Entre aquilo que se explica e aquilo que se sente

Rolling Stones_Porto Alegre_ foto Duda Bairros

(Foto: Duda Bairros)

Carlos Guimarães*

Em Midnight Rambler, o petardo blueseiro do Let It Bleed (1969), Jagger e Richards trocam olhares. O vocalista, com uma gaita de boca, no maravilhoso solo da música, aguardando para ser devorada em forma de notas. O guitarrista, com um sorriso, logo depois do quinto ou sexto cigarro em uma hora, olhando para Jagger como se fosse um irmão, um fraterno amigo, um companheiro de cinco décadas. Jagger ri. Richards responde. Ronnie, cabelos molhados, um show de simpatia, olha para a platéia. Charlie, vestido de papai aos domingos, com seus movimentos discretos e seu ritmo impecável, faz as vezes de um lorde nas baquetas. Cresce o som. Mick volta a cantar: “Did you hear about the midnight rambler (…)” e o blues se estende lindamente.

Pensei bastante neste recorte do show dos Rolling Stones, que aconteceu nesta quarta-feira, dia 02 de março de 2016, no Estádio Beira-Rio em Porto Alegre. Foi um momento no qual o telão conseguiu ter os dois, depois a banda, depois o apoio, depois o público. Pensei em como a química Jagger e Richards se transforma em energia, depois em catarse, delírio e resulta na maior manifestação de boas energias que eu pude ver em um show de rock. Isso. Rock.

Ao contrário do praxe, a abertura do espetáculo foi com Jumpin’ Jack Flash, prometendo uma noite de surpresas no setlist – por vezes conservador – da banda. Na sequência, o hino It’s Only Rock N’Roll (But i Like It) e a impecável apresentação do blues Tumblin’ Dice, clássico de Exile on Main St. (1972). Segue com Out of Control – esta, de Bridges to Babylon (1997), a mais recente do set –  e anuncia a vencedora da escolha popular. Let’s Spend the Night Together derrotou Street Fighting Man, Get Off of my Cloud e You got me Rocking e foi executada para antecipar uma sequência arrebatadora. De volta aos 1960, e isso já faz quase cinquenta anos, com o mesmo vigor de quando a banda tinha Brian Jones, Bill Wyman e eram a “banda mais perigosa do mundo”, os Stones emendam Ruby Tuesday – uma surpresa, confesso que esperava Angie ou Wild Horses -, Paint It Black e Honky Tonk Women, em um momento mágico do show. A chuva, nessa altura do campeonato, apertou.

Keith é puro carisma. E voz, muita voz. Seu set solo é de um primor técnico invejável, com You Got the Silver e Before They Make Me Run. De volta com a banda, a parte final, tradicional e apoteótica em pelo menos três momentos: Midnight Rambler, Gimme Shelter e na transe em Sympathy for the Devil. Os momentos pop em Miss You e Start Me Up e o primeiro encerramento com Brown Sugar antecedem o bis, que é de êxtase, com You Can’t Always Get What You Want e Satisfaction, o encerramento apocalíptico para consagrar uma energia inexplicável.

A narração do show, faixa a faixa, é só um proform necessário, chato e pretensiosamente jornalístico para descrever a cronologia de uma noite mágica. Como garotos, os senhores de mais de 70 anos desfilaram pelo palco do Beira-Rio com intensidade e pujança. Com alegria e vitalidade. A banda de 54 anos de idade, percalços, egos e relacionamentos inflamáveis parecia estar começando uma carreira. A troca de energia com o público foi especial, em uma apoteose pouco vista – ou talvez nunca – por estas bandas.

No final das contas, a chuva foi mais um componente do show. Um espetáculo vigoroso, inigualável e que me ajudou a (in)definir cada vez mais o que significa esse tal de rock. Eu saberia explicar o que é o amor, o que é a felicidade e até o sexo dos anjos. Depois de ontem, alma, camiseta e tênis encharcados, alegria estampada e um sentimento que não sei explicar, essa confusão de embriaguez, de estado inebriante e de renovação de espírito. O nome desse sentimento é rock. E isso não se explica. Apenas se sente.

*Carlos Guimarães é jornalista, apresentador e comentarista da rádio Guaíba

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