Resenha | Sobre Mecanosfera / Monoambiente

Texto de Fabio Bortolazzo Pinto (*)

Mecanosfera / Monoambiente é um breve romance sobre uma pequena crise. O narrador, há vinte anos trabalhando na mesma universidade, é retirado de seu contexto profissional – é demitido – por um motivo pouco claro e sob uma justificativa só compreensível no detalhamento das engrenagens da máquina institucional. Afastado do meio que o define profissionalmente, Fabiano Evangelista mergulha nas idiossincrasias da máquina e da própria construção do conhecimento acadêmico, numa espiral crescente de análises técnicas, classificações, qualificações, quantificações e proposições conceituais, o que torna a leitura ao mesmo tempo esclarecedora e sufocante.

Os momentos de respiro são aqueles em que se revela a monotonia das vivências cotidianas, supostamente ameaçadas pela demissão. A casa, o bar, o restaurante, os amigos, a rede social, a televisão são as dependências do monoambiente em que se apresentam dramas como a potencial mudança de padrão econômico. Aquilo que se apresenta como drama, porém, vai aos poucos se revelando patético. Essa, aliás, é uma categoria que abarca o contraponto às preocupações e inquietudes teóricas e técnicas do narrador: praticamente tudo que é apresentado, não só como drama, mas como fonte de sofrimento, torna-se patético e mesmo farsesco. Por trás do discurso apocalíptico sobre o descarte de elementos socialmente essenciais – o educador, o pesquisador, a universidade, o pensamento científico –, o que há, na prática, são alguns meses de calmaria antes do vento soprar novamente as velas do barco de Fabiano.

A calmaria era o grande pesadelo dos marinheiros de longo curso antes do barco a motor, pois distendia indefinidamente a noção de tempo diante da falta de perspectiva de navegação. Da mesma forma, a interrupção das atividades profissionais, esse tempo brevemente estático, é o que faz emergir o cipoal de conjecturas de Fabiano sobre suas próprias expectativas. Os prognósticos sólidos do narrador, sólidos apenas na aparência, são graciosamente desfeitos por sua companheira, Raíssa, espécie de consciência crítica que pontua o que há de irrelevante nas inquietações de Fabiano e a falta de concretude de sua crise. Não se trata, porém, apenas de uma farsa disfarçada de melodrama pontuada pela experimentação formal. A relevância de uma narrativa como essa, o motivo pelo qual o leitor deve enfrentar os capítulos-ensaio, as resenhas em jargão e modos acadêmicos, a desfaçatez de classe, é a força desconcertante com que o protagonista subordina tudo à sua volta, a maneira como faz da realidade uma hecatombe ao próprio ego, transformando contrariedades como a manutenção da rede de internet do apartamento em uma epopeia tragicômica protagonizada por um valente reclamão. Nada é exatamente o que parece nessa pequena crise, como a angústia com a falta do que fazer, desmentida pelas leituras e pelas análises críticas, pela produção constante, pelos capítulos-ensaio, pela manutenção da sociabilidade. É esse contraste entre a pequena crise real enunciada e a hipertrofia de seu alcance que reside a grande qualidade do livro.

Como no solilóquio de Brás Cubas, a grandiosidade que o narrador vê em si tem algo de ridículo, de verniz sob o qual está uma consciência precária de si mesmo. Não são comuns os autores capazes de colocar em pé esse tipo de arquitetura ficcional e auto-irônica, especialmente com uma estrutura complexa e tão poucas concessões ao leitor. Mecanosfera / Monoambiente não é um texto fácil, mas a persistência do leitor é recompensada. E a maior dessas recompensas é sair do livro sentindo os efeitos de perplexidade e incerteza típicos das narrativas relevantes deste atribulado começo de século.

SILVEIRA, Fabrício. Mecanosfera / Monoambiente. Porto Alegre: Zouk, 2020.

(*) Professor de Literatura, doutor em Comunicação.

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