“O que incomoda nessa coisa da gauchada é se achar melhor que os outros”, diz Arthur de Faria

Luiz Paulo Teló

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Na Lancheria do Parque, tomou uma jarra de suco enquanto conversávamos. Foto: Vinícius de Macedo

Não basta termos publicado uma grande entrevista com Arthur de Faria no sábado, 21. O músico, compositor, radialista, jornalista e gente fina, ainda falou muita coisa. Nesta segunda parte, Arthur comenta sobre as vezes que quase desistiu de tudo. “Durante muito tempo em Porto Alegre, era conhecido como o cara que fala bobagem na rádio”, reclama durante o bate-papo. Mas o artista também falou com satisfação de seus inúmeros trabalhos, como a biografia da Elis Regina que será lançada no segundo semestre. E como não poderia deixar de ser, perguntamos para ele sobre a música regionalista, os CTGs, o bairrismo. Coisas que ele tanto ama, só que não.

Na primeira parte da entrevista, ele encerrou dizendo que sente falta de uma música mais provocativa, menos bunda mole. É daqui que seguimos.

LP: Alguém dos chamados “novos paulistas” tem essa provocação a que te refere na música?

AF: A Juçara [Marçal] é bem mais velha, mas ela meio que surgiu dessa turma com o Metá Metá, que é um grupo que ela tem, muito legal, com o Kiko Dinucci, compositor, e o Thiago França, que é saxofonista. Gosto do Thiago Pethit. Gosto mais do primeiro disco dele que do segundo e do terceiro – mas esse terceiro está bom também. Gosto muito também, e aí já não sei se é novos paulistas, que é o Terno, do filho do Maurício Pereira. Eles acabam de lançar um segundo disco que é muito legal. E eles são muito cria de rock gaúcho. Conheço o Tim [Bernardes, voz e guitarra] desde que ele tinha 11 anos. Todos os discos de rock gaúcho que eu ganhava na rádio levava pra ele, que sempre gostou muito. Então ele ouviu todos os discos da Cachorro Grande, do Júpiter, Graforréia, Pública. O que é engraçado hoje é que rock virou coisa de tiozão, são poucas bandas de rock… Mas tem duas bandas que acho muito interessantes dessa segunda década do século 21: O Terno e Apanhador Só. Ambas tem essa coisa da invenção, de querer fazer coisas diferentes, que te chamam atenção e pense “oh, um ideia original”. Isso na MPB também é curioso, porque quando a gente começou a fazer música nos anos 80,  minha geração em Porto Alegre era uma geração roqueira. Sou exatamente da mesma geração que o Frank Jorge, que o Júpiter, que o Márcio Petracco, que o Carlo Pianta. Essa é a minha geração, e eu e o Marcelo Delacroix éramos os únicos da MPB – nem sei se dá pra chamar de MPB o que eu fazia, mas enfim… Hoje, essa geração com menos de 30 anos que faz música em Porto Alegre, ela é majoritariamente MPB. Tu pega o Escuta – O Som do Compositor, o Autoral Social Clube, esse grupo de compositores que juntos devem ter, sei lá, umas 40 pessoas, ou mais. Quissá Se Fosse, Carmen Corrêa, o Ian Ramil, que acho o mais legal de todos, e vários outros dessa turma, são todos de MPB e isso é curioso. Sempre brinco com o Marcelo: “pô, a gente nasceu na década errada”. O Marcelo como faz uma MPB mais facilmente identificável como MPB, virou o heroi dessa gurizada. Ele tem tocado com todo mundo. E eu vou nos shows e me queixo, fico com ciúmes. [Risos]

LP: Tem tocado mais com o pessoal do rock, né?

AF: É, toco muito mais com o pessoal do rock. Com o Wander há muito tempo, com o Júlio Reny. Com o Vanguart, agora eles vem de novo a Porto Alegre. Vou produzir o disco solo do Hélinho Flanders.

LP: O que é interessante na tua trajetória é a maneira que busca se aproximar das pessoas que tu admira. Como acontece?

AF: É, o Arrigo [Barnabé], por exemplo, é mais coisa de tiete mesmo. Até nos convidaram pra fazer uma trilha juntos, e acabou não rolando. Mas eu sempre sou muito curioso pelo que está acontecendo, sempre fico querendo procurar os malucos. Viva os malucos! Essa coisa do Vanguart foi em 2006, no projeto Pixinguinha, Arthur de Faria e Seu Conjunto com a Cida Moreira, aí a gente queria botar uma música de uma banda do século 21. Ambos pensaram no Vanguart, e acho que nem tinha o primeiro disco deles ainda, tinha só o Myspace. A Malu [Magalhõs] também, a primeira vez que ouvi ela tinha 30 mil seguidores no Myspace. Duas semanas depois tinha 1 milhão. Aí na ocasião tocamos Semáforo [do Vanguart], e quando fomos tocar em Cuiabá, a família do Hélio foi e o Reginaldo Lincoln, baixista. A partir daí começamos a trocar figurinha, e quando vieram pra cá me chamaram pra tocar com eles. É engraçado porque, pra mim que nunca fui artista de sucesso, nunca tive grande público, nunca toquei no rádio, tu descobrir que determinadas pessoas, com quem tu nunca falou, conhecem o que tu faz, têm um respeito e gostam muito disso, são surpresas que batem. Os guris do Vanguart eram uns assim, que já conheciam. A gente se conheceu aqui, quando vieram tocar e eu entrei no meio da passagem de som. Aí eles fizeram uma festa que eu não estava esperando. Um tempo atrás, também, uma guria veio falar comigo na Feira do Livro: “Olha, sou de Brasília. Estou aqui por causa de um congresso. Nunca imaginei que ia te encontrar”. Perguntei de uma ela conhecia. Respondeu que da cadeira de arranjo do curso da UnB. Esse é um tipo de coisa que me fez desencanar há um ano e meio, mais ou menos. Quando me dei conta que estava trabalhando o tempo todo, fazendo um monte de coisa, tocando muito, fazendo muita trilha, e quase não dando conta de tudo, tendo que dizer uns ‘nãos’. Isso estava, economicamente sendo viável, e tal. E nada disso dependia de público, pois são outros artistas que me contratam. Aí pensei “ah, foda-se. Vai ver é isso, é isso que eu vim fazer”. Então, importa que tu faça um show e não tome prejuízo, mesmo que não seja prum Theatro São Pedro lotado. Que bom que prejuízo não tomo há anos. O Seu Conjunto tem uma coisa muito mágica, não no sentido hippie da palavra, mas os guris acreditam muito no projeto. Se a gente faz um show pra 45 pessoas no Café Fon Fon, ou em Bueno Aires para duas mil pessoas, é a mesma coisa. A alegria é a mesma. E acreditar no projeto, ‘vamo lá, fazer mais um disco’, e a gente não sabe bem se alguém vai comprar, isto também dá um conforto. Não no sentido de reconfortar-se, mas de se sentir na posição de que se eu passo na aprovação dessses cinco malas que eu amo, que são os meus colegas de banda, que não gostam de nada, tá legal! É um nível de exigência muito grande que aprova, e não é fácil montar repertório com eles. Muita música que apresento não entra. Se um não gostar a música não entra no repertório. Então isto tudo dá um conforto artístico de ‘ok, vamo nessa’. Mas é difícil. Teve dois momentos que eu quis parar contudo, parar de fazer música, ou só fazer as coisas das quais eu fosse chamado e muito bem pago. O último foi 2012, eu acho… ou 2013. Aí quando vejo o Adolfo [ Almeida Jr, fagote e flauta] me chama pra tomar um café na casa dele, e vou lá e estão os outros dizendo “bah, que palhaçada, o que é isso? Não podemos estar parado, vamos retomar!”. Então tem essas coisas. O Siba, que é muito amigão também, tem uma frase muito boa que sempre cito: quem não arrisca não se frustra. É uma profissão, que como toda profissão artística, tem um índice de frustração muito grande. Tem que saber e ir administrando isso. Já foi muito mais maluco isso em outras épocas, quando eu era infinitamente mais conhecido em Porto Alegre pelas besteiras que dizia na rádio, e por uns e outros como o cara que fazia coisas legais além das besteiras. Mas pra 80, 90% das pessoas era ‘ah, vocês são uns palhaços’, e não como músico. Hoje isso mudou. A cada cinco pessoas que vem falar comigo, quatro é por causa de música. Mas em vários momentos foi bem difícil de administrar isso, de pensar: “Putz, será que não tô me enganando? Será que faz sentido o que faço? Têm razão os que dizem que tô brincando disso? Ah, tu faz música?”. Porra, faço música desde os 12 anos de idade!

“Nunca achei que fosse encher o Gigantinho. Mas 2 mil pessoas numa cidade desse tamanho, não era querer muito.”

LP: Agora saindo da música e entrando no teu lado escritor. Tu é quase um biógrafo da Elis Regina, né?

AF: É, a biografia da Elis está pronta. Ela vai sair por uma editora daqui de Porto Alegre, chamada Arquipélago, que lança bastante coisas de música. Era pra ter saído agora, no aniversário da Elis [17/03], mas quando o pessoal viu que estava saindo essa outra biografia, lançada pela editora da mãe da neta da Elis, que não é uma biografia chapa-branca, que só fala de coisas legais, mas de qualquer forma é um livro encomendado pela família, e está saindo junto com um site e tudo mais. Então os caras da pequena editora da pequena cidade de Porto Alegre, com o meu consentimento, acharam melhor deixar para o segundo semestre. Ela já está toda revisada, nesse momento os caras estão conseguindo as liberações das fotos. Mas está pronta, o texto entreguei em dezembro. Foram mais de 200 entrevistas. Fui fazendo aos pouquinhos, ao longo de 25 anos. Comecei em 1989 e terminei ano passado. E nesses últimos três anos, trabalhando bastante em cima. Que faz parte de lançar um dia, físico ou não, uma história da música do Rio Grande do Sul, que seria em nove ou dez volumes.Esse da Elis é um dos volumes, e o único que tem tamanho pra isso, pra ser um livro independente. Mas eu to publicando online, devagarinho no site do Sul21. Recentemente entrou o capítulo 14, ao todo são 32. Também agora tenho uma página no facebook que se chama Uma História da Música de Porto Alegre, em que estou postando ali coisas de áudio, texto e vídeo. É um trabalho que é um pouco hobby, um pouco sério. Talvez eu devesse levar mais à sério. Mas isso também significaria dar um foco e ter que parar com muitas coisas de música que eu estou fazendo. Mas o legal disso é que vai gerando desdobramentos, principalmente no cinema e na TV. Eu, o Renê Goya e o Daniel Dode fizemos aquela série 100 Anos de Música, pra TVE, que foi fruto dessas pesquisas. A gente vai editar agora uma versão filme, pra passar no cinema. E tem o filme Espia Só, sobre o Octávio Dutra. Ajudei também o Gustavo Fogaça nos dois filmes sobre a Casa Elétrica, tanto a ficção quanto o documentário. Tem uma ideia de fazer um filme sobre o Lupcínio Rodrigues. Quero muito fazer um filme sobre o Liverpool e o Bixo da Seda.

“Deus ajuda quem dá com alegria”

LP: Nessas pesquisas que tu tem feito sobre música gaúcha, mais especificamente sobre a música regional, o que tu gosta e o que não gosta?

AF: Gostar, é de muito pouca coisa. Dos artistas do século 21, gosto do César Oliveira e Rogério Melo, pela coisa bagualuda e pelo suingue daquela banda, que é impressionante, e por estarem alheios a toda essa coisa da tchê music. Gosto muito da turma do Pirisca Grecco. E, sei lá, do Estado das Coisas, que acho que agora o trabalho deles amadureceu mesmo, com o Rock de Galpão. Mas eu acho tudo muito careta, como eu conheço muito da música folclórica que se faz na Argentina e no Uruguai. E na Argentina hoje os artistas mais interessantes são os que, de alguma forma, trabalham com essa música regional, que é a mesma que a nossa, mas de uma forma muito arejada, misturado com jazz, com pop, com eletrônica. Aqui está muito atrás. Isso eu falando como artista. Agora falando sobre cara que escreve sobre, não interessa se eu goste ou não. Uma das coisas que menos gosto na vida é do Teixeirinha, e um dos capítulos do livro é sobre o Teixeirinha e, obviamente, não falo mal dele, porque o livro não tem que falar bem ou mal dele. Só contar o que acontece. Eu também tive a honra, o privilégio e a alegria de conviver muitas vezes com o Paixão Côrtes. Infelizmente não conheci o Barbosa Lessa, que é um cara que acho encantador, li muita coisa dele. Eles são uns caras muito mais inteligentes e interessantes do que resultou aquilo que eles começaram. Tanto que eles não gostam disso. Esse capítulo que estou escrevendo agora é bem delicado, estou escrevendo sem colocar nada na minha boca, usando muita entrevista e muitos depoimentos. E o Paixão é um cara muito crítico em relação a isso tudo. Inclusive devo ir na casa dele essa semana ou semana que vem, conversar mais um pouco. Porque isso tudo virou uma grande industria, e na década de 60 e 70, ficou muito ligado à Brigada Militar, aos militares e foi pegando uma coisa muito direitista, que não era a ideia original deles. E uma burrice que exclui, por exemple, o cara que levou a milonga pro mundo, o Vítor Ramil. Os caras não querem nem saber da existência do Vitor Ramil. Quem é um outro cara que faz um trabalho também profundo sobre milonga e não querem nem saber dele? Bebeto Alves. O Quartchêto teve reunião pra decidir se poderiam tocar em CTG, e decidiram que não, e os caras fizeram três turnês nacionais já. O Borghetti só consegue escapar disso, primeiro porque ele não precisa, segundo que ele é filho do Borghettão, que é do movimento tradicionalista. Mas teve reunião pra mandar o Renato [Borghetti] cortar o cabelo, por exemplo. Então esse tipo de coisa que engessa e mata o que teoricamente deveria proteger, pra mim é muito maluco. Mas é coisa de gaúcho mesmo, essa coisa autofágica. Se eu acreditasse em astrologia, como já acreditei, diria que o gauchismo é do signo de escorpião, porque está sempre se auto sabotando, paranoico. Pô, eu componho milonga, componho chamamé… acho uma puta sacanagem os caras se adonarem disso. Ter uma Amigo Punk, quando poderia ter um monte de grupos usando a música regional sem ter nenhuma preocupação com isso, como tem no Recife, como tem no Rio de Janeiro, os caras com o samba, e aqui não tem. É como se o cara pra tocar samba precisasse estar vestido de malando, camisa listrada, chapéu branco e sapato branco. Ou pra tocar maracatu tivesse que estar vestido de maracatu. O Paixão já falou exatamente isso, sobre as pessoas que se fantasiam de gaúcho. Ano passado eu era um dos dois extraterrestres fazendo show no festival Argentino de Cultura, era eu e um uruguaio. Uma das noites tinha um show magnífico que a Liliana Herrero organizou, que era com artistas de todas as províncias da Argentina. Estávamos todo mundo no mesmo hotel, e os caras que no dia-a-dia estavam pilchados, subiram ao palco com uma pilcha bacana, bonita. Os caras que andavam sem pilcha, subiram para o show sem pilcha, normalmente. Todos tocavam milonga, chacarera, ninguém estava fantasiado de uma coisa que não era. O Renato [Borghetti] passa o dia inteiro de bombacha. O Neto [Fagundes] passa o dia inteiro de bombacha, são caras que fazem o maior sentido pra mim. Mas tem muita gente que se fantasia da coisa. E é a única industria que ainda gera muito dinheiro no Rio Grande do Sul, portanto tem muito interesse nisso.

LP: Fora da musica tradicionalista, por exemplo, tu acha que o termo rock gaúcho atrapalha?

AF: Não sei se atrapalha. Fiquei sabendo que tem várias novas bandas de rock gaúcho no ABC paulista. Novas, que dizem que fazem rock gaúcho.Em duas entrevistas que fiz com o IRA!, em ambas o [Edgard] Scandurra me disse que o IRA! era uma banda de rock gaúcho. Então ao mesmo tempo que acho que pode ser redutor para os artistas daqui, pois se tu pega os que fizeram sucesso fora daqui, como Engenheiros, Nenhum de Nós e Papas da Língua, nenhum é o que se considera como rock gaúcho. Wander é, Júpiter é, mas aí são sucessos de culto. Quando tu fala em rock gaúcho não pensa em uma música misturada com ritmos regionalista. Pensa em uma coisa meio mod, meio anos 60, misturado com brega, com humor. Acho que é um estilo. Nem todo rock que se faz no Rio Grande do Sul é rock gaúcho, é um subgênero. O que me incomoda nessa coisa da gauchada é se achar melhor que os outros, isso nos prejudica muito. Achar que o Rio Grande do Sul é melhor que os outros, nos prejudica muito mais que nos ajuda. Isso é muito psicanalítica, rasteiramente psicanalística do te sentir inferior e querer te sentir superior gritando pra fora que tu é superior. O Paixão já me disse isso em uma entrevista. Quando começaram o movimento tradicionalista é porque os gaúchos estavam em baixa, ele queria que os gaúchos tivessem orgulho do que fazem, se sentissem parte do Brasil e tão bom quanto o resto dos brasileiros. Não era pra se sentir melhor, nem fora do Brasil. Em algum momento isso perdeu a medida.

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2 Comments

  1. Luís Augusto Fischer

    Muito tri a entrevista. Tem umas sujeirinhas de revisão, mas não importa. Parabéns.

  2. Legal. Estamos nos devendo mesmo um filme sobre o Liverpool e o Bixo da Seda, e acho que só o Arthur poderá relizá-lo.

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