Notícia urgente: entrevista com Bebeto Alves

Luiz Paulo Teló

Foi em 1998, na França, que Bebeto Alves teve as primeiras complicações que o levaram a descobrir que tinha hepatite C, uma doença viral que ataca o fígado. Décadas antes, entretanto, Bebeto já descobrira que o que queria era ser músico: do folk à milonga, passando pelo rock e por qualquer outro ritmo brasileiro que possamos imaginar.

O músico, nascido em Uruguaiana nos idos de 1954, já fez de tudo. Já gravou mais de duas dezenas de álbuns, gravou disco ao vivo e disco triplo. Já morou nos Estados Unidos, no Rio de Janeiro, Porto Alegre e agora está em São Leopoldo. Já viajou o mundo tocando, mas também investigando a origem da milonga – o que virou documentário dirigido por Renê Goya. Bebeto já fez inúmeras parcerias, e segue fazendo. Já exerceu funções no Ministério da Cultura, no Governo do Estado e nas prefeituras de Uruguaiana e São Leopoldo, sempre ligado à cultura. Já fundou uma cooperativa de músicos. Já trocou o fígado. Já montou uma banda depois dos 60.

Conversamos com Bebeto Alves numa dessas agradáveis tardes de março, em um café de Porto Alegre. Quase dois anos depois de ser submetido a um transplante, Bebeto se diz bem. Ativo e, como sempre, fazendo coisas novas, o músico falou muito sobre a experiência da cirurgia e como surgiu o projeto Los 3 Plantados, banda formada por ele com Jimi Joe e King Jim – músicos que também foram transplantados recentemente.

Hoje, publicamos a primeira parte da entrevista que durou quase duas horas. Restante do material entra no ar na próxima quarta-feira, 8 de abril.

Para ouvir e mandar lenha na entrevista

Culturíssima: Até 2012 estava morando no Rio de Janeiro, como foi teu retorno pro sul, para morar em São Leopoldo?

Bebeto Alves: Eu era diretor do Centro de Música da Funarte, que é um órgão ligado ao Ministério da Cultura do Governo federal.  Fiquei nos dois anos de gestão da Ana de Hollanda, e quando ela saiu, eu saí. Primeiro em solidariedade a ela. Em segundo, porque eu tinha que fazer um transplante. Aí vim pra cá porque o diagnóstico da minha saúde se agravou. Não estava me sentindo mal, mas houve um diagnóstico de um tumor no fígado, aí entrei direto na fila do transplante e tive que vir embora. Janeiro de 2013 vim pra cá e abril de 2013 transplantei.

Culturíssima: Como é essa experiência? Deve ser maluco.

Bebeto:  Cara, acho que é tão irreal dentro de uma perspectiva de tu conseguir entender e manusear essa informação, que chega até tu não sentir a dor. A dor, quando falo, é tu não sentir a sensação de uma morte iminente, a finitude que um dia vamos encontrar. É tão doido que não chega a mensurar isso, naquele momento. Quando entrei na sala de cirurgia, que minha mulher me deixou lá, eu não sabia se ia voltar. Mas, me entreguei ali. Se não voltar, não vou saber. Ou vou saber, quem sabe? [Risos]

Culturíssima: Onde foi o transplante?

Bebeto: Na Santa Casa aqui de Porto Alegre. É muito legal o trabalho da equipe, tem um trato e um cuidado extremamente rigoroso e tudo pelo SUS, é bom que se frise isso. E a gente continua sendo acompanhado e tratado pelo Sistema Único de Saúde. A fila [de espera para receber um órgão] é a mesma pra todo mundo. Há subdivisões, por tipos sanguíneos. Então, eu tenho um tipo sanguíneo ‘B’ positivo, que não é comum. Ou seja, poderia demorar muito, por haver poucos doadores. Por outro lado, também não tem muitos receptores. Então entrei como um dos primeiros da fila.

Culturíssima: E o pós operatório? Como tu está agora?

Bebeto: Estou bem. Nunca estive mal, essa foi minha grande sorte. Eu tive hepatite C. Tenho ainda, pois o transplante não cura a hepatite. Eu também tinha uma cirrose compensada, que ainda não apresentava sintoma. Então, entrei bem e saí bem. Mas tive amigos que entraram muito mal e tiveram uma recuperação difícil.

Culturíssima: Está em constante cuidado então?

IMG_20150404_092513Bebeto: Sim, quando tu tira o fígado, há uma queda substancial no número de vírus, quase chega a zero. Mas não zera. E em pouco tempo eles voltam a atacar de novo e se multiplicam de uma maneira absurda. Então há uma possibilidade de ter uma crise aguda e uma hepatite fulminante. Eu tive uma crise aguda, o vírus voltou a atacar e formou um quadro de lesão no órgão novo. Mas passou, já fiz duas biopsias e estou acompanhando. Conforme for, tenho que começar um novo tratamento. Existem novos medicamentos, que prometem a cura. Eu tinha feito outro tratamento que tem na rede pública que não é tão eficaz, só em alguns casos, no meu caso não deu certo, não negativei. Mas agora estou com grandes chances de me curar. Vai depender da recomendação dos médicos, de como está aquela lesão, se é o momento de fazer o tratamento. Já vai fazer dois anos que transplantei. Tive vários problemas, mas estou me sentindo bem, diante do quadro.

Culturíssima: Como toda essa situação mexe com a cabeça do artista compositor?

Bebeto: O disco Milonga Orientao fala todo disso. Ele faz esse comentário, o da morte, que é uma coisa complicada. É um assunto que ninguém quer tratar. Tanto que a gente tem tocado bastante nessa questão com Los 3 Plantados, que são três músicos que se conheciam, nunca tinham tocados juntos mas tinham o transplante em comum. Tem sido bacana. Toda parte musical tem um comentário sobre isso, sempre bem humorado, e agrega também uma campanha de doação. Então não tem como escapar de uma emoção muita grande, porque mais que a história de tu estar sofrendo com uma doença, te operar e te curar, é a questão humana que envolve isso. Tu foi salvo por alguém que morreu, e esse alguém tinha familiares, que foram generosos, e tiveram uma grandeza, uma sensibilidade enorme de permitir que aquela pessoas que morreu pudesse salvar a vida de outra pessoa. Isso é um negócio que comove, até hoje, agora, no momento em que estou falando contigo. Eu engasgo. Acho que essa é a parte mais fodida da história, porque tu não tem como agradecer isso, tu não tem contato. É uma relação difícil: alguém te salvou. Quem é? Tu não sabe. É muito doido, realmente mexe. Eu poderia ter uma certa frieza contemporânea, de entender pelo lado mais científico da coisa. A medicina evoluiu pra caramba, pois é impressionante o exercício e a técnica que se tem hoje. Mas não consigo ver assim, dessa maneira.

Culturíssima: E Los 3 Plantados, surge onde?

Bebeto: Surge com a intenção de trazer essa reflexão, esse esclarecimento. As músicas que a gente faz  falam disso. Tem uma música que se chama  Alimente a Vida, fala exatamente disso, aprofunda mais, fala da questão da doação de uma maneira poética. “No meu peito pode bater o teu coração / E os meus olhos serem a tua visão / Um fígado não tem sexo, não tem cor, não tem religião”. E por aí vai, é uma música que fala abertamente. Existia aquele lance de colocar na carteira de identidade, hoje não tem mais. Quando tu morrer, se tua família não quiser, não doa. Não é tu que manda, por isso é importante o diálogo e o esclarecimento no seio familiar.

Culturíssima: O projeto não é apenas uma reunião de repertório dos três, né?

Bebeto:  Então, as coisas acontecem quando são verdadeiras. Somos três artistas de áreas diferentes da música. O Jimi Joe vem do punk rock, o King Jim dessa coisa mais do rock’n’roll e eu venho lá dos anos 70, com uma cultura hippie, pop, folk rock, e todo o resto que assimilei nesse tempo todo da música popular brasileira e da música regional. A gente misturou isso tudo e saiu um trabalho que tem uma identidade, que consegui unir essas coisas todas e sair dali algo novo. Esteticamente falando, Los 3 Plantados é um produto híbrido destas vertentes musicais e influências que cada um traz. E se criou uma banda nova. Realmente somos uma banda nova de velhos músicos [Risos]. Tem o frescor de uma banda nova, isso que é engraçado. O que a gente está falando é uma coisa nova, é uma novidade também, pra nós, pra todo mundo. Tem músicas engraçadíssimas: “Agora que estou velho, gordo, feio e barrigudo, e que gastei tudo com farra…”, coisas assim. É um astral pra cima! Claro, tem alguns momentos que desce alguma coisa. Mas em todas as músicas há uma vontade de contar a verdade. A verdade do que aconteceu com a gente, e passar uma ideia de que é muito bacana estar vivo, é do caralho estar vivo, poder estar fazendo as coisas, pensando, criando. Esta é a história de Los 3 plantados.

Culturíssima: De quem foi a ideia de juntar os três?

Bebeto:  Foi da mulher do Jimi. Ele teve vários problemas pós cirurgia, e numa dessas voltas ao hospital, ele estava chateado, deprimido e a mulher dele pra animar falou “Jimi, vai dar tudo certo. Vê o Bebeto, está bem. O King Jim acabou de ser transplantado e também está bem. Quanto tu sair daqui vocês vão se juntar e fazer uma banda”. Saiu daí.

Culturíssima: E daqui pra frente?

Bebeto:  A ideia é continuar. Fizemos essa estréia no Ocidente, semana passada  [12 de março].Trouxemos dois amigos para tocar baixo e bateria. Desde setembro pra cá, fizemos um repertório de umas 12 canções, que são muito legais. A gente quer gravar, é um projeto para dar continuidade.

Culturíssima: É uma característica da tua carreira juntar pessoas. No final dos anos 90 tu lançou alguns discos com o projeto Juntos, ao lado de Antonio Villeroy, Gelson Oliveira e Nelson Coelho de Castro. Tem alguma semelhança agora?

Bebeto:  Não, é diferente. O tipo de associação é deferente. Los 3 Plantados é uma banda, tem mais a ver com o Utopia, o grupo que eu tinha lá nos anos 70. É uma maravilha chegar na idade que a gente chegou, todos sexagenários, e fazer uma banda. Tu tem o mesmo entusiasmo juvenil, guardada todas as proporções, com a experiência de vida e tal. Mas no fim, no fundo, é a mesma coisa! Não muda nada, tu está louco pra tocar tua guitarra, ligar o amplificador, fazer teu som. É isso, Los 3 Plantados é isso: uma banda sexagenária muito jovem [Risos].

Culturíssima:  Na época, com o juntos, vocês rodaram a Europa.

Bebeto: É, mas o juntos é uma outra coisa. Era uma junção de compositores. Não é uma banda, é um trabalho que quatro compositores fazem conjuntamente. Não tem a identidade da banda, pois é preservada a identidade de cada um. A gente teve na Alemanha, na Itália, na França, na Argentina, no Uruguai, na Áustria… acho que é isso.

Culturíssima: Tocando para que público?

Bebeto: A maioria do público era estrangeiro. É outra onda, pois as pessoas têm outro tipo de comportamento relativo à arte, cultura, expressões e manifestações como a música. A música é uma coisa universal. Mesmo que tu não entenda a letra, entende a intenção. E a gente sempre tentou explicar, dava uma síntese em inglês e francês. Eram as duas línguas que nos virávamos melhor.

Culturíssima: Esse negócio da música como língua universal, de certa forma, tem relação com o documentário do Renê Goya, contigo buscando as origens da milonga.

Bebeto: É, acho que sai em busca de mim mesmo. Não consigo me separar muito dessas coisas, separar minha vida disso tudo. Não consigo pensar em fazer uma pesquisa sobre milonga, isso não faz sentido pra mim. Foi uma proposta do Renê, ele via coisas como quem vê fantasmas, que nem um médium: “tem alguma coisa acontecendo aí”. Por que que sempre quando eu ia cantar a música regional sempre vinha esse canto melismático, de onde que vem isso? Sei lá, mas faz parte da minha vida isso. Tem muito a ver com o flamenco, muito a ver com a Espanha. Tem muito a ver com o mundo árabe, com a cultura mulçumana. Aí a gente foi para o lado da África, para encontrar o significado disso. E a gente encontra ali o início de tudo. Foi uma viajem longa, de 15 ou 20 dias. Encontramos ali ecos, pois eu não estava louco!

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