Entrevistamos o curador-chefe da 10ª Bienal do Mercosul

gaudencio fidelis 10 bienal do mercosul

Luiz Paulo Teló

Durante esta semana, o curador-chefe da 10° Bienal do Mercosul, Gaudêncio Fidelis, nos atendeu por e-mail, e respondeu alguns questionamentos sobre a mostra de arte que acontece entre os dias 23 de outubro e 6 de dezembro, em Porto Alegre. Intitulada Mensagens de uma Nova América, a 10ª edição receberá cerca de 700 obras, de 402 artistas, de 21 países, além buscar inspiração na primeira mostra, de 1997, quando o então curador Frederico Morais propôs uma revisão sobre a arte latino-americana.

Trabalhando no projeto desde o ano passado, Gaudêncio Fidelis esteve à frente de uma equipe de curadores vindos do México, Argentina, Chile e, claro, Brasil. Aliás, a indicação de Fidelis quebra o ciclo das últimas cinco edições, que tiveram curadores-chefes estrangeiros. Formado em  Artes Plásticas pela UFRGS, mestre em Arte pela Universidade de Nova Iorque e Doutor em História da Arte pela Universidade do Estado de Nova Iorque, Gaudêncio foi diretor do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) entre 2011 e 2014  e também fundador Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), no início dos anos 1990.

Culturíssima: Essa ideia de voltar a 10ª Bienal para um olhar Latino-americano, é uma proposta sua como curador-chefe ou a organização já tinha essa vontade quando fez o convite a você?

Gaudêncio Fidelis: O Presidente da Fundação Bienal do Mercosul José Antonio Fernandes Martins tinha este interesse tanto quanto eu, representante da curadoria desta edição. Ambos tínhamos a convicção de que a Bienal do Mercosul necessitava se voltar para a produção da América Latina para se diferenciar das outras Bienais ao redor do mundo. Além disso, na minha opinião, a Bienal deve ser uma plataforma para a produção destes países, o que lhe confere um importante diferencial no contexto mundial desse tipo de exposições.

Culturíssima: Vocês divulgaram recentemente a lista de artistas e obras que farão parte da Bienal. Como foi o processo de trabalho com a equipe até chegar a essa lista final?

Fidelis: Foi um extenso processo de pesquisa, análise, considerações curatoriais e viagens, além de uma complexa engenharia diplomática e de convencimento para conseguir os empréstimos das obras selecionadas. Foi um trabalho exaustivo que levou muito tempo de dedicação integral, acompanhado de uma imensurável burocracia. Mas os resultados foram surpreendentes na medida em que todos estes emprestadores se maravilharam com o projeto da Bienal e decidiram colaborar com ele.

Culturíssima: Tem algum nome ou alguma obra que te deixou especialmente feliz por conseguir trazer a Porto Alegre?

Fidelis: Esta Bienal tem dezenas de obras extraordinárias, muitas das quais nunca viajaram. A Tropicália (1967) de Hélio Oiticica será montada em sua versão completa em Porto Alegre pela primeira vez; O Impossível (1945) de Maria Martins, a Virgem-Cerro (séc. 18) do Museu Nacional de La Paz da Bolívia; uma pintura da virgem de Guadalupe da coleção do Museu da Basílica de Guadalupe (séc. 18); 10 parangolés originais de Hélio Oiticica; O Desmembrado (1947) de José Clemente Orozco do Museu Nacional de Belas Artes do México; Logo for América (1987) de Alfredo Jaar que foi realizado para a Times Square em Nova York e hoje pertence à coleção do Museu Guggenheim e inúmeras outras. Os exemplos são infindáveis.

Hélio Oiticica (Rio de Janeiro-RJ, 1937 - 1980) Tropicália PN2 "A pureza é um mito" e PN3 "Imagético" (1967) Coleção Cesar e Cláudio Oiticica

Hélio Oiticica (Rio de Janeiro-RJ, 1937 – 1980)
Tropicália PN2 “A pureza é um mito” e PN3 “Imagético” (1967)
Coleção Cesar e Cláudio Oiticica

Culturíssima: Você já falou que um dos objetivos é abandonar ou derrubar alguns clichês a respeito da América Latina. Que clichês são esses?

Fidelis: A ideia de que arte latino-americana é uma entidade monolítica. Por isso estamos sempre trabalhando com a ideia de arte da América Latina, apenas como uma delimitação geográfica.  Também queremos abandonar algumas ideias que nos foram impostas de que seríamos provincianos se pensarmos em termos locais e não globais, por exemplo, ao realizar uma exposição com a produção de nossos vizinhos, deixando de fora a Europa e os Estados Unidos.

Culturíssima: Por que esse ano a Bienal vai ter um caráter mais museológico que em edições anteriores?

Fidelis: Trata-se apenas da adoção de um novo modelo curatorial, contrário ao modelo recorrente utilizado em Bienais e exposições de larga escala. O modelo de exposições com obras comissionadas e aquilo que há de mais recente produzido no estúdio dos artistas se tornou a regra dessas exposições. Mas não vejo mais sentido que Bienais sejam concentradas exclusivamente na “tradição do novo”. É mais importante que elas sejam antes de tudo exposições originais e com grande densidade artística, incluindo também um substrato histórico que colabore para que o visitante entenda a produção contemporânea em relação à história e não isolada dela.

Culturíssima: Chegando a sua 10ª edição, qual a importância da Bienal do Mercosul para Porto Alegre?

Fidelis: A Bienal do Mercosul é de extrema importância para um sistema de arte que se interrelaciona, no qual instituições colaboraram para a produção de conhecimento. Como ela é também uma instituição transnacional, sua existência é fundamental para projetar a produção artística para um universo mais amplo, para além das fronteiras onde as obras são produzidas.

Culturíssima: Certa vez, você comentou que, ao propor exposições inovadoras, como foram algumas durante sua gestão no MARGS, a maior resistência não vem do público, mas sim dos especialistas da área. Por quê?

Fidelis: Porque os especialistas possuem ideias preconcebidas sobre obras, modelos de exposições, escolas artísticas e também aquilo que pode ou não ser considerado o mais relevante como obra de arte.  Ou seja, são justamente eles que estabelecem o que são ou não obras canônicas, aquelas que merecem ascender a um patamar de relevância. Exposições muitas vezes contraiam estes princípios, especialmente se forem desafiadoras. Já o público em geral é mais destituído destes preconceitos do que especialistas.

Culturíssima: Acha que isso pode acontecer nesta edição da Bienal?

Fidelis: Com certeza haverá críticas dos especialistas. Mas creio que por se tratar de uma exposição de grande envergadura, as mesmas devem se dissipar e esperamos que haja uma compreensão da exposição como um todo e não da produção deste ou daquele artista, desta ou daquela obra. Por outro lado a visão dos especialistas não é determinante para o sucesso de uma exposição, mas o interesse de seu público. Claro que os especialistas são considerados também o público da Bienal, portanto a exposição também os levando em consideração, claro.

Saiba mais sobre a 10º Bienal

Culturíssima: Foi muito marcante a exposição que você organizou com as obras da Ana Norogrando, com um traço muito forte de feminismo. Esse ativismo das mulheres e pelas mulheres deve aparecer nessa Bienal?

Fidelis: Em todas as exposições que realizei nos últimos anos depois de O Museu Sensível: Uma Visão da Obra de Artistas Mulheres na Coleção do MARGS em 2011 tenho esta preocupação. Porém, em uma Bienal é diferente e essas questões podem aparecer na obra de algumas artistas, mas não de modo acentuado, pois não existe nenhum segmento da exposição dedicado às questões feministas. Mas isso pode aparecer ocasionalmente na produção artística que será exibida e também se levarmos em conta o número de artistas mulheres incluídas na exposição.

Culturíssima: Em uma entrevista, você disse que executou 99% do que gostaria durante sua passagem pelo MARGS. O que faltou para chegar a 100?

Fidelis: Posso dizer que foi a conquista do Anexo do MARGS, que ocuparia o prédio atrás do museu. Fomos muito longe com o processo, faltando apenas assinar o termo de comodato, mas a nova direção não demonstrou ainda (pelo menos publicamente) querer dar continuidade a esta conquista histórica para a ampliação da instituição.

Culturíssima: O que Porto Alegre deve, em relação às artes, em comparação com outras grandes cidades do Brasil e da América?

Fidelis: Porto Alegre possui um sistema de arte muito bem estruturado, com todos os elementos que o compõe como museus de arte públicos e privados, galerias, escolas de arte acadêmicas e livres, centros culturais, espaços alternativos e uma Bienal de arte. O que falta é apenas que estes organismos desenvolvam plenamente seus papéis corretamente para que cada uma destas instâncias dê sua contribuição e assim esse sistema possa ser eficiente e produtivo para os artistas. É isso que diferencia os grandes centros internacionais de circulação da produção artística daqueles que ficam à margem dessa competitividade.

Adicionar a favoritos link permanente.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *