Gigante Figura: padrões e visibilidades do corpo na modernidade

Carlos Viegas

Gigante Figura (Riacho, 2018), livro recém-lançado por Fabrício Silveira, professor e pesquisador da área da Comunicação na Unisinos é, sobretudo, uma crônica sobre a modernidade e seus regimes sensoriais. Ambientado na forquilha entre os séculos XIX e XX, o livro narra a história do italiano Ugo Battista, um homem de proporções avantajadas que ganhou boa parte da vida atuando nos exóticos freak shows que rodavam a Europa exibindo seres humanos cujo corpo fugia da “normalidade”. Entre turnês na companhia de mulheres barbadas, anões e irmãos siameses, o personagem acompanha a transformação do mundo neste período que até hoje é entendido como um divisor de águas nas relações entre a humanidade, a tecnologia e o espaço urbano.

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Ugo Battista se conforta e se desconforta diante do pavilhão de maravilhas no qual se transformava a metrópole moderna, e sua biografia é usada como uma janela através da qual se pode enxergar a modernidade num período de implantação. Para cumprir esse fim, Fabrício Silveira capricha na composição dos cenários. Não raro, o detalhamento do ambiente – a Paris daquela virada de século, principalmente – recebe mais atenção do que o próprio estado psíquico e físico do personagem principal. Uma chuva de referências – de lugares comuns a personalidades históricas – passa pelo front do gigante italiano ajudando a materializar para o leitor a efervescência daquele período: Ugo assiste a aulas de Henri Bergson, conversa com John Merrick, o Homem Elefante, e flerta com o diretor de cinema Tod Browing. Em certa altura, Ugo se evidencia como uma espécie de Forrest Gump da modernidade, cruzando com quase tudo o que de relevante ocorreu naquela transição entre séculos. Fosse uma narrativa em primeira pessoa, poderia se imaginar que se lê o relato de um louco ou de um mentiroso, tal qual a sensação que se tem em contato com o romance de Winston Groom transcrito às telas em 1994.

A chuva de referências, lógico, pode ativar no leitor um hábito peculiar. O leitor viajante pode dar lugar a um leitor mais chato, burocrático e afeito a observações. Neste caso, o livro instiga à verificação de datas para certificação de que tal diálogo fosse mesmo possível naquele ambiente durante aquele determinado período histórico. Dá-se a mão ao Google. Submete-se a obra à sabatina do buscador com frequência, pós-produzindo, o leitor, quase uma anti-arte, de tanto que objetiva o que é exposto ao longo de Gigante Figura.

É questionável, por exemplo, quando o autor relata o hábito francês de apreciar fotografias no jornal, já que habitualmente conta-se que, naqueles idos da modernidade não havia muitos jornais circulando por Paris com o aporte de material fotográfico. Alguns estudos dão conta de que uma das grandes dificuldades dos empreendedores por trás do Museé Grevin (primeiro museu popular de Paris, inaugurado em 1882) era que mesmo os rostos mais nobres expostos em quadros e bustos eram desconhecidos do grande público a despeito de sua importância histórica, vítimas que eram, figura e observador, da ainda latente incapacidade da fotografia de se reproduzir em baixo custo para que desse conta das grandes e descartáveis tiragens diárias da mídia impressa de massa. Nestas condições, o próprio ideal de celebridade obedecia a outras lógicas, retendo-se ao status de lenda ou limitando-se à circulação provinciana, às quais Ugo Battista parece transcender ao longo da história, adquirindo – intui-se, em certo momento – até certa fama transcontinental que não seria muito apropriada àquele período.

Ao fundo, enquanto se discute mentalmente com o autor a precisão das datas e se surpreende com o resultado das buscas paralelas – o primeiro cachorro quente foi comercializado em 1880 (!) e em 1894 a iguaria já era consumida acompanhada de Coca-Cola (!!) –, é possível notar Gigante Figura uma estrutura que engaja o leitor. A estrutura, dividida em capítulos autossuficientes que oferecem leitura rápida, como se fossem uma tirinha de jornal, ajuda o leitor a imaginar coisas. Não há uma precisão cronológica nas referências expostas, assim como não há um ritmo temporal claro na própria narrativa, que se detém em determinados períodos por páginas pouco antes de saltar no tempo, bruscamente, em pouquíssimas linhas. Tal prática é facilmente assimilada com o passar dos capítulos e passa, a partir do entendimento, a apresentar a quebra capitular como momento de repouso criativo, quase como se o espaço entre um capítulo e outro pudesse ser completado por quem lê. É o momento em que mais se chocam a experiência literária criativa – do leitor que mergulha na obra – e a experiência burocrática de duvidar do autor a todo instante, relatada anteriormente.

Talvez essa própria indecisão de como agir diante do livro seja o efeito mais produtivo do texto enquanto formato literário. O texto flerta com a ficção se apropriando de observações que vêm de múltiplas planícies, acadêmicas e literárias, mas, no fim, parece se convidar a ser uma outra coisa, mutante em relação a tudo que absorve, confusa por essência e moldável diante do que o leitor decidir fazer com a história.

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