Uma entrevista com o jornalista e escritor Rafael Guimaraens

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Foto: Leonardo Vieceli

Luiz Paulo Teló

Poucas pessoas conhecem a história de Porto Alegre como Rafael Guimaraens, escritor e jornalista que, há quase 20 anos, pilota a editora Libretos ao lado de sua esposa Clô Barcellos. Entre seus livros lançados, estão A Enchente de 41 (2009) e Águas do Guaíba (2015). Ambos servem para ilustrar a relação da capital gaúcha com seu maior cartão postal: algo sempre um tanto conflituoso.

Rafael nos falou o que acha sobre esse momento de intensa discussão em torno da revitalização da orla e sobre a importância de coletivos como Cais Mauá de Todos. O autor também nos revelou a história que mais gostou de contar, que resultou no livro Tragédia da Rua da Praia. A narrativa remonta um assalto que movimentou Porto Alegre em 1911.

Para completar o papo, falamos sobre a história da Libretos, o mercado da cultura e as vontades de Rafael como escritor em seus próximos trabalhos. Confira:

Culturíssima: Você lançou recentemente o livro Águas do Guaíba e em 2009 A Enchente de 41. Esse 2015 foi de intensa discussão quanto ao Cais, ao muro da Mauá, tivemos também uma cheia histórica. Te agrada o rumo que as coisas estão tomando naquela região?

Rafael Guimaraens: Não agrada. Quando eu era menino, não existia o muro, então já sou de uma geração em que se podia fruir mais daquela área do cais, que é uma área muito preciosa da cidade. A gente gostava muito de ir lá, o pai nos levava para ver os navios. Era uma coisa muito forte pra gente, porque a cidade nasceu dali, e todo aquele astral, aqueles armazéns com telhados em forma de triangulo, que complementam a paisagem junto com a Usina, é uma coisa que diferencia Porto Alegre, é uma coisa muito marcante para a cidade. Por ali começou a colonização da cidade, o cais trouxe não só o desenvolvimento econômico, mas os navios traziam livros, jornais, personalidades que vinham a Porto Alegre enriquecer a nossa visão de mundo e nossa cultura. O cais tem toda essa simbologia.

Bom, chegamos a esse estágio, em que primeiro se colocou um muro, que está dentro de uma relação muito complicada da cidade com o Guaíba. Isso tem a ver com aquela grande enchente de 41, embora o muro só tenha sido construído 30 anos depois, mas não deixa de ser uma simbologia dessa barreira inexplicável que a cidade tem em relação ao Guaíba. Uma barreira física, mas também existencial. Aí dizem que o muro não impede a visão do Guaíba, mas sim os armazéns. Mas os armazéns já são uma visão confortadora. Tu passar pela Mauá e enxergar os armazéns já constituiria um valor de cidadania, um valor de memória que nos foi suprimido.

E agora esse projeto do Cais Mauá, que é absurdo. É um projeto que significa acoplar a uma paisagem histórica da cidade equipamentos enormes, que não tem nada a ver com aquele espaço, nada com a história da cidade, com os moradores do centro. Ninguém pediu aquilo, ninguém quer aquilo. As pessoas que são a favor dizem que pior é ficar tudo abandonado, então para revitalizar – que foi uma palavra mágica que se criou -, infelizmente tem que fazer. Quer dizer, nem eles são a favor, a não ser quem quer que seja como Puerto Madera, aquela cafonice que tem em Buenos Aires. É bonito para alguns, para essa ideia de ostentação, de quem acha que ter prédios grandes e shoppings em qualquer lugar é sinônimo de desenvolvimento. Então é um projeto absurdo, que despertou a reação de parcelas importantes, e estou bem engajado nisso. É um projeto que não deve passar, e acredito que não vá passar por uma série de circunstâncias. Hoje no Brasil não há condições de alguém financiar um projeto daquela envergadura, e mesmo que houvesse, como há uma reação de setores muito influentes da cidade, uma pessoa que eventualmente pudesse, irá pensar duas vezes. Soube de uma grande rede de supermercados da cidade, que também administra shoppings, foi sondada para se instalar ali, e não quis, por achar que desgastaria sua marca perante parcelas influentes da opinião pública. E agora com a coisa da enchente, está claro que aquela área está sob risco, não de inundações, mas de transtornos causados. Portanto, não acho que saia, mas se saísse, seria muito nefasto para toda a cidade, uma senha para que toda essa orla fosse ocupada por espigões.

Culturissima: Na época de construção do muro, houve esse debate na sociedade também?

Rafael Guimaraens: Não houve discussão. Na verdade ele foi imaginado logo após a enchente de 41, que foi em abril e maio. Em junho a Sociedade de Engenharia realizou um grande debate. É compreensivo, porque aquela havia sido a quarta enchente no período de 15 anos, e foi a maior de todas. Houve enchentes em 1926, 28 e 36. Então na época já se pensou em fazer essa barreira, que inclui a avenida Beira-Rio, elevada a uma altura de três metros acima do nível do Guaíba, a Castelo Branco, que hoje é a avenida da Legalidade, também, erguida a uma altura de três metros. Eram partes que o Guaíba vinha mesmo, quando alagava, é o caminho natural dele. E o centro já é um pouco mais alto, naturalmente, e mesmo assim pensaram em colocar o muro. Era um negócio caríssimo, que não tinha como, mas foi executado no início da década de 70, exatamente por ter o dinheiro disponível, que entrava no Brasil a juros muito baixos, no chamado Milagre Econômico. A ditadura utilizou muito isso, fez muitas obras, muitas delas úteis e outras inúteis. O muro foi construído nesse contexto de dinheiro entrando. Na época do livro, conversando com pessoas que tiveram mais ou menos participação nisso, calculei em meio bilhão de dólares. E não houve discussão porque não havia discussão de nada. Era o período mais duro da ditadura, não podia se questionar nada. Foi logo depois do AI-5, as pessoas ainda estavam sendo perseguidas, sumindo do mapa. Tudo era proibido, os sindicatos estavam amordaçados, os estudantes estavam temerosos e ainda não havia os movimentos ambientais.

Aí vem a crise do petróleo em 74, que elevou os juros. Aumentou a inflação, veio a dívida externa, começou a haver desemprego e aquela classe média que apoiou o golpe mudou seu quadro. Nesse momento, com o governo acuado, começa a ter uma reação da sociedade, e com o movimento ambiental começa então o questionamento ao muro de forma muito forte. O muro passou a ser uma coisa anacrônica dentro da cidade. Muitas pessoas defendem, do ponto de vista técnico, que é uma boa solução em caso de uma enchente grande, mas é uma enchente que dificilmente vai acontecer. Nós tivemos esse ano uma enchente muito grande, choveu bastante, e a água mau chegou aos três metros. Chegou a 2,96 metros, e mesmo se subisse um pouco mais, ela ia se dispersar ali na Mauá, pelos boeiros. Os caras dizem que com toda essa chuva o muro provou sua utilidade. Não é verdade, ele continua inútil. Vamos passar várias gerações, vamos sumir do mapa, e o muro não vai provar sua utilidade.

Agora acho que há uma consciência. Esse movimento do Cais Mauá de Todos é muito ilustrativo disso. E não só o do Cais, há em vários outros espaços, organizados por pessoas muito jovens: Defesa Pública da Alegria, Largo Vivo, e agora soube também que tem um na Cidade Baixa, que é o Cadeiraço, para as pessoas pegarem suas cadeiras e irem para as calçadas, curtirem a cidade, curtirem a sua rua. Está havendo uma conscientização de valorização do espaço publico que é muito interessante.

as aguas do guaiba_rafael gumaraens

Culturíssima: Você já contou várias histórias relacionadas à cidade. Qual mais te fascina e qual ainda pretende contar?

Rafael Guimaraens: Até agora, dos trabalhos que fiz, foi o Tragédia da Rua da Praia, que é uma história que eu não conhecia, e eu me considerava bem informado sobre a história da cidade. Quando entrei em contato com ela, através de uma notícia de um jornal antigo, eu estava até pesquisando outra coisa, e a história me fascinou por uma série de elementos muito ricos para tratar de um ponto de vista mais amplo. Dos livro que fiz, foi o que mais me deu prazer em poder tratar e até em poder exercer uma outra linguagem, mais de novela e de romance, embora seja fato real. Agora estou trabalhando no historia do Sargento Manoel Raimundo Soares. Ano que vem faz 60 anos do fato, e a gente pretende lançar um livro e é no que estou trabalhando agora. Existe aquela história dos crimes da rua do arvoredo, que é um assunto também que traz um elemento muito instigante que é o fato em si e o que o imaginário popular agregou a ele. Isso é uma coisa fascinante pra mim, mas já tem livros escritos. Mas não sei, tenho o processo todo guardado, talvez eu me despusesse dela.

Culturíssima: Esse lado policial te interessa bastante, né?

Rafael Guimaraens: Interessa, porque um crime significa o rompimento radical do cotidiano. O crime ou uma tragédia, como a enchente de 41. Isso me interessa poque quebra o cotidiano, quebra a rotina da cidade, perturba, mobiliza todo mundo, as pessoas ficam com medo e desperta os sentimentos de uma forma mais exacerbada. Esses crimes acabam influenciando em várias áreas da sociedade, por isso que me interessa, não que eu goste de sangue [risos]. Se bem que gosto muito de livros policiais, mas a forma de tratar a coisa da memória, com uma narrativa que tem que ser intensa, para que desperte o interesse e resuma bem aquele momento, o crime facilita isso, ele acirra os ânimos, os sentimentos, e portanto cria-se uma boa textura para trabalhar.

Culturíssima: Pensa em algum momento trabalhar uma história de ficção?

Rafael Guimaraens: Penso, até tenho umas histórias escritas. Tenho um livro infantil escrito, que talvez lance ano que vem. Tenho também três comédias de pura ficção, que tenho vontade de editar, mas essas preciso trabalhar um pouco melhor. Gostaria muito de trabalhar ficção, mas teria que estar um pouco mais fortalecida a minha capacidade narrativa ficcional. Com a capacidade narrativa de coisas reais, estou satisfeito com o meu trabalho, mas claro que sempre se pode melhorar.

Culturíssima: Em um exercício de futurologia, olhando para o agora, que história você acha que contaria daqui a 20 anos?

Rafael Guimaraens: Acompanhei um período recente da história de Porto Alegre em que eu e muitas pessoas ficamos muito eufóricos com os processos que aconteciam aqui. A partir da proposta de democratização do orçamento, de uma série de coisas que estavam sendo feitas e que a população adquiria certo protagonismo, fiquei muito entusiasmado com isso. Porto Alegre foi sede do Fórum Social Mundial, vinha um monte de gente pra cá, curiosas para conhecer a cidade. Tem um filme francês chamado Bonecas Russas, que é tipo a continuação de O Albergue Espanhol, e conta a história de um personagem, que está sempre querendo achar seu caminho, sempre envolvido com amores que não dão certo. E tem uma cena em que a Audrey Tautou, que é uma ex-namorada desse cara, ela aparece na casa dele com um bebezinho, que não é filho dele, mas ela diz que ele tem que cuidar da criança porque ela estava indo a Porto Alegre, no Fórum Social Mundial. E ela depois volta fascinada, dizendo que a cidade era o máximo, com aquele sentimento do querer mudar o mundo. Sabe? Pô, é a nossa cidade que está ali! A minha filha, que foi morar na Alemanha, e quando ela fala de Porto Alegre as pessoas associam ao Fórum, e mesmo em ambientes que não sejam politizados, a cidade é conhecida por isso. E me surpreendo como isso criou uma euforia que de certa forma murchou. A passividade voltou a tomar conta das pessoas a partir de um processo tão intenso que era, e se tornou de novo uma pasmaceira, como se tivéssemos em uma quarta-feira de cinzas bem triste. Claro, como te falei, acho que tem muitos movimentos se criando, mas são grupos, uma coisa de minoria. Acho que a maioria da população que a gente julgava estar se empoderando, e aquilo refluiu de uma forma que todo mundo passou de novo a cuidar da sua vida, a não se interessar pelas coisas da cidade. Enfim, não seria uma história, mas um tipo de sentimento que gostaria que alguém estudasse isso e tentasse me explicar como isso aconteceu. Será que o movimento era frágil? Será que dependia apenas de um determinado tipo de governo? E se dependesse, não era uma coisa tão intensa quanto a gente julgou que fosse.

Culturíssima: Você prefere a história contada pela literatura ou aquela registrada diariamente pelo jornalismo?

Rafael Guimaraens: Essa narrativa mais literária é mais interessante de ler, mas no meu caso, que pesquiso, é fundamental ler os jornais. Leio muito livro de história, leio também muitos trabalhos acadêmicos, e isso é uma coisa que a internet ajudou. Mas quando pesquiso, uso basicamente os jornais. Antigamente as matérias eram quase atas, o cara botava tudo o que acontecia. O próprio método em que o jornal era feito, com todo aquele processo antigo, e ele vai acrescentando as notícias e às vezes até desmentindo o que está no começo da matéria, porque as últimas informações vão entrando.

Culturíssima: A editora Libretros existe há quanto tempo?

Rafael Guimaraens: Existe há 19 anos, mas nos primeiros anos ela era tipo um escritório de design, a Clô é designer gráfica e nos primeiros anos ela foi criada para prestar serviço e poder receber através de uma empresa. Mas eventualmente começamos a editar um livro aqui, outro ali, dois por ano, ou três. Coisas muito localizadas e sem nenhuma estratégia, muito mais por acaso. Os dois primeiros livros da Libretos, por exemplo, são livros sobre tênis. A gente gosta muito de jogar, e um professor amigo nosso escreveu um livro de tênis e nós editamos. Até deu certo, tinha dois mil exemplares e vendeu todos, por incrível que pareça. Depois comecei a sentir vontade de escrever, então fizemos os meus livros e logo também livros de outras pessoas e viramos uma editora mesmo. É difícil precisar o período que isso começou a acontecer.

Culturíssima: Como a Libretos está colocada no mercado hoje?

Rafael Guimaraens: Vínhamos mantendo uma média de 8 a 10 livros por ano. Teve um ano que teve 15, mas foi uma exceção completa. Esse ano, por exemplo, editamos apenas quatro livros, em função da retração. O livro Águas do Guaíba tem patrocínio da lei Rouanet. Nega Lu é um livro que tem Fumproarte, e os outros dois, que são O Peixe, o Avô e o Tempo e Imóveis Paredes, nós investimos. Então, quer dizer, de quatro livros, dois nós investimos e dois são por lei de incentivo. É claro que os projetos incentivados são muito importantes pra nós, eles permitem a sobrevivência da Libretos e até a investir em um projeto que está dentro da nossa linha de trabalho, mas que eventualmente não teria retorno.

A Libretos é uma editora pequena, mas tem prestígio no mercado. A gente consegue manter uma banca na Feira do Livro só com trabalhos nossos, e mesmo lançando só quatro livros, foi o melhor ano pra nós em termos de vendas. Geralmente a Feira é muito boa para nós em termos econômicos, e também das pessoas conhecerem, pois estão ali todos os nossos livros reunidos. Nós temos um tamanho e não ambicionamos nos tornar uma grande editora, ambicionamos poder continuar a fazer coisas que a gente acredita. Procuramos evitar do autor pagar a edição, a gente já fez isso, mas procura evitar. Isso é muito comum no mercado editorial.

Um ano como esse, de recessão, a gente fica em estado de alerta. Não podemos fazer loucuras, arriscar muito. Esperamos que passe, talvez não vá ser tão logo. Nós temos também muita expectativa em relação ao vale-cultura, que está sendo implantado de forma muito lenta, a gente acha que é um valor muito alto que vai ingressar no mercado da cultura. Já se conseguiu alguns avanços, mas a cultura precisa de espaços de valorização. Por exemplo, nesse momento do crise, o Governo do Estado suspendeu a LIC, que é a Lei de Incentivo a Cultura, porque não querem dar isenção para ninguém, precisam do dinheiro para recompor as finanças públicas. Então, a primeira vítima é a cultura. Isso é uma coisa recorrente. Os investimentos na cultura já são pequenos, então se torna um prejuízo sempre muito grande. Cultura é uma necessidade de cidadania, para que as pessoas possam ampliar sua participação na sociedade. Na minha maneira de ver, deveria ser considerado uma coisa estratégica. Na eleição do Uruguai, quando o Tabaré Vázquez assumiu a presidência depois de dois mandatos do Mujica, saiu um editorial no El Pais, muito significativo. É um jornal ligado à direita, e eles disseram que a oposição não tem uma política cultural para fazer uma disputa com a política cultural da Frente Ampla, que segundo o jornal, além de uma série de medidas sociais, é o grande cavalo de batalha da disputa política no Uruguai e que angariou toda essa simpatia da juventude e população em geral. Colocando claramente uma visão de que cultura é fundamental para definir os rumos de uma nação e cobrando a ausência de um projeto cultural por parte dos candidatos da direita. Isso se nota, os governos liberais consideram a cultura como um inimigo, aí esvaziam os processos culturais, não investem e cortam o que é possível.

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