O que faz Luís Augusto Fischer em Paris

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Foto: reprodução Facebook

Luiz Paulo Teló

Foi no dia 4 de agosto de 2014 que o escritor e professor da UFRGS Luís Augusto Fischer chegou em Paris, na França. Com ele, a esposa Julia da Rosa Simões e os dois filhos pequenos – Benjamim de 8 e Dora de 5 anos. Os quatro retornarão apenas em meados de julho deste ano. É que Fischer conseguiu uma bolsa de estágio de pós-doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma agência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. “É uma coisa muito livre, um estágio de trabalho, leituras, reflexões, contatos, enfim, uma parada na rotina de professor universitário”, explica.

Autor de livros de ficção, ensaios, crônicas, especialista em literatura brasileira, Luís Augusto Fischer é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde 1984, e conta que só deixou de lecionar entre 93 e 96, quando foi Coordenador do Livro e Literatura da Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Personagem marcante do universo cultural na capital gaúcha, desde 1999 organiza, ao lado de Kátia Sumann e Cláudio Moreno, o Sarau Elétrico do Bar Ocidente. Recentemente, em 2013, foi o patrono da 59° Feira do Livro de de Porto Alegre.

Fischer é um grande cara, e nos interessa muito saber o que está fazendo, onde quer que ele esteja, e que impressão tem das coisas que acontecem à sua volta. É por isso que, entre os dias 6 e 15 de abril, trocamos uma série de emails com o professor para saber, afinal, que diabos está fazendo em Paris! Confira como foi:

Culturíssima: Estão desde agosto do ano passado por aí. Nesse período, chegou a voltar ao Brasil em algum momento?

Fischer: Não, fiquei aqui sempre. Mas viajamos bastante pela Europa.

Culturíssima: Tua esposa e teus filhos também estão aí contigo. Como foi o planejamento para que todos pudessem ficar praticamente um ano fora?

Fischer: O planejamento foi uma longa, longa, longa batalha. Coisa de anos. Primeiro, porque eu mesmo resistia a viver tanto tempo fora do país, longe de casa. Eu sou um aipim, sou muito de ficar no mesmo lugar – talvez por ter um lado caipira mesmo, talvez por ser muito cético com a ilusão do mundo, essas coisas que minha formação católica ainda hoje faz pesar, apesar de eu não ter mais relação relevante com a religião há muito tempo. Segundo, porque a obtenção de bolsa é uma batalha, envolve fazer pedidos, escrever projetos, coisas que eu não sei fazer direito – eu sei bem escrever e ler, claro, sei fazer pesquisa e tal, certo, mas escrever projeto naquela língua particular é uma tortura para mim, porque sei que tenho que escrever de modo artificial, para ser lido muitas vezes por gente que não vai ler aquilo ali no mérito, apenas na forma… Terceiro, minha mulher também está aqui com bolsa, para um doutorado-sanduíche em História (ela pesquisa a profissionalização dos músicos em Porto Alegre, nos anos 1930), e portanto precisamos fazer tudo em dobro e tentando conciliar datas e tal. Para nossa total sorte, conseguimos obter o que precisamos para viver aqui sem transtorno, nem sobressalto. A vida em Paris é muito cara, mas as bolsas e o meu salário da UFRGS dão bem para as necessidades. Quatro, teve ainda o planejamento relativo às crianças, que estão na escola aqui, um no equivalente ao 3o ano do Fundamental, e a outra na Pré-Escola. Isso envolveu alguma papelada e muita paciência para saber exatamente o que fazer por aqui. Mas claro que, ao contrário da generalidade do que ocorre no Brasil, aqui na França, pela nossa experiência, a burocracia é a favor do cidadão. Os caras realmente se ocupam do teu caso, querem resolver e não sossegam enquanto não dá tudo certo. Assim foi com a alocação dos nossos filhos em escolas. Eles estão em escolas diferentes, pelo fato de que na escola mais próxima de casa (a duas quadras) não havia uma classe especializada em ensinar francês para quem já chega sabendo ler e escrever em outra língua, caso do meu filho de 8 anos, o que fez com que ele fosse designado a outra escola, a umas 9 quadras de casa. Enfim, quinto, teve também um longo planejamento financeiro, porque fizemos poupança, por bastante tempo, para poder estar aqui sem preocupação com contas a pagar, e podendo usufruir das melhores condições.

Culturíssima: Como tu percebeu que isso impactou nas crianças, o que eles estão achando de estar em terra estrangeira?

Fischer: As crianças reagiram e estão, bem, isso é uma bela história, que agora mal começa a se definir. A gente chegou aqui um mês antes de começarem as aulas – chegamos no começo de agosto e o ano letivo começa no princípio de setembro. Isso já foi bem legal, porque conhecemos bastante bem a cidade e as rotinas daqui antes de começarem as aulas. Eles sofreram um pouco por falta de parceria, claro, porque ficar com pai e mãe o tempo todo, vamos combinar, é um saco. Quando começaram, houve uns 30 ou 40 dias de bastante tensão, porque a questão da fluência na língua se impôs. O Benjamim fez 8 anos em outubro, e chegou aqui lendo e escrevendo fluentemente em português. A Dora fez 5 em fevereiro agora, e não sabia nem sabe ainda ler. Os dois tiveram algumas aulas de francês em casa, em Porto Alegre, o suficiente para saberem dizer o nome, perguntar onde é o banheiro, dizer que estão com fome ou sede, o nome de algumas coisas de interesse imediato, mas pouco mais que isso. De forma que absorver a língua, perder o medo e tornar-se fluente é coisa que demora. Houve momentos bem tensos com eles, recusas a ir à escola, medos, etc. E tudo foi sendo negociado com cada um deles, conforme suas capacidades. Por sorte nossa, a Julia tinha vivido aqui na França quando criança, com seus pais, de forma que para os filhotes era sempre um conforto poder ouvir da mãe que isso é assim mesmo, mas depois passa. Acabou que, três meses depois da chegada, tudo começou a fluir num ritmo excelente. E claro que os dois corrigem a minha pronúncia bagaceira, de quem aprendeu a língua já adulto.

“Os dois [filhos], por exemplo, têm colegas imigrantes ou filhos de imigrantes recentes, com nomes estranhos, hábitos diversos, sotaques e tal, tudo reunificado sob o francês que todos aprendem rápido, como crianças que são. Mas essa marca de conviver com gente diferente é coisa que no Brasil pessoas como nós, das classes confortáveis, não conhece bem.”

No mais, é muito legal ver como eles absorvem as novidades, as experiências. Não só pelo que a gente vai vendo e vivendo, na França e nos lugares que visitamos, mas na vida social mesmo. Os dois, por exemplo, têm colegas imigrantes ou filhos de imigrantes recentes, com nomes estranhos, hábitos diversos, sotaques e tal, tudo reunificado sob o francês que todos aprendem rápido, como crianças que são. Mas essa marca de conviver com gente diferente é coisa que no Brasil pessoas como nós, das classes confortáveis, não conhece bem. Em escolas particulares, como aquela em que eles estudam, há pouquíssimos negros, por exemplo, e por certo não há pobres; aqui, estando na escola pública francesa – leiga, praticamente gratuita (só se paga a comida – o horário em geral vai das 8h30min até as 16h30min, com almoço na escola!), republicana, de qualidade e igual para todo mundo -, eles estão em contato com realidades culturais e sociais bem variadas. O Benjamim, por ter frequentado a classe de francês para estrangeiros, teve colegas coreanos, um nepalês, um polaco, um dinamarquês, um colombiano, etc., e agora mesmo, estando em turma regular, ele tem colegas filhos de tunisianos (o melhor amigo dele), etc. A Dora tem colega nascida no Sri-Lanka, em Moçambique.

Finalmente, outra experiência sensacionl deles aqui é a de estarem numa cidade pouquíssimo violenta. Claro, houve o atentado ao Charlie e ao mercado judeu, mas isso é totalmente fora de qualquer expectativa. No cotidiano, a gente pode andar pela rua sem qualquer medo, nem de assalto, nem de violência no trânsito. A cidade é cheia, povoada, coalhada de pracinhas pensadas para o conforto e a alegria das crianças e dos pais. Apesar da frieza genérica dos nativos, e da rispidez no trato do comércio, que são verdades, a cidade é uma tranquilidade que no Brasil simplesmente não existe, a gente perdeu muito tempo atrás. Aqui, se eu quiser, saio a caminhar pela madrugada sem medo, as crianças podem ser deixadas a caminhar bem adiante dos pais, ou soltas na pracinha… Já pensou?

Ah, sim: e aqui os transportes coletivos funcionam perfeitamente. Vivemos sem carro há oito meses, sem sentir a menor necessidade, nem para os deslocamentos dentro da cidade (nunca usamos táxi aqui até agora, acredita?), nem para sair a outras cidades e países (não só por avião, mas de trem, que é uma maravilha total).

Culturíssima: Já tinha ficado fora tanto tempo assim?

Fischer: Nunca. Conhecia a Europa, de duas viagens anteriores, mas sempre tiro curto, duas semanas, vinte dias no máximo. Ficar um ano fora é uma aventura toda nova.

Culturíssima: Quando anda por Paris, sente que já perdeu aquela sensação de ser turista?

Fischer: De vez em quando sim, mas logo me dou conta e retomo a condição normal. Claro que estando aqui tanto tempo e com rotinas marcadas, como as de levar e buscar as crianças, ir no súper e tal, a gente acaba conhecendo as pessoas, cumprimentando ou ao menos se dando conta de estar integrados – a senhora cega que sempre leva a filhinha na mesma escola do meu filho, o rapaz que, não sei como, sempre passa por mim, quando retorno dessa atividade, lendo, com o jornal grátis do metrô na mão e caminhando. E mesmo quando me dou conta de que estou olhando para o chão, distraído, em vez de olhar para cima, como fazem todos os turistas. Até mesmo a torre Eiffel, que eu vejo todos os dias ao levar o filho na escola, de vez em quando parece uma banalidade…

Culturíssima: Vocês ficam aí até julho, completando quase um ano fora. Já pensaram na possibilidade de não voltar?

Fischer: Jamais pensamos nisso, por vários motivos. Um porque somos brasileiros e vivemos intensamente o Brasil, em Porto Alegre. Outra é porque temos compromissos na nossa terra, especialmente porque estamos aqui com bolsas pagas pelo governo brasileiro, quer dizer, pelos brasileiros, e isso, no meu íntimo, sempre está presente, no sentido de que eu sei que tenho deveres para com a Universidade e com a comunidade em que vivo. Não é retórica isso, mas realmente um sentido político e ético que tenho.

“(…) Temos compromissos na nossa terra, especialmente porque estamos aqui com bolsas pagas pelo governo brasileiro, quer dizer, pelos brasileiros, e isso, no meu íntimo, sempre está presente, no sentido de que eu sei que tenho deveres para com a Universidade e com a comunidade em que vivo.”

Culturíssima: Que legal isso. Aliás, como estão os estudos? Já citou que é meio livre e tal. Mas tem focado em algum tema em especial?

Fischer: Sim, tenho um projeto bem fechadinho, bem amarradinho, bem concebido, modéstia à parte, que é uma síntese do que venho discutindo em artigos e tal, há décadas. Estou trabalhando nisso, embora entremeado com alguns outros projetos bem bacanas e outras cositas, que nunca deixo de fazer, como escrever para a Zero [Hora] e fazer algumas resenhas para a Folha de S. Paulo. O meu projeto tem como assunto a história da literatura brasileira, tema que é o centro da minha vida acadêmica. Tenho a sensação, já há uns dois ou três anos, que consegui umas síntese bacana, que leva em conta o debate mais recente da historiografia brasileira, que se baseia em dados novos e novas sínteses sobre a formação econômica, social e também literária do país – queres que eu explique? Posso fazer, mas demora um pouco… Enfim, este projeto é o que me trouxe aqui, que me valeu a bolsa de estudos e tal. Aproveito para te dizer das outras coisas que estou fazendo ao mesmo tempo (sempre faço umas quantas coisas ao mesmo tempo): um é coordenar um megaprojeto de produção coletiva de uma nova História da Literatura no Rio Grande do Sul, envolvendo mais de 50 colegas, a partir de uma proposta que eu concebi e para a qual convidei vários parceiros (um conselho editorial com 9 professores pesquisadores do tema). O outro é um grande trabalho para organizar uma reedição do clássico gauchesco Antônio Chimango, livro que completa cem anos de vida em 2015. Também é um negócio grande, com um patrocínio bom, que vai permitir uma edição de qualidade, e também envolve mais gente (umas dez pessoas).

Culturíssima: Sabemos que há muitos brasileiros em todos os lugares do mundo. Mas nesse meio mais acadêmico que está circulando, tem topado com muitos conterrâneos?

Fischer: Sim, tenho encontrado brasileiros desgarrados, aqui na França em especial. E também tenho tido bastante contato com europeus que estudam literatura brasileira (na França, em Portugal, na Espanha, na Itália, na Polônia). Tenho aproveitado para falar com alunos de português e de literaturas de língua portuguesa sobre os meus projetos, sobre a literatura brasileira. Agora mesmo, em Roma, fiz uma palestra sobre o Simões Lopes Neto, um grande escritor brasileiro, lamentavelmente sufocado pelo péssimo carimbo de “regionalista”, essa palavra abominável.

Culturíssima: O carimbo de “regionalista”. Isso é curioso. É impressão ou ser carimbado dessa forma atrapalha muito mais o gaúcho do qualquer outro povo? Muito mais pelo próprio gaúcho, claro.

“(…) Nos sentimos como uma corpo estranho. Isso em si não é nem ruim, nem bom, embora possa dar combustível a muita patetice e até a sentimentos racistas.”

Fischer: Esta é uma questão ampla e importante, que eu discuto desde que virei professor, há 35 anos. Acho que não é mais o gaúcho do que outros povos ou regiões que são chamados de regionalistas, pensando no Brasil. Talvez se use mais o termo para o nordeste, ou para os elementos culturais populares do nordeste, especificamente. Talvez nós, gaúchos, sintamos mais ofensivo o uso, porque de fato somos uma formação cultural peculiar no Brasil, somos um corpo estranho – tivemos a única fronteira viva do Brasil por 250 anos, nosso sotaque é claramente diferente de todos os outros, temos um vocabulário peculiar, e mais que tudo temos de fato, tanto entre as camadas baixas quanto entre as altas, um sentimento de pertença muito marcado – quer dizer, nos sentimos como uma corpo estranho. Isso em si não é nem ruim, nem bom, embora possa dar combustível a muita patetice e até a sentimentos racistas. Eu procuro ver o lado digamos digno, historicamente, desta diferença. Não vejo motivos para renegar sua existência – mas é preciso o tempo todo cuidar para que a percepção de diferença não se transforme numa excrescência fascista, nem num coitadismo, coisas ambas presentes no horizonte mental do Rio Grande do Sul.

Culturíssima: Estes dias vi que postou fotos com o Carlos Gerbase. Nesse tempo todo, encontrou por aí bastante gente do “mainstream” porto-alegrense?

Fischer: Depende do conceito de mainstream… Conversei com vários conhecidos e amigos que têm certa fama, se é isso que tu queres mencionar. Jantei com o Luis Fernando Verissimo e a Lucia, ainda em outubro do ano passado. Estive em dois lugares muito distintos entre si com o Vitor Ramil e a Ana Ruth, sua esposa – em Barcelona, onde eles passaram meio ano agora (estivemos juntos numa atividade na Universidade de Barcelona, eu falando sobre canção brasileira, ele cantando), e depois em Reykjavik, na Islândia, onde ele foi para lançar uma tradução ao islandês do ensaio “A estética do frio”, porque o tradutor dele, que vive lá, foi meu aluno, e nos convidou, e lá fomos conhecer o mundo do gelo. Alguns alunos andaram aqui, outros colegas professores (o Luis Rubira, de Pelotas). Enfim, não fiz um relatório inteiro aqui, mas é verdade que encontrei bons amigos e conhecidos nesta lonjura. Pena que não deu pra fazer um churras.

Culturíssima: Como foi estar próximo de um acontecimento como os atentados ao Charlie? Aqueles dias foram muito tensos.

Fischer: Foi mesmo uma experiência esquisita. Do ponto de vista físico não, porque a cidade é grande e estamos na ponta oposta ao centro dos acontecimentos – seria algo como viver na Serraria e o troço acontecer no Sarandi, mais ou menos. Mas subjetivamente foi muito pesado. Temos dois filhos em escolas, e eles precisam sair de casa todo dia – até isso, uma coisa trivial, virou uma questão. As escolas suprimiram as saídas a passeio – aqui é supercomum ver uma turma de pequenos, desde os 4 anos, andando em fila pelas calçadas da cidade, em direção a um cinema, a uma exposição, a uma praça, até para ter aulas de natação na piscina pública do bairro, como era o caso do nosso filho mais velho, de 8 anos. Tudo isso foi suspenso. No dia seguinte teve minuto de silêncio em todo o país, um troço arrepiante. Na escola, explicaram para os pequenos que era até prenderem os bandidos, os terroristas, que eram contra a Liberdade, que na França é sagrada. (Tanto que minha filhota me perguntou, numa viagem a outro país, dois meses depois dos atentados: “Pai, no Brasil tem liberdade?” Eu não entendi a pergunta e perguntei como assim. E ela não entendeu a minha dúvida. Até que ela disse que na França tinha liberdade, que a profe tinha dito isso várias vezes.) A Julia e eu vivemos intensamente os digamos quinze dias posteriores aos atentados, acompanhando pela tevê, lendo tudo que era possível ler, enfim vivendo a coisa em profundidade. E eu tive ainda um acréscimo estranho, mais esquisito: no dia do atentado ao Charlie, estava sendo lançado um romance do Michel Houellebec, “Submissão”, e o pessoal da Zero Hora me perguntou se eu topava ler para resenhar logo, em cima dos fatos. De forma que li o romance no dia do atentado e nos dois seguintes. Aí o ponto: o livro é uma fantasia perversa (e muito bem concebida, um romance eletrizante) de que em 2022 a França estaria sendo governada por um presidente islamista, de um partido chamado Fraternidade Muçulmana. O protagonista do romance é um professor de literatura na Sorbonne, meio desligadão e tal, mas que é aposentado meio na marra, e acompanha as coisas sem “cojones”, sem ganas. Mas vê, por exemplo, que acabou o desemprego, porque agora, com o Islã comandando o país, as mulheres deixaram de trabalhar, já que devem ficar em casa. Acabou o problema de financiamento da universidade, porque um nababo saudita banca tudo – ao custo de a universidade se islamizar. Aí o personagem principal é convidado a retornar à universidade, porque o novo reitor o admira e tal, mas para isso precisa se converter ao Islã. O que tem vantagens: agora a poligamia é ok, por exemplo. Enfim, o romance é uma alucinação verossímil, ainda mais naquele contexto que vivíamos concretamente, com os atos terroristas. Foi inesquecível, no pior sentido, e me apresentou com vigor e violência ao que a Europa vive hoje, em relação aos imigrantes, especialmente aos muçulmanos, que acabaram virando alvo mesmo sendo, em sua esmagadora maioria, pacíficos e republicanos.

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“Selfie na boca da rua do Charlie. Só pode passar pela quadra quem é morador. Alto esquema de segurança ainda. Eu também sou Charlie – e, se depender de mim, vamos parar com essa frescura de ser mais ou menos. Ser Charlie não quer dizer achar que o mundo está resolvido com isso. Mas ser Charlie significa postular que um dos fundamentos da vida TEM que ser a liberdade de imprensa, de pensamento, de opinião.” Reprodução Facebook

Culturíssima: O que chega do Brasil na mídia daí? E o que, na mídia brasileira, não chega da Europa?

Fischer: Pouca coisa, mesmo. Só fatos extraordinários, como a crise do governo federal, acossado pelas denúncias de corrupção. Mas isso é matéria destacada uma vez, em digamos um mês inteiro, e só nos grandes jornais, como Le Monde, o Libération ou Le Figaro, assim como nas grandes revistas, como L’Observateur. Ou então o jogo da seleção brasileira, que ganha página e tal. Mas é preiso relativizar essa pouca presença. Não se trata de pensar que o Brasil é irrelevante para a Europa. É que um país como a França por assim dizer monitora muitos lugares do planeta ao mesmo tempo, necessariamente – ou porque são ex-colônias, ou porque são origem de muitos imigrantes que aqui chegam, ou porque são palco de presença do exército francês, ou porque são casos dramáticos de crise na Europa mesmo – basta pensar na Ucrânia, que fica a duas horas de avião daqui. Nesse sentido, o Brasil é ausente porque não tem dramas deste tamanho e/ou desta urgência. No geral, pelo que vi e ouvi, o Brasil cresceu muito no conceito europeu em geral, desde FHC e mais ainda desde Lula e Dilma. Ficou realmente importante como interlocutor mundial, o lance dos BRICS e tal, uma potência emergente. Agora mesmo, com o destaque dado ao Brasil pela presença central no Salão do Livro de Paris, houve matérias grandes sobre os escritores que aqui vieram, muitos dos quais traduzidos recentemente. A visão que ressalta, no fim das contas, é um pouco clichê: o Brasil literário é bom porque denuncia a pobreza, dá voz aos de baixo, etc., e quase nunca se ressalta outra coisa. Cosia boa é que o Machado de Assis recebeu bom tratamento, com traduções novas dos grandes romances e de duas antologias de contos, e foi bem resenhado, apresentado como um clássico ocidental ainda pouco conhecido.

“No geral, pelo que vi e ouvi, o Brasil cresceu muito no conceito europeu em geral, desde FHC e mais ainda desde Lula e Dilma. Ficou realmente importante como interlocutor mundial, o lance dos BRICS e tal, uma potência emergente.”

Culturíssima: Acha que as redes sociais ajudam a não se distanciar do Brasil?

Fisher: Bá, tu não imaginas quanto! Eu virei um facebooker direto, postando fotos, lendo comentários, ansiando pelo que diriam os amigos e parentes dos relatos que vinha e ainda vou fazendo. Não sei como teria sido sem isso, sério. Teria sido toda uma outra experiência, muito mais solitária. Nos tempos em que só havia o telefone, que eu vivi da primeira vez que vim à Europa, a coisa era complicada, porque além de tudo era caro falar mais de uns poucos minutos. Agora a gente fala via skype com todo mundo, esteja onde estiver, vendo e ouvindo, a custo quase zero, salvo o da banda larga. Da mesma forma, eu leio regularmente os mesmos dois jornais que leio e assino em Porto Alegre, a Zero Hora e a Folha de S. Paulo, assim como a revista Piauí, com a única diferença de precisar aqui ler em digital. Assim também a meia dúzia de sites que sempre leio, com notícias (UOL, Sul21, Já, Clicrbs, Globo, etc.). Não senti nenhuma dificuldade de acompanhar tudo da cidade, do estado e do país. Acrescentei a leitura diária, e também assinada, do Le Monde, e a leitura de várias edições do Libération, de revistas e tal.

Culturíssima: A última: como faz para acompanhar teu Internacional? Frequenta os estádios aí?

Fisher: Pela internet, tenho assinatura do campeonato gaúcho, que vejo sempre que posso ouvindo narração de rádio, como em Porto Alegre. Aqui o gap entre uma e outra é bem maior, uns 15 segundos, mas tudo bem, a emoção é parecida. Pena é que, como agora, a diferença de fuso horário é de cinco horas, o que só me permite acompanhar os jogos que são domingo às 16h aí. Aqui não fui a nenhum estádio ver jogo – também assinei um serviço que me permite ver a Champions League, mas só os jogos realmente de primeira linha, como agora começam a rolar. Eu já tinha me dado conta, e agora reforcei: na verdade eu não gosto de futebol, eu gosto é do Inter.

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