Resenha | The Who lembra que Porto Alegre costumava gostar de rock

O show do The Who em Porto Alegre foi uma noite verdadeiramente mágica, segundo o técnico de teclado da banda, Brian Kehew, autor do blog oficial do grupo. De fato, a resposta da plateia foi mesmo acima da média, mas certamente não tão boa quanto Brian descreve em seu texto. No palco foi possível ver um show digno para uma banda do tamanho do The Who, mas qual o tamanho do The Who?

Brian, que está com a banda desde 2002, é músico, produtor e co-autor de “Recording The Beatles”, um livro sobre os equipamentos de estúdio e as técnicas utilizadas para gravar os álbuns clássicos daquela que talvez seja a banda de rock mais clássica do planeta. Portanto, o cara entende das coisas. Segundo Brian, no show de Porto Alegre o Who mostrou de 20 a 30% mais energia do que o usual, tocando de forma intensa e com uma qualidade realmente excepcional. Ainda de acordo com ele, Jon Button, que entrou na banda no início do ano, adicionou pequenas porções extras de baixo mostrando-se claramente confortável dentro do grupo; Pete Townshend fez algumas frases artísticas e estranhas de jazz, que apesar de inesperadas foram muito bem vindas por levarem a música para direções mais ousadas; Zak Starkey estava mais agressivo do que nunca; e Roger Daltrey, com a plateia na mão desde o início e sorridente como em qualquer outro show, protagonizou o momento da noite junto com Pete ao mostrar todo o potencial de sua voz enquanto o guitarrista fazia um slide de joelhos.

Tudo isso aconteceu no Anfiteatro Beira-Rio, ou seja, em um espaço que é limitado à terceira metade do estádio e tem capacidade para 15 mil pessoas. Apesar de incluídos no Rock n’ Roll Hall of Fame em 1990 e destacados pelo museu com a reverência de “A Maior Banda de Rock do Mundo” ao lado apenas de Beatles, Led Zeppelin e Rolling Stones, é estranho o The Who não encher o Estádio do Beira-Rio. Há algum tempo discutimos aqui, com alguns de nossos entrevistados, o rótulo do “rock gaúcho”. Fato é, que este não é o único rótulo bairrista do estilo. Uma das justificativas para sobrarem ingressos para o show do The Who pode ser sua origem. Existe uma conhecida barreira nos EUA para o “rock inglês”. E The Who é muito inglês, de entrar no palco tomando chá quente, tipo saindo fumaça. Uma relação bem similar a do gaúcho e seu chimarrão. Os próprios Beatles tiveram um certo trabalho para fazer sucesso na colônia. Mas, como disse o músico Arthur de Faria, quando falamos em rock gaúcho pensamos “em uma coisa meio mod, meio anos 60”, ou seja, The Who é a própria definição do “rock daqui”, o que torna difícil de entender a falta de adesão ao show de Porto Alegre.

A crise não impediu que os ingressos para o show do Coldplay na Arena do Grêmio esgotassem em cinco horas. Não entraremos no mérito de quem é melhor, mas certamente o que Brian chamou de “resposta generosa do público latino”, não é mais a mesma. Não em termos de presença e muito menos em termos de animação. Talvez se as pessoas não estivessem tão preocupadas em filmar e fotografar o show com o celular elas poderiam gritar e pular mais. Mas também não vamos entrar nesse mérito, afinal, para os padrões atuais, até que o público pulou bastante, cantando inclusive os primeiros acordes de Baba O’Riley. Também não podemos dizer que o problema seja a naturalidade com que o público brasileiro passou a receber shows estrangeiros. A função principal de festivais com o Rock In Rio, lá em 85, era viabilizar uma grande estrutura para trazer bandas internacionais que jamais incluiriam o Brasil em suas turnês. Hoje em dia, ver bandas internacionais por aqui não é mais tão difícil. Mas seria leviandade dizer que os lugares vagos para o show do The Who são devidos a algum tipo de acomodação, uma vez que essa foi a primeira vez que a banda veio ao país e, conforme anunciado por Roger, em função da “idade ter alcançado eles”, a última.

No palco, The Who fez uma apresentação impecável, digna de uma banda de seu calibre. “Fisicamente, eu não sei como eles fazem” diz Brian, que colocou o show de Porto Alegre entre os cinco maiores da era moderna da banda. Tecnicamente, talvez fosse possível até mesmo dispensar os quatro músicos extras. Estranhamente, com o tempo, algumas bandas parecem dobrar de tamanho sem explicação, haja visto o Guns n’ Roses de Axl sem Slash. The Who seria incapaz de sustentar um som redondo e sem lacunas apenas com voz, guitarra, baixo e bateria? O Police faz isso.

De qualquer forma, foi um show empolgante, apesar do público reduzido. Brian diz que a plateia era estridente, que o público latino-americano sempre responde de forma MUITO generosa (grifo dele). Segundo o técnico, nós temos menos inibição, curtimos e trocamos boa energia entre nós mesmos e a música parece significar muito nas nossas vidas. Bem Brian, talvez antigamente, mas não mais. Apesar da motivação um pouco maior do que o normal, não lembra nem de longe um Red Hot Chilli Peppers no Gigantinho lotado em que não havia nenhuma parte do seu corpo que não estivesse molhada de suor após receber a energia contagiante de um público que levava qualquer pessoa a pular, mesmo que eventualmente essa pessoa “não fosse disso”. No show do The Who foi possível sentir até cheiro de maconha, um dos componentes da atmosfera que antigamente parava a cidade e inebriava até mesmo quem não fumava. Mas isso na época em que shows de bandas internacionais não eram apenas mais um e motivavam filas que se estendiam por várias quadras na Rua da Praia, o que é cada vez mais raro, apesar da taxa de conveniência.

Além da plateia, Brian diz que um dos motivos para que o show tenha sido “uma noite para os livros de história” é o fato de não haver lugares marcados, como na maioria dos show do Who. Segundo ele, isso permite uma maior energia, pois “os mais interessados estão na frente”. Não é o que se vê na pista premium da maioria dos shows por aqui. Em vez de ser povoada pelos maiores fãs da banda, o público da pista premium geralmente se quer sabe a letra dos maiores sucessos de quem está no palco. Na verdade, a pista premium parece mais um lugar para quem não quer ficar apertado. Mas também não podemos culpar totalmente a pista premium, que no Anfiteatro Beira-Rio, não é premium, pois não existe pista comum. A queda na animação atinge também outros setores do show e afeta apresentações de ídolos máximos como Eric Clapton. Nem mesmo o deus da guitarra foi capaz de esquentar uma pista comum mais fria que o inverno porto-alegrense.

Metade do show é a plateia que faz. Infelizmente a forma burocrática, sem querer se sujar de lama, de uma plateia que parece ir a shows mais preocupada em acrescentar um momento de diversão ao seu currículo nas redes sociais é broxante. Apesar disso, o show do The Who foi digno. Um show histórico de uma das maiores bandas do mundo em sua primeira e única passagem pelo país. Durante esta visita inédita, obrigado por lembrarem de nós aqui do “limite mais ao sul do Brasil” e nos presentearem com a versão ao vivo das canções que construíram boa parte da nossa cultura rock n’ roll, da qual talvez não tenhamos mais tanto direito de nos orgulhar.

Fotos: Gabriela Baum

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