Resenha | Pastor Claudio, um documentário de Beth Formaggini

Documentário revela crimes praticados pelo bispo Cláudio Guerra na Ditadura Militar no Brasil

Texto de Fabio Bortolazzo Pinto

Não há cenas ou imagens de tortura, assassinatos, ocultação de cadáveres, não há corpos machucados expostos, tampouco armas ou homens fardados de aparência ameaçadora. Essas imagens, mesmo assim, desfilam diante do espectador como fantasmagoria por trás das palavras. Em Pastor Cláudio (Beth Formaggini, 2017)o que efetivamente se apresenta pode ser descrito em uma frase: dois homens conversando numa sala escura, sentados diante de uma tela, iluminados por imagens projetadas nela. Nada mais.

O ex-delegado Cláudio Guerra foi um agente policial encarregado de executar e fazer desaparecer os corpos de pessoas consideradas inimigas pelo regime militar brasileiro. A função profissional que assumiu durante 21 anos, de 1964 a 1985, faz parte das ações de grupos policiais, militares e paramilitares ligados aos órgãos oficiais da ditadura. Responsável pela execução e, principalmente, pela incineração de cadáveres de militantes assassinados nos centros de tortura, Cláudio conta no filme, em detalhes, como eram os procedimentos e a cadeia de comando através da qual chegavam as ordens que deveria cumprir. E que cumpriu, segundo ele, sem qualquer questionamento. “Minha bandeira era o cumprimento dessas ordens”, afirma a certa altura de sua entrevista com Eduardo Passos, o outro personagem na tela.

Eduardo é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense do Rio, doutor em psicologia e integrante do Projeto Clínico do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro. Trata-se de um interlocutor que surpreende pela capacidade de escuta e pela neutralidade que consegue manter diante das revelações do ex-delegado. Eduardo formula perguntas simples e diretas e retoma pontos específicos da narrativa de Cláudio a fim de torna-la rigorosamente clara, livre de qualquer ambiguidade ou ponto cego. Tudo que não é mostrado no filme, a tortura, os assassinatos, os corpos cremados, as execuções, é dito e explicado num tom ameno, sem exaltação, resultado não só da percepção do protagonista com relação aos acontecimentos, mas da hábil condução de Eduardo. Cláudio, atualmente pastor da Assembléia de Deus, só muda levemente o tom de voz ao contrapor uma informação dada em 2012 pelo ex-sargento Marival Chaves em depoimento oficial à Comissão Nacional da Verdade. Quando o sargento aparece na tela, afirmando que o corpo do sindicalista Itair José Veloso foi jogado no Rio Novo, em Avaré, interior de São Paulo, Cláudio inclina o corpo e, com um quase imperceptível sorriso, faz questão de enfatizar que o corpo foi incinerado por ele em um dos fornos da usina de açúcar Cambaíba, em Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro. Cláudio assume também a responsabilidade pelo desaparecimento dos corpos de João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, Ana Rosa Kucinski, Davi Capistrano, João Massena, Fernando Augusto Santa Cruz, Eduardo Collier Filho, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão, Armando Teixeira Frutuoso e Thomaz Antônio Meirelles, todos torturados e assassinados durante as ações da chamada Operação Radar, da qual o ex-delegado fazia parte.

Documentário Pastor Cláudio Trailer Oficial

Ao falar sobre a utilização da usina para a incineração, e sobre a relação que mantinha com o dono do estabelecimento, Heli Ribeiro Gomes, Cláudio desvela o nível de cumplicidade que parte do empresariado brasileiro mantinha com o alto comando do governo militar. Explica que em troca do uso dos fornos, os agentes sabotavam plantações de cana de usineiros rivais, recebendo por isso além da autorização para circular durante a noite nas dependências da usina, diversos presentes e a amizade de Heli. Não era um caso isolado, segundo ele: muitos outros empresários, de diversos setores, colaboraram com o regime, não só financeiramente. É o caso, por exemplo do presidente da Ultragaz, o dinamarquês Henning Boilesen, apoiador declarado da repressão e, segundo consta, presença constante nas seções do tortura nas dependências do Dops, em São Paulo, que presenteou com um aparelho de eletrochoque que ficou conhecido como “pianola de Boilesen”. O empresário foi ‘justiçado’ em 1971 em uma operação conjunta de duas organizações de guerrilha urbana, a ALN (Aliança Libertadora Nacional) e o MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), e sua história é contada em outro excelente documentário, Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009).

Uma passagem curiosa, mais para o final do filme, mereceria por si só um estudo psicanalítico: Cláudio se queixa da impossibilidade de encaminhar os documentos da aposentadoria, explicando que perdeu todos os bens – fazendas, carros, etc – com o fim da ditadura. Perdeu, inclusive, o registro oficial de identidade. “A direita, quando assumiu, me tirou tudo…”, afirma, “a direita?”, pergunta Eduardo, “sim, a direita… quer dizer, a esquerda! A esquerda! Ando confundindo tudo…”.

O trecho mais pesado de Pastor Cláudio não é aquele em que o ex-delegado levanta da cadeira, explica e mostra como executava militantes de esquerda (único momento em que larga a Bíblia que o acompanha durante todo o filme). São os 10 ou 15 minutos finais que mais impressionam, quando Cláudio fala do presente. Depois de descrever as circunstâncias em que generais, delegados e empresários se reuniam para debater os próximos passos das operações em andamento, “num clima amistoso e tranquilo”, faz questão de afirmar que esse tipo de reunião ainda acontece, e que não são encontros para relembrar o passado. A prática conspiratória segue, assim como a tortura: “a falta de punição é que mantém viva a tortura nas delegacias, nos quartéis e nas prisões brasileiras”, diz Cláudio. “Só que agora as vítimas são os pretos e os pobres”, completa Eduardo. O pastor Cláudio repete a frase de Eduardo, balançando afirmativamente a cabeça.

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