Projeto Sol Maior leva música a jovens em vulnerabilidade social

A sede do projeto é no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Foto: reprodução Facebook

A sede do projeto é no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Foto: reprodução Facebook

Aline Luísa Bisol

Estamos sim nadando contra a corrente da sociedade que acha que os pobres não têm vez nem voz e que as comunidades não têm força. Essa é a missão que Daniel Portilho, 30 anos, coordenador pedagógico do projeto Sol  Maior, protagoniza em seu dia a dia com as crianças e adolescentes da escola de música. Formado em pedagogia e especialista em psicologia escolar, Portilho orienta as atividades diárias da escola entre organizar o horário do lanche, as passagens do transporte coletivo (fornecidas pelo projeto), relatórios, demandas burocráticas, telefonemas e abraços de alunos.

Voltado para jovens em vulnerabilidade social, o projeto utiliza-se da música como instrumento de inclusão social e o empoderamento de crianças e adolescentes e suas comunidades. Mais de 500 pessoas já foram beneficiadas pela educação em música instrumental, canto e dança proporcionada pela entidade desde 2007. Humanização das relações, autoestima, acesso à cultura e à cidadania são alguns dos benefícios deste projeto que enfrenta uma cidade, um estado e um país deficientes em políticas sociais, mas plenos em burocracias que atrasam o desenvolvimento de ações sociais de organizações não governamentais.

Enquanto Daniel concedia a entrevista na tarde do dia 15 de maio, uma quinta-feira quente em pleno outono porto-alegrense, demandas da escola batiam na porta a todo momento: naquela tarde o coral e o grupo de chorinho se apresentariam na Assembleia Legislativa do Estado no Encontro das Primeiras Damas dos munícipios do Rio Grande do Sul, quando seria apresentada a Campanha do Agasalho de 2015. Os corredores em polvorosa pela ansiedade de todos de subir ao palco do Dante Baroni e sensibilizar àquelas senhoras responsáveis pelas ações sociais de suas cidades, refletiam a responsabilidade daqueles cerca de 30 jovens e o empenho da equipe de 12 educadores sociais. Aplaudidos, todos voltaram à escola, a meia quadra do auditório, e continuaram seus estudos musicais com ainda mais intensidade e dando continuidade à sua missão.

Culturíssima: Como surgiu a ideia do projeto?

Daniel Portilho: A Sol Maior surgiu em 2007 a partir de uma vontade muito particular do nosso Diretor César Franarin com a nossa Presidente Maria Teresa Campos, de tentar fazer algo efetivo pelas famílias em vulnerabilidade social indo além da assistência social. Neste caso o recurso pensado foi a música como instrumento de transformação. Iniciou-se essa proposta em parceria com o Pão dos Pobres que à época atendia 50 crianças do instituto nas modalidades instrumentais e canto coral. Eu era o coordenador do internato e com o tempo fomos percebendo que os meninos que faziam as atividades musicais na Sol Maior apresentavam número muito menos de indisciplina em relação aos outros que traziam diariamente situações de violência e outros conflitos. Com isso percebeu-se o projeto não  poderia ficar só ali e precisava expandir. Então, em 2011 surgiu o convite para que em 2012 nós migrássemos para o Theatro São Pedro e ocupássemos os espaços do Multipalco com a perspectiva de abranger um número maior de atendidos. Hoje temos mais de 350 integrantes do projeto, sendo 125 aqui no Teatro e aproximadamente 240 na Vila Farrapos. A proposta então é essa: aliar assistência social com a cultura, fazendo da música um agente facilitador para o protagonismo juvenil. O que a gente percebe é uma auto estima dos jovens que  vem de diversas regiões da cidade, com passagens subsidiadas pelo projeto, e isso pra eles é um prazer: vir até o centro da cidade, rever os amigos e aprender música. Sair da sua condição para uma outra realidade reflete inclusive no rendimento escolar e na relação familiar destes jovens.

Daniel Portilho (centro) com os alunos do projeto Sol Maior. Foto: Aline Luísa Bisol

Daniel Portilho (centro) com os alunos do projeto Sol Maior. Foto: Aline Luísa Bisol

Culturíssima: Que tipo de mudanças efetivas o projeto quer deixar para a vida desses jovens?

Daniel: As pessoas às vezes acham que nosso objetivo é que eles saiam daqui cantores e instrumentistas. Mas não é. A música é tida como uma ferramenta de transformação social. O que nós mais visamos é oportunizar o acesso ao exercício da cidadania plena, trilhando outras perspectivas de vida. Que os jovens tenham essa opção na música sim, mas que essa vivência abra outras portas. Hoje nós temos um grupo formado no projeto chamado Conversa de Botequim, são cinco rapazes que tocam chorinho em bares na noite de Porto Alegre e a partir disso tem uma renda. Outros resultados que temos acompanhado são as formas de comportamento, como eles têm mudado em suas comunidades, relatos de pais de que seus filhos passaram a ser mais atenciosos, mais carinhosos e disciplinados depois de participarem do projeto. Além disso vimos um gosto maior pela vida escolar: no ano passado 95% dos alunos da Sol Maior foram aprovados na escola. É um número muito expressivo para nós.

Culturíssima: Quais são os desafios para manter um projeto tão grande, com tantos atendimentos?

Daniel: São muitos os desafios, posso elencar aqui vários. Nossa Presidente Maria Teresa Campos sempre relata que administrar uma ONG é muito mais difícil que administrar uma empresa. Neste momento a Sol Maior está buscando certificações junto ao Conselho Municipal de assistência Social e ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente com a intenção de captar recursos para o projeto e ter isenção fiscal. Antes era preciso ‘passar o chapéu’, contando com a boa vontade das empresas, mas toda essa burocracia acabava fechando algumas portas. Agora, a partir desse reconhecimento, poderemos viabilizar patrocínios de forma mais fácil. Além disso, tem outro desafio: o fato de o projeto localizar-se estrategicamente em uma área central e os alunos virem de várias comunidades afastadas, requer que forneçamos as passagens para este deslocamento. O acesso pra eles é um grande desafio pois a gente precisa sempre  ter recursos disponíveis para proporcionar sua vinda. A permanência desses jovens no projeto também é um grande desafio. Quando eles são inseridos no projeto, a intenção é que eles permaneçam até aproximadamente os 18 anos e possamos encaminhá-los para o mercado de trabalho, mas muitos, quando atingem 16 anos, tem de atender uma demanda muito emergencial de suas famílias: trabalhar para auxiliar na renda e aí acabam abandonando o projeto em função desse imediatismo. Pra nós é uma triste notícia quando eles chegam dizendo que vão deixar a Sol Maior para poder ajudar em casa, mas entendemos que é uma dura realidade e não temos como lutar contra isso.

Culturíssima: Como se dá a ruptura da escola com os alunos que atingem a idade máxima? Como se encerra esse ciclo?

Daniel: Nós temos outras entidades parceiras onde buscamos encaminhamentos para cada situação. Nós nunca vamos abandonar um aluno sem que ele tenha saído daquela situação de vulnerabilidade pela qual  entrou. Então, dependendo da idade, encaminhamos para estágios, se percebemos alguma potencialidade específica, buscamos encaminhá-los para capacitação para que encontrem uma oportunidade na área, outros saem pela demanda do quartel, mas nunca ficarão desassistidos.

Culturíssima: Como é lidar  com tantas notícias de violência e descaso nas comunidades carentes? Batalhar por um projeto social é nadar contra corrente ou as ações sociais conseguirão reverter essa realidade?

Daniel: As políticas públicas são muito defasadas. Existem muitos projetos, mas nem todos são efetivos, ou seja, são criados por adultos que acham que aquelas são as demandas das crianças e jovens. Estamos sim nadando contra a corrente da sociedade que acha que os pobres não têm vez nem voz e que as comunidades não têm força. Na verdade, o que temos sentido é uma participação muito forte por parte das famílias. Recentemente tivemos uma reunião e vieram 70 pais. Isso no universo de um projeto social é um ganho muito importante. Então, só pelo fato de essas crianças e adolescentes perceberem que a família está envolvida dentro de um projeto que eles fazem parte já um grande incentivo. Aí percebemos que estamos no caminho, fazendo com que se sintam pertencentes de um todo. Isso nos faz continuar lutando.

Culturíssima: E como é a mensuração dos resultados?

Daniel: Todo final de ano realizamos um balanço social por meio dos boletins escolares. Também contatamos as famílias e as escolas para saber como está seu desenvolvimento, a frequência e o comportamento. Tudo isso nós registramos, até porque temos de dar esse feedback aos nossos patrocinadores também através de relatórios.

Culturíssima: Como se deu a parceria com o Theatro São Pedro? E como é para esses jovens estar nesse ambiente?

Daniel: Nosso diretor César Franarin é amigo pessoal da Dona Eva [Sopher, curadora do TSP] e do diretor [do TSP] Morais e houve uma articulação na perspectiva de ampliar o acesso à cultura. É importante dizer o quanto fomos bem recebidos aqui [no teatro] e o carinhoso acolhimento da Associação Amigos do Theatro São Pedro oportunizando uma nova perspectiva de vida para os alunos. Quando esses jovens compreendem a amplitude de estar num espaço desta magnitude é recompensador pois eles tem contato, além de toda a estrutura, também com artistas renomados que circulam pelo espaço, como a Natália Timberg, Nicete Bruno, Mariana Ximenes, Antônio Fagundes e vários outros. Então são nomes que eles veem na TV mas ao mesmo tempo estão tão próximos. Esse acesso é muito significativo na vida deles. E para o projeto é gratificante pois o Teatro São Pedro vê com bons olhos a escola e isso expande para o lado social do Theatro, além do cultural e artístico, por isso é muito especial. Essa preocupação com  o amanhã acaba garantindo uma visibilidade positiva para o São Pedro.

Culturíssima: Como se dá a seleção dos alunos?

Daniel: O nosso critério para inserção é que a criança ou adolescente esteja matriculado numa escola da rede pública, apresentar alguns critérios de vulnerabilidade social e ser morador de regiões periféricas. Mas nós não tiramos o direito dessas crianças e adolescentes. Por exemplo, nós temos aqui alunos que não tem esses requisitos, mas apresentam outros tipos de vulnerabilidade, são poucos, mas com questões voltadas ao psico-social, negligência familiar de pais que têm uma boa estrutura financeira entretanto não tem diálogo com os filhos, e isso acaba sendo um sofrimento para essas crianças. Infelizmente hoje nós não temos vagas abertas. Na fila de espera existem cerca de 80 jovens aguardando atendimento. A procura pelo projeto é tão grande que não fazemos uma divulgação ampla, é sempre pelo boca a boca, pelo anúncio nas escolas e para as entidades sociais das comunidades, como o CRAS, por exemplo. Para surgirem novas vagas é preciso que haja alguma desistência ou ampliação no atendimento.  No ano passado acrescentamos 25 vagas aqui no Theatro São Pedro.

Culturíssima: E a escolha do repertório, tem um caráter de importância ou é aleatório?

Daniel: A gente procura trabalhar com três tipos de seleção: uma delas é a de músicas consideradas fáceis, até para otimizar a iniciação do desenvolvimento motor e cognitivo, seja para tocar ou cantar. Também pensamos em músicas de identidade do aluno, porque a gente procura respeitar as características deles, daquilo que eles gostam, que eles trazem de outros espaços, e também de músicas com grande valor cultural, escolhidas pela nossa equipe com a intenção de que eles saibam quem foi Vila Lobos, Pixinguinha e Cartola, por exemplo.

Culturíssima: E como é a relação dos professores com os alunos?

Daniel: Na verdade nós usamos um outro termo, nós não somos professores, nós somos educadores sociais, porque não somos uma escola de música propriamente, somos um projeto social. Então, o termo ‘educador social’ amplia essa gama da afetividade, as relações interpessoais acabam sendo muito fortes. Nós fazemos algumas discussões de caso de situações esporádicas que ocorrem com alguns alunos. Quando matriculados, os alunos e os pais preenchem um  formulário sigiloso e ali colocam algumas informações que nós não abrimos para o grande grupo, mas que em certos momentos precisamos externar para a equipe para podermos conversar, entender e proceder de acordo com aquele histórico. Então os professores acabam se apropriando, tomando para si essas dificuldades e são muito solícitos, é uma relação muito humana e próxima com liberdade para conversar.

Culturíssima: Como a família encara essas intervenções?

Daniel: Nós criamos um vínculo muito bom com os pais. Esse é um ponto que nós sempre procuramos fortalecer.  Então a gente não encontra resistência nesse sentido. Eles aceitam e colaboram porque acabam entendendo que a nossa proposta é ajudar, andar e construir juntos o futuro desses jovens.

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