Uma conversa com Dilan Camargo, patrono da 61° Feira do Livro de Porto Alegre

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Dilan Camargo logo após a cerimônia em que recebeu o posto de patrono da Feira do Livro. Foto: Luis Ventura

Luiz Paulo Teló

No último dia 1° de outubro, a Câmara Riograndense do Livro nomeou o escritor, compositor e poeta Dilan Camargo como patrono da 61ª Feira do Livro de Porto Alegre, que será realizada entre os dias 30 de outubro e 15 de novembro. Ele já havia sido indicado também em 2012. A lista de patronáveis deste ano era composta também pela jornalista e escritora Cíntia Moscovich, a escritora Maria Carpi, o cartunista Santiago e a escritora Valesca de Assis.

Nesta entrevista exclusiva ao Culturíssima, Dilan Camargo, autor de obras infantis como Um Caramelo Amarelo Camarada, Álbum da Fé-Li-Cidade II e Rimas pra Cima, contou sobre a honra de ser o patrono de uma das feiras literárias mais importantes do Brasil. Mas fomos além: o escritor natural da cidade de Itaqui relembrou os tempos de faculdade, quando se formou em direito em Santa Maria e, ali, decidiu que seria um escritor. Além disso, visitou episódios importantes da sua trajetória, como a fundação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES).

Culturíssima: Você já havia sido indicado a Patrono da Feira em 2012. Este ano estava mais confiante?

Dilan Camargo: Recebi esta segunda indicação com o mesmo sentimento da primeira. Ser indicado como patronável junto com nomes expressivos da nossa literatura já é uma distinção que equivale a um prêmio. A torcida de amigos, entretanto,foi bem maior e isso me deu muita alegria. Quem confiava na minha escolha, em razão da sua incrível intuição, era a minha esposa Magda. Por isso ela estava junto comigo no momento do anúncio. Devo também a ela essa escolha pelo apoio, incentivo e companheirismo de sempre.  Ela vibrou muito e ganhei dela um beijo inesquecível.

Culturíssima: Você já foi patrono de diversas feiras pelo interior do estado, mas a Feira do Livro de Porto Alegre tem um significado especial?

Dilan Camargo: Sim, já tive a honra e a alegria de ser escolhido patrono de inúmeras feiras que divulgam e promovem o livro e a leitura nas suas comunidades, algumas em pequenas cidades do nosso interior. Elas são até mais necessárias porque oportunizam às pessoas uma aproximação com a produção literária que circula em grandes centros com maior atividade cultural. São ainda muito importantes para as nossas crianças e jovens, quando muitos vão ter contato com os livros pela primeira vez. Agora, ser o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, uma das mais antigas e representativas do mundo do livro em nosso país, tem a marca de um reconhecimento marcante  pela sua abrangência e convivência literária que propicia. É uma honra para todo escritor estar incluído entre nomes fundadores, recriadores e representativos da nossa melhor história literária.

Culturíssima: E qual você entende ser a principal função de um patrono? Como você planeja seu patronato?

Dilan: Penso que a primeira função de um patrono é a de representar os escritores no contexto da feira, com a dignidade que a condição de artistas da palavra e de intelectuais que os escritores merecem. Vou me dedicar a chamar, a convidar e a motivar a comunidade portoalegrense, como também as pessoas de todo estado, para irem à feira, visitarem as bancas, conversarem com os livreiros em busca de informações sobre livros, participarem das várias atividades programadas. Vou insistir  na necessidade das famílias assumirem de modo insubstituível o seu dever de apresentar e valorizar o livro e a leitura para os seus filhos. A respeito disso, estou lançando nesta feira um novo livro para as crianças A família Livro. Todos os membros de uma família, além de tias e madrinhas, precisam agir como mediadores entre as crianças e os livros. Vou chamar a atenção sobre a urgente necessidade de oferecermos formação e habilitação para as professoras atuarem como mediadoras de leitura em nossas escolas. As bibliotecas escolares estão razoavelmente abastecidas por programas públicos de aquisição e distribuição de acervos literários qualificados. Os livros precisam estar à disposição dos alunos e as bibliotecas devem ser ambientes de leitura viva. Além da Hora do Conto precisamos criar também  o Recreio da Poesia. As crianças precisam ler ou que leiam para elas todos os dias, em casa e na escola.

Cultruríssima: A literatura infantil é uma das tuas bandeiras. Como é pensar a escrita para esse público?

Dilan: Costumo dizer que sou um pequeno escritor de pequenos leitores. Já escrevi poesias para adultos, jovens e crianças. Comecei escrevendo livros de poesia para adultos. Nesta feira vou relançar uma nova edição, revista, do livro de poemas para adultos A fala de Adão. Escrever para o público infantil é um desafio e uma responsabilidade. Mas também uma alegria indizível pelo retorno das crianças. Sou muito escrupuloso a esse respeito. Antes de tudo, como adulto, e são os adultos que escrevem para crianças, tenho um grande respeito pela infância. Sou homem, adulto, pai, avô, tio, padrinho,  respeito a infância e brigo para que a respeitem. Concebo a escrita para as crianças como um exercício literário lúdico. Como escrevo poesia, posso exercer amplamente essa condição. A boa literatura infantil evita o pedagogismo que era próprio de épocas passadas, como por exemplo, escrever um poema para ensinar uma criança a escovar os dentes. Embora isso possa ser útil, não é literatura. É o uso instrumental da linguagem. Não é poesia. Na minha escrita, me esforço para escrever literariamente sobre todos os temas, dentro do universo de vivência e de capacidade cognitiva das crianças, respeitando sempre a estatura moral e psicológica que um adulto deve manter em relação às crianças e ao seu mundo infantil. O mundo adulto está invadindo de modo agressivo, covarde e oportunista o mundo da infância. As crianças merecem boa literatura, boa música, boas roupas,enfim, mas, para crianças. Por favor, não toquem Anita em festas de crianças.

BrincCriar, vencedor do Açorianos de Literatura Infantil

BrincCriar, vencedor do Açorianos de Literatura Infantil

Culturíssima: Você procura se inteirar de novas tecnologias, como os e-books, e pensar a tua produção para outras plataformas?

Dilan: Como escritor ainda não, mas como leitor, sim. Ainda escrevo pensando e projetando a leitura do que escrevo em livro, o livro de papel, tinta e ilustrações, que as crianças podem manusear. A energia necessária para o livro “funcionar” é a própria energia humana. O leitor de um livro sempre vive uma experiência estética  mais intensa e complexa daquela quando, por exemplo, um romance é adaptado para um filme. Penso mesmo que, para as crianças, o objeto livro ainda é necessário e importante. Não sou dos que se opõem ao uso de outras plataformas de leitura e de interação das crianças com histórias ou com a poesia. Vivemos uma era em que predomina a cultura da imagem e do áudio-visual. Isto é um fato. Mas acredito que o livro pode e deve conviver de modo transversal com todas estas formas de expressão e de leitura do nosso mundo interior e do vasto mundo exterior. As tecnologias nos oferecem uma versão pronta e acaba de uma história enquanto que através da leitura o leitor é quem recria a história, os cenários, os personagens, através das imagens criadas por sua própria imaginação. Esse é o momento em que a palavra se torna viva e não representada por algo ou alguém distante de nós mesmos. Esta experiência é única e intransferível. E nisso consiste a profunda experiência estética, quando atingimos a estesia, o sentimento do que é belo. Estou aberto para a veiculação do que escrevo em outras plataformas. Falando nisso, há um espetáculo de músicas para crianças Cantos de linho e de lã, com canções a partir de poesias que publiquei para a criançada.

Culturíssima: Além de você e do Santiago, três mulheres concorriam ao posto de maior representatividade da Feira do Livro este ano. Até hoje apenas quatro mulheres ocuparam esse cargo. A que você atribui essa baixa representatividade?

Dilan: Se não me engano, essas escritoras foram a Maria Dinorah, a Patrícia Bins, a Lya Luft  e a Jane Tutikian. Convivi e convivo com elas e admiro a sua literatura, com elas próprias, suas pessoas. Não pode haver dúvidas de que isso se deve, ainda, ao machismo que predomina em todos os segmentos da nossa sociedade, embora o admirável movimento das mulheres com o seu protagonismo libertário em todos os níveis da sociedade. Então, não seria diferente na literatura, infelizmente. Entre as indicações estava a Maria Carpi, extraordinária poeta, minha querida amiga, uma senhora escritora. Estava também a Cintia Moscovich, escritora premiadíssima. É bom lembrar que o Prêmio Nobel de Literatura, nestes dois últimos anos, foi atribuído a duas mulheres, e entre elas, uma poeta maravilhosa. Estamos a caminho,mas precisamos avançar.

Cultíssima: Como é o livro que você  vai lançar nesta Feiro da Livro?

Dilan: Vou lançar um livro novo destinado ao público infantil, e vem bem a calhar, já que é em uma feira do livro. Vinha há tempos escrevendo e surgiu essa oportunidade de lançar  agora, que chama-se A Família Livro. Cada elemento que compõe o livro, desde a capa, a letra, os capítulos, o índice, todos eles eu transformo em personagens de uma família, que entra também o leitor, a bibliotecária, o livreiro e todo esse contexto de pessoas que vivem e trabalham em torno do livro.

Culturíssima: Você é formado em direito e já foi até professor universitário. Em que momento a literatura de ficção, lúdica, se encontra com a forma de escrever toda particular da linguagem do direito?

Dilan: Foi um trabalho imenso para fazer essa migração. O direito tem aquela linguagem formal, técnica, precisa, embora dê uma possibilidade ampla de leitura, pois ele trata do mundo, desde o aspecto psicológico do ser humano até os aspectos sociológicos dos mais violentos, como o crime. Também fiz mestrado em Ciência Política, minha dissertação foi sobre um período histórico do Rio Grand do Sul, o Estado Novo, e meu grande desejo era escrever literatura. Eu tive que fazer um esforço enorme para começar a migrar de linguagem, da denotativa para a conotativa. Acho que ainda estou trabalhando esse lado e lutando contra certa objetividade exagerada da língua através do cacoete da formação profissional.

Culturíssima: Desde muito jovem você esteve ligado a produções intelectuais. Como você decidiu que ia ser um escritor?

Dilan: Me lembro exatamente o momento. Desde o meu tempo na cidade de Uruguaiana, com 14 ou 15 anos, eu já vinha fazendo jornal impresso com amigos, em tipografia. Olha a maluquice da gente! O jornal chamava-se Gente Nova. Fazia também programa de rádio, e tinha que ir aos comerciantes da cidade convencer a botar anúncio no programa e comprar o espaço na rádio São Miguel de Uruguaiana. Naquela coragem juvenil, já exerci também o papel de repórter de rua, no carnaval. Tenho até hoje guardada a minha carteirinha para cobrir a festa.

Na universidade fizemos vários jornais também. Alguns mau entendidos, porque na época da ditadura qualquer palavra poderia sugerir subversão. Fiz minha graduação na faculdade de Santa Maria, morei na Casa do Estudante, entrei lá com a roupa do corpo, uma sacola e um colchão nas costas. Lá, fizemos um jornal que chamava-se O Chú. A gente brincava dizendo que o que salvava o jornal era o ‘H’. Aí fomos chamados na direção para nos explicar, porque tinha chegado uma denúncia que nós estávamos fazendo um jornal em homenagem, com mensagem subliminar, ao primeiro ministro da China Comunista Chu En-Lai [risos]. A gente nem sentia medo, pois queríamos fazer e azar! Teve outro que foi caçado também, que era o Língua de Trapo. Aí criamos um que ninguém dava bola, era bem simplesinho, que se chamava Piripiri.

Então sempre tive essas atividades relacionadas à escrita, escrevia letras de música, poesias. E meu colega de aula, hoje é advogado, lia muito, conhecia tudo que era literatura. Mostrei os meus poemas para ele e ele me disse as palavras que eu lembro até hoje: “Dilan existe dois tipos de poeta. Um é aquele que gosta de ler e recitar poemas. Esse sou eu. Agora, tem o poeta que escreve a poesia que a gente lê e recita, e tu pode ser um deles”. Aquilo foi quase um ritual de empoderamento. Aí fui para a Biblioteca Pública de Santa Maria e perguntei onde era a estante da poesia. Daí eu li poesia por metro! Lá eu descobri a Cecília Meireles, dentro da poesia para adulto, e depois quando fui fazer esse caminho de escrever para criança, também descobri a Cecilia Meireles com Ou Isto Ou Aquilo, que é o clássico fundador da poesia para criança no Brasil.

Culturíssima: Em 1981 você ajuda a fundar a Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Que contexto levou vocês a este movimento de criar uma associação?

Dilan: Eu cheguei em Porto Alegre em 1975, e me integrei logo com vários artistas e intelectuais, uns pertencentes a algumas organizações partidárias. Eu estava no antigo MDB, que era o guarda-chuva da oposição no Brasil, um espaço de legalidade na ditadura militar. Conheci grandes amigos ali, como o Carlos Carvalho, que hoje dá nome à sala de Teatro da Casa de Cultura Mário Quintana. Era um contista maravilhoso, um dramaturgo, diretor de teatro, e um homem engajado política e culturalmente, mais do que eu. Aprendi muito com ele na convivência diária. Começamos a espécie de um fórum cultural, com várias pessoas das artes plásticas, músicos, escritores, artistas de um modo geral, e criamos um movimento em defesa da cultura. Organizamos vários eventos, várias atividades. Na Assembleia Legislativa tinha o  Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais, dirigido pelo André Forster, sociólogo, em que nós trouxemos inclusive o Eduardo Galeano. Eu que fui receber ele no aeroporto, porque dizia que conhecia ele. Era mentira, queria era receber ele! Recebemos na época também o sociólogo Fernando Cardoso, que acabou sendo o presidente FHC. Recebemos o [Gianfrancesco] Guarnieri, da clássica peça de teatro  Eles não usam black-tie.

Então o contexto era esse, de repressão, de movimento estudantil dilacerado, e nós começamos todo um trabalho de aglutinação de pessoas para reorganizar a sociedade civil e entidades. Foi um momento que achamos importante fundar a AGES, e também criar – o que é algo admirado no RS – essa consciência profissional do escritor. É uma consicência que é preciso ter em todas as áreas do exercício cultural e artístico. O bem cultural é considerado de segunda categoria, e as pessoas torcem o nariz para pagar e contar com ele, enquanto pagam qualquer preço por qualquer bugiganga sem problema nenhum. Querem que o artista dê o livro, dê o CD, mas eles não vão na porta da churrascaria pedir o rodízio de graça, que é mais caro que um livro. O desprezo ao bem cultural na classe média brasileira é terrível, um absurdo, obscurantista, e nós temos que combater sempre. Então os escritores se organizaram e, além de ter uma trincheira para a gente se manifestar, também para criar uma consciência sobre o valor do bem cultural produzido intelectualmente. Os atos culturais se transformavam em atos políticos. Nós criamos também nesta época uma cooperativa de escritores, publicamos um livro de poesia em 1976 chamado Em Mãos, que já está no seu terceiro volume hoje. Estamos todos velhos, de cabelos brancos. Éramos uns guris barbudos, e o livro íamos entregar de mão em mão. Éramos seis poetas: César Pereira, Humberto Zanatta, José Eduardo Degrazia, Selvino Heck, Umberto Guaspari Sudbrack e eu. Na época, o único cara que nos entrevistou, e isto é fantástico, já mostra a grandeza dele, foi o Caio Fernando de Abreu, na Folha da Tarde. O lançamento foi na livraria Coletânea, que era no Mercado Público, e lá fizemos autógrafo para 300 pessoas. Hoje quem faz isso são só os autores de massa. A gente se definia como Grupo Vereda.

Ata disponível em http://www.ages.org.br/pdf/ATAdeFundacao.pdf

Ata disponível em aqui

Culturíssima: Em um breve período entre 2002 e 2003 você foi secretário adjunto da Secretaria de Cultura do RS. A partir desta experiência, o que você acha que o poder público pode fazer pela cultura?

Dilan: É complicado, fiquei pouco tempo e não me dei bem. Não gostei da experiência. Aparantemente parece que pode tudo, mas não pode. Há limitações de toda natureza, limitações orçamentarias, como agora estamos vendo. O atual secretário de cultura [Victor Hugo] é um amigo meu, cantou músicas minhas, e sempre converso com eles sobre as dificuldades e a crise fiscal que passa o estado brasileiro. Há um certo gigantismo do estado que prejudica. Nós temos uma série de bibliotecas desassistidas, em um sistema que poderia ser unificado. Como esse país tem a maldita da corrupção, se criaram as leis mais rígidas possíveis para evitar que se gaste 1000 reais a mais, ou 200 reais, e a burocracia acaba amarrando a atividade dos pequenos gestores. Se uma prefeitura vai me convidar para dar palestra em uma escola, em uma feira do livro, tenho que apresentar um diploma universitário para provar que eu sou capaz de dar uma palestra, quando o meu nome está publicado em 10, 20 livros. A burocracia joga a não fazer. Tudo é não: não dá, não pode, não passa.

O estado não pode ditar cultura nenhuma, ele tem que apoiar. Quem faz a cultura é a sociedade, com liberdade absoluta ao criador. Cada um que exerça com a sua responsabilidade ao nível que lhe couber e a consciência que lhe tiver. O estado tem que ser um promotor. Tem que sustentar museu, bibliotecas, isso sim. Mas aqui, infelizmente não é como nos EUA. Lá os grandes milionários doam dinheiro para construir uma biblioteca pública. Aqui os milionários roubam mais do estado brasileiro. Quantos profissionais se formam nas universidades públicas e não dão uma retribuição para a sociedade, e ainda ficam brigando por mais privilégios? Então as nossas distorções são muito grandes. Se o poder público não atrapalhar, não interferir e não censurar, já faz muita coisa. Conheço muitas pessoas que fazem muita coisa sem nenhum apoio público, mas fazem cultura. O artista não pode ler regulamento para fazer arte, nem se submeter a oficialismo ou paternalismo.

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