquela formação chegou ao limite, estávamos muito estressados, fruto também do sucesso. Com o sucesso, paga-se esse preço. Se você está com coisas mal resolvidas dentro da banda, e você faz sucesso, aí é duro, porque se tem um convívio muito intenso, viajar muito, agüentar mau humor, e eu me incluo nisso também. Fora isso, essas pequenas frustrações também, ficava sempre o Ira! e o trabalho solo batendo na trave, entendeu? Acho que também foi um ciclo de história daquela formação. Isso é difícil de definir, mas quanto mais o tempo passa mais eu vejo isso daí.

Nasi: Há algum tempo você é filiado ao PCdoB, tem histórias na família de gente que foi torturada e morreu na época da ditadura. Que avaliação você faz hoje da esquerda brasileira?

Péssima. Ainda tem muita gente que eu gosto no PCdoB, o Jamil Murad, o próprio Aldo Rebelo e outras pessoas. Me filiei de 2002 para 2003, quando tivemos o primeiro governo de esquerda no Brasil. Eu pensei que dentro do PCdoB poderia atuar em um núcleo de música e cultura. Muita gente especulou que eu sairia como vereador, o partido me pressionou para isso também. Mas eu não fui com esse intuito. E logo de cara o governo do PT se uniu a tudo que meus antepassados, e eles mesmos, lutaram contra durante toda a vida. Maluf, Collor, Sarney. Naquela hora já comecei a me sentir um corno. “Não, veja bem companheiro, faz parte do jogo político, das alianças que são necessárias…”. Bom, aí sucederam-se dois grandes escândalos de corrupção, o Mensalão e agora o Petrolão, e que parece que a cada dia vai surgir outro – mas não é exclusividade do PT e nem da esquerda. Ao longo do tempo vi os grandes nomes do PT abandonarem o partido. Hoje, se tem uma esquerda, que pode não ter exatamente um projeto para o Brasil, mas que tem coerência e militância, é o Psol, com o Chico Alencar, a Genro. Então como vou avaliar bem um governo dito de esquerda, que não fez nada pela educação no Brasil? Só alimentou um assistencialismo que gera um estilo de governar de governos de direita e ditaduras. Te diria que hoje sou um cara super distante da atuação política. O partido às vezes só procura o artista na hora de aparecer o comercial na televisão. Só não me desfilio porque ainda tem pessoas que respeito muito lá e tem uma história muito bonita. Cada vez mais o futuro da política tem que pertencer a movimentos sociais, mas descontaminados de partidos. Os partidos são importantes, não existe democracia sem partidos, mas sem a contaminação. Infelizmente hoje em dia nó vivemos uma democracia muito errada. Nas marchas de 2013, perdemos uma grande oportunidade. Aliás, ali teve uma das poucas coisas boas da Dilma, que ninguém tocou pra frente, que era a reforma política através de uma Constituinte. Movimentos sociais, partidos, estudantes, todo mundo, porque não dá pra pedir para os políticos fazerem a reforma política, né? Tanto que eles estão fazendo e está piorando. E outra grande decepção que tive com esse governo foi a relação com a educação, fizeram a mesma coisa que todos os outros governos fizeram, desde a ditadura militar vêm sucateando o ensino. É uma pena. É como uma maneira sórdida de nivelar a população por baixo para que ela não tenha consciência da realidade.

E o que você acha do discurso conservador que muitos artistas do pop e rock acabam disseminando quando se manifestam sobre política?

Eu acho feio. Quer fazer besteira faz, eu não vou te atacar, mas também não vou te defender. Acho que passou do limite. Não quero julgar eles. Assim como alguém quer se posicionar como direita ou extrema direita, problema seu. Mas eu não compactuo, eu não iria a lugar nenhum, por causa nenhuma, ao lado de Bolsonaro ou de gente pedindo a volta da ditadura. Ser contra o governo do PT? Tudo bem, é um direito deles. Agora, se unir a gente que vai falar em volta da ditadura… fico com vergonha alheia.

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2 Comments

  1. Cândido Pitangueira de Oliveira

    Parabéns pela lucidez e coesão de suas ideias. Tb me encaixo no seu posicionamento sobre essa “esquerda”. Hoje não sou bem quisto nem por petistas e muito menos por psdebistas. Que bom, pois a recíproca, é verdadeira. Longa vida a Ti.

  2. Olha que digo que a Banda Ira tem grande história e acho devem superam tudo e fazer pessoas como eu que os amo e me importo com seus conflitos,pq vida e cheia de conflitos e conflitos da Banda e nada perto do público os seguem.
    Porra Ira pensa eu amo vcs e briga de casal não me convém.
    segue melhor banda do Brasil.

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