Rubber Soul: 50 anos do disco que mudou os Beatles

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Carlos García

Mais de 500 mil pessoas já tinham encomendado o Rubber Soul, naquele 3 de dezembro de 1965 em que ele chegou às lojas inglesas. Era o sexto discos dos Beatles que estava sendo lançado. Não importava que aquele fosse o segundo álbum que a banda havia gravado naquele mesmo ano, a beatlemania estava no auge e todos queriam ouvir as novas músicas de amor dos reis do ieieiê. O que os fãs ainda não sabiam é que os Beatles estavam entrando numa fase em que o amor adolescente começava a ceder espaço para temas mais aprofundados e o ieieiê seria substituído por sons mais complexos e experimentais. O Rubber Soul é o disco que marca essa transição.

Quando entraram em estúdio para gravar Rubber Soul, os besouros vinham de uma maratona de cinco discos gravados e mais de 350 shows, desde quando lançaram Please me, please me dois anos antes. Só naquele ano de 1965, além de quase 50 apresentações ao vivo, gravaram o disco e o filme Help!. Tudo indicava, portanto, que o disco lançado em dezembro seria apenas mais uma demanda comercial do grupo. Não era. A produção do disco era o pontapé inicial para a fase mais artística do fab four.

“Ele foi um dos primeiros álbuns que as pessoas começaram a dar mais importância para um álbum do que para um single”, destaca Beto Bruno, vocalista da Cachorro Grande. No mesmo sentido, o lendário produtor da banda George Martin afirmou que o álbum foi o primeiro que apresentou um novo Beatles para o mundo. “Até este ponto, nós vínhamos fazendo álbuns que eram um pouco como uma coleção de singles e agora nós realmente estávamos começando a pensar em álbuns como arte propriamente. Nós estávamos pensando no álbum como uma entidade própria e Rubber Soul foi o primeiro a surgir desta forma”, explica Martin em entrevista publicada no The Beatles: off the record, de Keith Badman.

Ainda que os Beatles não tivessem atingindo de todo a maturidade mostrada em Revolver, em Rubber Soul já aparecem muitas pistas do que viria a seguir. Experimentos com novos instrumentos, novos efeitos, a inserção de uma temática nova nas letras, tudo isso eram indícios de que a fase inocente do ieieiê começava a ficar para trás.

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“Há um tom brincalhão em Rubber Soul que começa no jogo de palavras do título até os beep beeps e tit tits dos backing vocals. Na época, Paul [McCartney] disse explicitamente que os Beatles estavam interssados em canções bem humoradas, e tanto Drive my car, com sua inversão de papéis, e Norwegian wood, com sua cena de sedução inocente, se encaixavam nesta categoria”, diz o escritor Steve Turner, no livro The Beatles: a história por trás de todas as canções.


Se, por um lado, a banda tinha a intensão de que o disco fosse bem humorado, por outro, obteve um certo tom filosófico no resultado. Nowhere man é a faixa que melhor identifica essa ideia. Ela pode ser considerada a primeira música dos Beatles que não tem o amor como tema central. E isso, por si só, já é uma quebra significativa na linearidade do trabalho que vinha sendo feito até então. Sua letra fala de um homem completamente perdido e deslocado. John Lennon revelou que o personagem retratado na canção era um reflexo dele mesmo.

Esgotado com a pressão por compor rápido e não querendo escrever qualquer letra superficial, sentiu-se o nowhere man sitting in his nowhere land, ou seja, o homem de lugar nenhum sentado na terra de ninguém. Daí uma inspiração verdadeira para compor.

O álbum também pode ser considerado o primeiro passo para todo o movimento da segunda metade dos anos 60, como explica Beto Bruno. “Ele é o primeiro disco com alusão à drogas na história. E o que foi a segunda parte dos anos sessenta?, o flower power?, tudo sobre o LSD e a maconha?, e esse é o disco que deixa bem claro que eles estão usando [drogas] porque as letras já estão ficando surreais, Girl, Norwegian wood, sabe?, eles não estão falando mais ela te ama, quero pegar na sua mão… foi um disco chocante”.

Leia a entrevista completa com Beto Bruno

O grupo estava, realmente, enveredando para um outro caminho como mostra a faixa The word. Ela até fala de amor, sim, mas sob uma ótica diferente. A palavra, diz John, é o amor. Ele usa o termo a palavra no sentido de pregação religiosa, mas claro que de forma subvertida. Era uma prévia clara da conceituação de paz e amor que surgiria logo em seguida com a geração hippie. Também é uma mostra de que John como compositor estava começando a mudar. Suas preocupações referentes aos problemas conjugais e vida doméstica começam a dar espaço para sua luta por um mundo melhor.

O amadurecimento da banda também passa por Paul e sua vida amorosa. Naquele período, o baixista estava vivendo uma das tantas crises no relacionamento com a atriz Jane Asher. Foi a primeira vez que ficaram afastados. A distância teria inspirado Paul a expor seus verdadeiros sentimentos nas letras em que estava escrevendo. Daí surgiram músicas como You wont see me e I’m looking through you. Ao observar o momento em que Paul estava vivendo, fica na cara que as duas canções eram recados endereçados diretamente à Jane Asher. Ao abrir o coração, o beetle começa a construir um caminho que o conduzirá a obra prima Here there and everywhere, no disco seguinte.

A evolução que se percebe em Rubber Soul também se dá na sonoridade. George Harrison declarou que aquele foi um momento em que eles estavam conhecendo sons que nunca tinham ouvido antes. Ele mesmo apareceu com um instrumento novo, ou, ao menos, pouco conhecido no ocidente e no mundo pop. Era o sitar, instrumento de cordas indiano que o beatle conheceu e se encantou durante as gravações do filme Help! nas Bahamas. Norwegian wood foi a faixa que ganhou o toque indiano no seu arranjo. George teve aulas com o músico indiano Ravi Shankar e seu sitar foi usado em várias músicas nos discos seguintes.

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O fuzz bass também foi uma das novidades que apareceram no álbum. O efeito distorcido no baixo de Paul deixou Think for yourself sutilmente mais pesada. O timbre entrou para a história como uma das marcas registradas do rock dos anos sessenta. Mas até que aparecesse na música em que George se lamenta por uma guria, o fuzz pouco havia sido usado para melhorar o timbre de um baixo.

E quase que o fuzz também aparece em outra música do álbum. No registro de Girl, George chegou a gravar uma guitarra com o mesmo pedal utilizado no baixo de Paul em Think for yourself. A gravação, porém, ficou de fora na mixagem final. Por outro lado, a música ganhou um outro efeito marcante e ainda diferenciado para a época. É aquele ssssssss que se escuta no refrão. John queria mostrar o quanto os sentimentos expressos na música eram íntimos. Pensou que o som da sua respiração poderia transmitir o que queria passar. Para tanto, quis que a sensibilidade do microfone em que gravou a voz fosse aumentada ao máximo. Mas o beatle só obteve o que queria quando entendeu que o melhor seria mostrar sua perda de fôlego. Conversou com o técnico de áudio do estúdio, que conseguiu, finalmente, produzir o som que se ouve em Girl.

Essa tentativa dos Beatles de inserir elementos novos contrasta com a influência pela música contemporânea a eles. Ainda em Girl, foi buscada inspiração nos Beach Boys. O próprio Paul revelou que os tit tit tits da música é uma variação dos la la las conhecidos nas músicas da banda do Brian Wilson. E tiveram que convencer George Martin de que eles estavam cantando dit e não tit, que quer dizer teta. Até mesmo o beep beep yeah de Drive my car parece ser uma tentativa de manter vivo o uso do yeah nas músicas. O escritor Steve Turner lembra que em You won’t see me, a ideia de Paul foi fazer algo próximo ao som da Motown. Essa integração com a cultura pop da época mostra que o álbum não representa uma quebra brusca, mas uma transição suave para a segunda fase da banda.

O período para registrar as 12 faixas do Rubber Soul foi relativamente curto. O quarteto entrou no estúdio Abbey Road em 12 de outubro. O trabalho deveria estar pronto em dezembro, antes do início da turnê de natal que fariam. O trabalho foi rápido e preciso. Entre 11 e 12 de novembro, eles participaram da última sessão de gravação do disco. Chegaram no estúdio às 9h da manhã para gravar as três músicas que faltavam para completar o trabalho. Só saíram de lá às 4h da madrugada, depois de, finalmente, registrar os últimos overdubs de Girl. Nos dias seguintes, George Martin cuidou dos ajustes finais de produção e, em 3 de dezembro, o álbum já estava nas vitrines e prateleiras das lojas ingleses.

Além das músicas para o Rubber Soul, os besouros também tiveram que gravar, naquele período de um mês, as duas faixas que integram o compacto lançado no mesmo 3 de dezembro. O disquinho trazia, no lado A, Day tripper, e, no lado B, We can work it out. Embora tenham sido lançadas em material separado, as duas músicas têm as mesmas ideias e novidades das principais faixas do long play. We can work it out segue a linha daquelas canções em que Paul expressa com sinceridade seu lado sentimental. Day Tripper, mesmo ficando de fora, é mais Rubber Soul do que muitas outras músicas que fazem parte do disco. Inovadora e ousada. Trata-se de uma música com clara alusão às drogas e é estruturada por um riff que seria imitado por todas as bandas de rock que vieram depois.

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Passados 50 anos desde aquele final de 1965, o disco permanece absolutamente atual, como diz Dé Silveira, guitarrista da Cartolas, que ressalva detalhes da produção, natural para a tecnologia da época. “Os timbres dele são claramente antigos, a gravação geral. Acho que os arranjos são atuais, tudo funciona, só a timbragem que, claro, não tem como não ver que é uma coisa dos anos sessenta. Mas o disco é muito foda. Que álbum!”.

“Só de pensar que o Rubber Soul marca essa fase mais legal dos Beatles. A minha própria carreira musical se influenciou totalmente por isso, imagina quantas bandas pensam assim, provavelmente todas as bandas do mundo que ouviram Beatles devem pensar o álbum especificamente como revolucionário. Fico pensando como isso mudou a minha vida”. Dé Silveira, da Cartolas.

Não foi só na sonoridade que o Rubber Soul apresentou novidades. A capa do disco teria sido a primeira em que os Beatles influenciaram na criação. A participação aconteceu meio que por acaso, mas aconteceu. E tudo se deu após a sessão de fotos, realizada pelo fotógrafo Robert Freeman, para a capa do disco. As imagens estavam sendo projetadas em uma cartolina que simulava uma capa de LP em tamanho real. Lá pelas tantas, a cartolina ficou um pouco inclinada, dando o efeito distorcido que se vê na capa do álbum. Eles adoraram e perguntaram para o fotógrafo se tinha como reproduzir o efeito na capa. Como se vê, teve, sim, como reproduzir.

Daí surge uma das possíveis histórias para o nome do disco. Ao concordar com a ideia, o fotógrafo teria dito que aquele esticamento representava a alma de borracha, no inglês rubber soul, dos Beatles. A outra versão conta que o título é uma variação do termo plastic soul, ou seja, alma de plástico. Os velhos negros do blues chamavam assim os brancos que se aventuravam a interpretar o estilo músical de Robert Jonhson. Paul teria lido algo em que um velho bluseiro declarou que os Rolling Stones até eram bons, mas tinham a alma de plástico. E, se os Stones tinham a alma de plástico, os Beatles tinham a alma de borracha.

O Rubber Soul segue até hoje arrebatando a gurizada. Há 50 anos, o rock não tinha atingido musicalmente sua maturidade. E o sexto disco dos Beatles, com suas novidades e experimentações, foi decisivo para que o rock atingisse o auge, poucos anos depois, com os próprios Beatles. O álbum foi, naquela época, e ainda é surpreendente para quem o escuta pela primeira vez. É uma parada obrigatória para quem quer viajar pelo mundo da música.

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